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A verdade feliciana

por João Pinto Bastos, em 04.12.13

Alguns chegam, outros abalam. A política, no que tem de mais entranhadamente firme, é um lugar onde não há o menor espaço para grandes e frutuosas amizades. Não é que eu advogue, note-se bem, um qualquer maquiavelismo de trazer por casa, até porque o sábio florentino, não obstante as imensas tergiversações feitas ao longo dos anos a respeito da sua obra, era um tipo que conhecia como poucos a natureza intrinsecamente dúctil do ser humano. Mas a verdade é que quase todos os dias somos assoberbados com exemplos práticos do carácter, ou da falta dele, na política. Vejam este pequeníssimo exemplo. Para quem não sabe, Feliciano Barreiras Duarte foi um dos políticos profissionais a quem foi aberta, há meses, a porta de saída aquando da última remodelação governamental. Saiu, e, ao que parece, saiu mal. Saiu de tal forma que, passados poucos meses, resolveu investir a sua parca verve contra o actual secretário de Estado, que ocupa, curiosamente, as mesmas funções outrora ocupadas pelo ilustríssimo Feliciano. A investida termina com uma pergunta mui afectuosa, nomeadamente, um "afinal ele faz o quê"? Acredito, com toda a franqueza, que a questão em si tenha toda a pertinência deste mundo e do outro, mas, o novel articulista do I olvidou-se - porque será? - de fazer a pergunta em questão a si próprio. Afinal de contas, o que fez Feliciano Barreiras Duarte ao longo da sua estada no Governo? Que obra e que marcos legou aos doces papalvos portugueses? Bem se vê que nada, um enorme e rotundo nada. É por isso que, por mais que o tempo passe, Maquiavel terá sempre razão. A política não é para meninos, nem, muito menos, para amigos de longa data. A vingança serve-se sempre fria, nem que seja numa pobre folha de jornal.

publicado às 22:16

São os pequenos com a coragem que os maiores não têm

por José Maria Barcia, em 26.09.13

Parabéns ao jornal i por esta nota de redacção. A impunidade dos grandes grupos económicos não deve ser alimentada pela cobardia de algum jornalismo.

 

Um exemplo do ''pequeno'' i aos outros. O jornalismo devia aplaudir de pé esta posição.

 

 

NOTA DE DIRECÇÂO DO JORNAL I

 

O BES não pode esperar que os jornalistas deixem de exercer a sua profissão.

A administração do Banco Espírito Santo (BES) teve ontem uma reacção desproporcional, violenta e inaudita face ao trabalho de investigação jornalística que o jornal i tem vindo a fazer sobre o envolvimento de administradores e altos quadros do Grupo Espírito Santo em diversos processos judiciais.

O jornal i solicitou um comentário do BES durante o dia de terça-feira ao facto de o dr. Ricardo Salgado ter sido chamado ao Banco de Portugal, mas não recebeu qualquer resposta – como tem sido habitual nos últimos contactos feitos pelos nossos jornalistas.


Através de uma carta enviada às redacções durante o dia de ontem (que não chegou ao i), a administração do BES acusa o nosso jornal, num tom inusitado para uma instituição financeira quase centenária, de “atacar de forma ostensiva e sistemática o BES e o seu presidente executivo”, ligando as notícias que temos vindo a publicar com a saída do dr. Álvaro Sobrinho da administração do Banco Espírito Santo de Angola. Tais acusações levaram mesmo o “Jornal de Negócios” a afirmar que a administração do BES “assume estar em guerra com o angolano Álvaro Sobrinho”.


A direcção do jornal i rege o seu trabalho por critérios exclusivamente jornalísticos, avaliando a credibilidade e a veracidade da informação recolhida pelos seus jornalistas de forma independente de qualquer poder político ou económico. Tal como assume, de boa-fé, os erros quando os mesmos se verificam.

O jornal i não está portanto em guerra com ninguém.


Desde o início da investigação jornalística que a administração do BES tem recusado esclarecer de forma clara as dúvidas dos nossos jornalistas, optando, ao invés, por tentar descredibilizar o trabalho do i. Essa política de comunicação do BES visa igualmente condicionar o trabalho dos nossos jornalistas.

O BES tem tentado pressionar igualmente a direcção e os jornalistas do i que têm feito o seu trabalho.


A direcção do jornal i não se deixa intimidar com o poder económico e publicitário do BES e continuará a garantir o direito de informar e a acompanhar toda a informação que os seus jornalistas recolham com profissionalismo, isenção e respeito pelo nosso código deontológico.


Compreendemos, obviamente, que a administração do BES não goste de ver escrito que dois dos seus principais administradores foram constituídos arguidos por suspeitas do crime de inside trading, percebemos que o BES não queira que se saiba que o dr. Ricardo Salgado, presidente executivo, e o dr. Morais Pires, administrador executivo, fizeram rectificações dos respectivos IRS de 2011 num valor que supera os 9,6 milhões de euros na sequência do processo Monte Branco, entendemos que a liderança do BES prefira que não sejam conhecidas declarações de três administradores da Escom que, após serem informados da sua condição de arguidos por corrupção activa, branqueamento de capitais e tráfico de influências, afirmaram que actuaram sempre com “o total conhecimento e concordância dos seus então accionistas”, isto é, o Grupo Espírito Santo.


Compreendemos igualmente que a administração do BES prefira não fazer comentários ao facto de o dr. Ricardo Salgado ter sido remunerado em 8,5 milhões de euros através de uma offshore por uma consultoria externa realizada a um cliente do banco.


Compreendemos, enfim, que estes factos sejam incómodos para a liderança do BES. Mas uma coisa o BES não pode esperar: que os jornalistas tenham medo do seu poder financeiro e deixem de exercer a sua profissão.


O jornal i, com toda a certeza, continuará a fazer o seu trabalho respeitando todos os poderes da sociedade portuguesa, mas sem ceder um milímetro na missão jornalística da busca de informação verdadeira, factual e com relevância pública.



A direcção do i

publicado às 19:35

Em nome da liberdade (XI) - Ayn Rand - "I" vs "We"

por Samuel de Paiva Pires, em 22.08.09

 

Terminei ontem a leitura de Anthem, obra para a qual há dias chamei a atenção - The Fountainhead e Atlas Shrugged estão à espera na estante por dias em que esteja mais livre. Quanto a Anthem, trata-se de uma distopia com traços algo semelhantes à obra prima orwelliana, 1984, se bem que com um final feliz em que a personagem principal descobre a palavra "I", num mundo onde o colectivo ("We") foi levado ao extremo.  É no 11.º e penúltimo capítulo que Rand faz a a apologia do eu, do ego, através deste poderosíssimo clamor pela liberdade individual (a quem o desejar aqui deixo o link para uma versão online desta obra):

 

"My hands... My spirit... My sky... My forest... This earth of mine....

What must I say besides? These are the words. This is the answer.

I stand here on the summit of the mountain. I lift my head and I spread my arms. This, my body and spirit, this is the end of the quest. I wished to know the meaning of things. I am the meaning. I wished to find a warrant for being. I need no warrant for being, and no word of sanction upon my being. I am the warrant and the sanction.

It is my eyes which see, and the sight of my eyes grants beauty to the earth. It is my ears which hear, and the hearing of my ears gives its song to the world. It is my mind which thinks, and the judgment of my mind is the only searchlight that can find the truth. It is my will which chooses, and the choice of my will is the only edict I must respect.

Many words have been granted me, and some are wise, and some are false, but only three are holy: "I will it!"

Whatever road I take, the guiding star is within me; the guiding star and the loadstone which point the way. They point in but one direction. They point to me.

I know not if this earth on which I stand is the core of the universe or if it is but a speck of dust lost in eternity. I know not and I care not. For I know what happiness is possible to me on earth. And my happiness needs no higher aim to vindicate it. My happiness is not the means to any end. It is the end. It is its own goal. It is its own purpose.

Neither am I the means to any end others may wish to accomplish. I am not a tool for their use. I am not a servant of their needs. I am not a bandage for their wounds. I am not a sacrifice on their altars.

I am a man. This miracle of me is mine to own and keep, and mine to guard, and mine to use, and mine to kneel before!

I do not surrender my treasures, nor do I share them. The fortune of my spirit is not to be blown into coins of brass and flung to the winds as alms for the poor of the spirit. I guard my treasures: my thought, my will, my freedom. And the greatest of these is freedom.

I owe nothing to my brothers, nor do I gather debts from them. I ask none to live for me, nor do I live for any others. I covet no man's soul, nor is my soul theirs to covet.

I am neither foe nor friend to my brothers, but such as each of them shall deserve of me. And to earn my love, my brothers must do more than to have been born. I do not grant my love without reason, nor to any chance passer-by who may wish to claim it. I honor men with my love. But honor is a thing to be earned.

I shall choose friends among men, but neither slaves nor masters. And I shall choose only such as please me, and them I shall love and respect, but neither command nor obey. And we shall join our hands when we wish, or walk alone when we so desire. For in the temple of his spirit, each man is alone. Let each man keep his temple untouched and undefiled. Then let him join hands with others if he wishes, but only beyond his holy threshold.

For the word "We" must never be spoken, save by one's choice and as a second thought. This word must never be placed first within man's soul, else it becomes a monster, the root of all the evils on earth, the root of man's torture by men, and an unspeakable lie.

The word "We" is as lime poured over men, which sets and hardens to stone, and crushes all beneath it, and that which is white and that which is black are lost equally in the grey of it. It is the word by which the depraved steal the virtue of the good, by which the weak steal the might of the strong, by which the fools steal the wisdom of the sages.

What is my joy if all hands, even the unclean, can reach into it? What is my wisdom, if even the fools can dictate to me? What is my freedom, if all creatures, even the botched and impotent, are my masters? What is my life, if I am but to bow, to agree, and to obey?

But I am done with this creed of corruption.

I am done with the monster of "We," the word of serfdom, of plunder, of misery, falsehood and shame.

And now I see the face of god, and I raise this god over the earth, this god whom men have sought since men came into being, this god who will grant them joy and peace and pride.

This god, this one word:

"I."

publicado às 03:55

João Carlos Espada no i:

Do ponto de vista das origens reais e históricas da democracia liberal, a liberdade não assentou na libertação, nem na colectivização, mas na diversificação e na descentralização do poder na sociedade. As condições mais duradouras da liberdade residem na divisão da autoridade e na multiplicação das suas fontes

 

E além deste parágrafo extremamente acertado, ficam ainda as considerações sobre o déspota de Genebra:

 

 

(imagem tirada daqui)

 

Tocqueville constatou a tendência natural dos homens da era democrática para a centralização. E compreendeu que esta tendência centralizadora estava apoiada no que se pode designar como a falácia de Rousseau: se a única estrutura de autoridade central estiver sustentada na denominada vontade popular, ou na vontade geral, então o indivíduo acreditará que tudo aquilo que conferir ao poder central estará apenas a conferir a si próprio.
Foi por isso que Tocqueville afirmou que a ciência do despotismo se tornara muito simples na época moderna: está agora fundada num único princípio - a igualdade. Tal como afirmou Rousseau, e como o homem moderno se inclina a acreditar, o poder dos iguais não pode ser despótico.

 

(...)

 

Rousseau não aceitava o enraizamento do indivíduo em qualquer particularismo: os seus interesses privados - da sua família, do seu negócio ou da sua igreja - impedi-lo-iam de se tornar um cidadão plenamente comprometido com a vontade geral. Isto esteve na origem da tragédia do jacobinismo e mais tarde do comunismo: a hostilidade contra os compromissos e enraizamentos particulares - para utilizar a expressão de Michael Oakeshott - ou a hostilidade contra o impulso de melhorar a própria condição - para usar a expressão de Adam Smith.
Isto significa que, para Rousseau, o indivíduo deve ser desenraizado de modo a tornar-se parte de um todo único - o soberano colectivo, sem limites ou freios e contrapesos. O individualismo desenraizado, que Rousseau usa como ponto de partida, gera um colectivismo intransigente como ponto de chegada.
É inquestionavelmente verdade que John Stuart Mill percebeu o perigo deste soberano colectivo sem limites. Mas ele queria controlá-lo fundamentalmente com o indivíduo isolado - o indivíduo que se atreve a embarcar no que denominava "experiências na vida".
O grande mérito de Tocqueville foi ter percebido que a liberdade seria demasiado débil se fosse deixada apenas ao cuidado de indivíduos isolados. Tocqueville queria proteger a liberdade dos indivíduos, mas não só daqueles que desejavam realizar "experiências na vida". Queria proteger a liberdade dos indivíduos concretos que estavam enraizados nos seus próprios modos de vida, nas suas famílias e noutras instituições espontâneas. E viu nestas instituições intermédias - tão influentes na América - os baluartes supremos da liberdade.

publicado às 23:26

Granda Jel

por Samuel de Paiva Pires, em 24.06.09

 

(imagem tirada daqui)

 

Jel em entrevista ao i:

 

Essa candidatura à Câmara de Lisboa é para levar a sério?
Claro. Já estamos a recolher assinaturas.

Quantas faltam?
Temos mil e precisamos de 4500. Acho que vai ser fácil. Se conseguir estar no boletim, posso muito bem vir a ser vereador.

Mesmo sem um programa eleitoral?

Não tenho nem vou ter. Só levo uma proposta: transformar os jardins de Lisboa em hortas para o povo.

Mas as pessoas vão levar a candidatura a sério?
Não, mas é esse o objectivo. É nestas alturas de abstenção, quando o povo está descrente, que surgem os malucos a gritar. E o povo adora isso

 

(...)

 

É filiado nalgum partido?
Não. Já andei próximo do "berloque" de esquerda, em 1999. Cheguei a ir a algumas reuniões, ajudei a colar cartazes, organizei umas festas. Mas depois desiludi-me, por causa da ideologia. Para mim, tudo o que é ideologia, faz-me retrair.

E o seu partido, não tem ideologia?
O meu não. Vai chamar-se Todo Partido e o objectivo é, depois das eleições, ser um aglutinador de candidaturas semelhantes, ser a base para alguém se candidatar a um junta de freguesia, por exemplo.

Votou nas últimas eleições?
Não, agora só voto em mim. Por isso é que me vou candidatar.

Tem cartão de eleitor?

O primeiro já o fumei. Depois não voltei a tirar, era mesmo bom para fazer filtros...

 

(...)

 

Nenhum canal generalista vai apostar no Jel. Têm os Contemporâneos, os Gato Fedorento...
Não sei porque têm medo, já provamos que somos produtivos. Gosto do Nuno Lopes e acho os Gato previsíveis. Já disse que eles são betinhos e é verdade: é pessoal do Colégio São João de Brito.

E o Jel onde estudou?

Na Secundária de Odivelas, hard-core motherfucker [risos]. Até facadas havia. Eu era da tribo dos punks, tinha crista e tudo. Daí a alcunha Jel.

publicado às 14:43

O rol de colunistas do i é de facto invejável. A seguir com atenção os ensaios de João Carlos Espada aos sábados. Aqui fica na íntegra o de hoje:

 

 

(Edmund Burke, imagem roubada ao i)

 

"No mundo de língua inglesa, Burke é venerado por todos os quadrantes políticos civilizados. O socialista Harold Laski considerou-o um dos maiores pensadores políticos britânicos. O presidente norte-americano Woodrow Wilson, um homem situado à esquerda, citava-o como seu mestre. Raymond Plant definiu-o como inspirador do New Labour de Tony Blair. Simultaneamente, à direita, Burke é visto como o fundador do moderno conservadorismo de Disraeli, Salisbury, Churchill e Margaret Thatcher. Como explicar esta versatilidade de Burke? E, o que é ainda mais difícil, como explicar que no continente europeu Burke seja visto como um mero reaccionário ultrapassado que nunca compreendeu a Revolução Francesa?

Por outras palavras, Edmund Burke está no centro do "mistério inglês" que procuramos decifrar nestes ensaios - o mistério do mais antigo regime liberal que assimilou todas as revoluções modernas sem nunca recorrer à revolução.

Um enigma que vem de longe
. Quando a Revolução Francesa começou, em 1789, todos esperavam que Edmund Burke a apoiasse. Ele era o líder parlamentar dos Whigs, os antepassados aristocratas dos liberais. Durante toda a sua ilustre carreira parlamentar, Burke distinguira-se na oposição aos Tories, os antepassados dos conservadores (que ainda hoje usam aquele nome). Defendera os direitos dos católicos irlandeses; defendera os direitos dos colonos americanos, considerando que a Declaração de Independência das 13 colónias fora produto da intransigência Tory; condenara os abusos britânicos na Índia e liderara o processo de impugnação de Warren Hastings, governador da Índia e líder Tory; finalmente, condenara o chamado "governo de corte" do rei Jorge III e defendera o controlo parlamentar sobre os governos.

Em suma, os Tories detestavam Edmund Burke. Os Whigs, por seu lado, viam-no como o seu líder intelectual. Assim, quando Burke fez um primeiro discurso parlamentar exprimindo sérias reservas face à Revolução Francesa, um pesado silêncio caiu sobre a Câmara dos Comuns. "Como é possível?", perguntavam os Whigs. "Que estará este agora a tramar?", perguntaram os Tories. E o silêncio daria lugar à estupefacção. Burke acentuou as suas críticas à revolução gaulesa e, em 1990, publicou a sua obra-prima - "Reflexões sobre a Revolução em França" - um ataque demolidor ao projecto revolucionário. Do lado liberal choveram os ataques e ele foi acusado de ter perdido o juízo. Do lado conservador, a admiração crescia - mas em silêncio.

Desta forma, tudo indicava que Edmund Burke ia terminar a sua longa e brilhante carreira em total isolamento. Só que, em 1793, Luís XVI é executado e tem início o Reino do Terror em nome da República da Virtude - uma adaptação intencional do Reino da Virtude de Jean-Jacques Rousseau. De súbito confirmavam-se as previsões de Burke acerca do destino anárquico e despótico da Revolução Francesa. Alguns dos críticos, embora não todos, reconheceram publicamente que Burke tivera razão. Os Whigs começaram a aceitar a tese principal burkiana: que a revolução em França era fundamentalmente diferente da revolução inglesa de 1688 e da revolução americana de 1776. E as elites de língua inglesa - incluindo os conservadores e os liberais - iniciaram uma espécie de exame de consciência para tentarem assimilar a mensagem de Burke sobre a especificidade da liberdade ordeira no mundo de língua inglesa.

Três teses
. Podemos resumir os argumentos de Burke em três teses essenciais.

Em primeiro lugar, disse que a ideia de revolução total é absurda e que nunca estivera presente na tradição liberal inglesa, mesmo quando esta tivera de recorrer à revolução.

Em segundo lugar, disse que a chave da liberdade política é um governo limitado que presta contas aos contribuintes, não um governo activista que quer "libertar" os cidadãos dos seus próprios "preconceitos e disposições".

Em terceiro lugar, observou que para limitar o governo não é preciso recorrer a uma filosofia que faça depender tudo da escolha dos indivíduos. Recordou que o sentido do dever não depende da vontade ou da escolha de cada um, que "o dever e a vontade são até termos contraditórios". Finalmente, sustentou que a liberdade não será duradoura entre os povos que ignorem o sentido do dever.

O absurdo da revolução total. A crítica de Burke à ideia de revolução total é extraordinariamente moderna. Antecipou a epistemologia falibilista de Karl Popper e as teorias de Hayek e Oakeshott sobre a natureza tácita e descentralizada de uma boa parte do nosso conhecimento. Basicamente, Burke não criticou a revolução total em nome de manter tudo na mesma. Criticou-a por assentar no pressuposto ingénuo de que podemos desenhar o futuro, em vez de simplesmente tentar influenciá-lo. Disse que todas as acções humanas produzem alguns efeitos que não podem ser previstos. Afirmou que o melhor plano central será sempre corrigido por não especialistas que têm um conhecimento directo das circunstâncias particulares. Logo, não é possível saber com certeza o que trará uma mudança total. Isso não significa que tudo deva permanecer como está. Significa que deve haver uma interacção permanente entre tradição e mudança, e que esta deve ser gradual, por ensaio e erro, de forma a poder ser corrigida e mesmo revertida quando as suas consequências se revelarem indesejáveis.

O melhor regime político é, pelas razões acima referidas, aquele que garante uma interacção ordeira entre tradição e mudança. Esse é o regime misto inglês - fundado na interacção entre um princípio monárquico (o rei), um princípio aristocrático (a Câmara dos Lordes) e um princípio democrático (a Câmara dos Comuns), todos sob o governo comum da "common law", que protege a vida, a liberdade, a propriedade e os contratos. Foi para manter este equilíbrio que a revolução de 1688, tendo efectivamente afastado o rei Jaime II, preferiu declarar que o rei abdicara e procurou uma sucessão dinástica. A Revolução Francesa, pelo contrário, quis apagar o passado e até o calendário resolveu mudar. O resultado só poderia ser a anarquia e, depois, a tirania.

Despotismo activista. Burke condenou o vanguardismo activista dos revolucionários franceses e reiterou o que sempre dissera: que a chave da liberdade política é um governo limitado que presta contas aos contribuintes. A ideia francesa de um governo que quer libertar os cidadãos dos modos de vida em que estes se sentem confortáveis - dos seus hábitos, da sua religião, das suas famílias - é uma ideia despótica abominável, "ainda pior que a república visionária de Platão". Referindo-se a este novo despotismo, Burke escreveu que não podia admirar "a troca de uma espécie de barbárie por outra. [Não podia] congratular-se com a destruição de uma monarquia, mitigada pela civilidade, respeitadora das leis e dos costumes e atenta, talvez demasiado atenta à opinião pública, em prol de uma tirania de uma massa licenciosa, feroz e selvagem, sem leis, civilidade ou moral, e que, em vez de respeitar o entendimento geral da humanidade, se empenha insolentemente na modificação de todos os princípios e opiniões que até ao momento orientaram e moderaram o mundo, e em obrigá-los a uma conformidade com as suas concepções e acções (carta a Sir Hecules Langrishe, 1792).

Esta vertigem "libertadora" só podia degenerar em tirania, porque os novos inquilinos do poder veriam no seu governo uma missão nova, transformadora, que os velhos governos - mesmo as monarquias absolutas - nunca tinham imaginado. Querendo mudar tudo, o novo poder não poderia aceitar instituições intermédias e descentralizadas, como a família, as igrejas ou outras associações voluntárias. "É da natureza do despotismo - tinha dito Burke sobre os governos de corte de Jorge III - detestar o poder mantido por qualquer meio que não seja o seu próprio prazer momentâneo; e extinguir todas as posições intermédias entre a força ilimitada da sua parte e a debilidade absoluta por parte das pessoas." Este vício do velho absolutismo real iria ser incrivelmente potenciado pelo novo despotismo revolucionário, avisou Burke. Robespierre foi a prova de que Burke tivera razão.

Liberdade e dever.
Finalmente, Burke atribuiu as origens deste novo despotismo à intoxicação francesa com ideias filosóficas abstractas. "O mundo de fadas da filosofia não pode dirigir a acção política porque esta não é uma ciência a priori." Em particular, Burke irritou-se com a ideia inovadora de que um regime liberal teria de se basear no princípio de que tudo depende da escolha do indivíduo. Desde logo, observou Burke, "os deveres não são voluntários". E acrescentou que "o dever e a vontade são até termos contraditórios". Acontece que, sem sentido do dever, não existe autodomínio. Ora, prosseguiu Burke, "todas as sociedades precisam algures de um poder de autodomínio. Quanto menos ele vier de dentro, mais terá de vir de fora." Assim, Burke sustentou que "entre um povo geralmente corrupto a liberdade não pode existir por muito tempo". E acrescentou que "as maneiras são mais importantes do que as leis. As maneiras corrompem ou purificam, exaltam ou rebaixam, barbarizam ou refinam, através de uma operação constante, persistente, uniforme e insensível, tal como o ar que respiramos". Por isso também, Burke escreveu que "o rei pode fazer um nobre, mas não um gentleman".

A liberdade inglesa persiste - continuou Burke, antecipando a "corrente de ouro" de Winston Churchill que aqui referimos no sábado passado - porque não se deixou contagiar pela "doença infecciosa da Revolução Francesa". A tradição liberal inglesa não foi intoxicada pelas ideias abstractas e inovadoras da filosofia francesa. Burke elogiou o espírito inglês de continuidade e de herança, "o qual fornece um princípio seguro de conservação e um seguro princípio de transmissão; sem de todo excluir um princípio de melhoramento [?] Esta ideia de uma descendência liberal inspira-nos com um sentido de dignidade habitual e nativa [?] Desta forma a nossa liberdade torna-se uma liberdade nobre".

O mistério inglês e a corrente de ouro. Começa talvez agora a revelar-se a chave do "mistério inglês". Edmund Burke está no seu centro. Foi em Burke que Winston Churchill se inspirou quando disse que "é esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden chain], nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa"."

publicado às 14:40

No n.º 1 da "nós" - Elogio do Amor, do MEC

por Samuel de Paiva Pires, em 10.05.09

Até agora tenho gostado bastante do i, especialmente do formato quase do género de revista quanto ao manuseamento. Gostei particularmente daquele editorial do n.º2, de Martim Avillez Figueiredo, sobre a imigração. Já agora, parece-me que faz falta a muita gente perceber algo que Zakaria explica n'O Mundo Pós-Americano, o "segredo" por detrás da constante regeneração e reivenção da sociedade norte-americana, e como a posição dos europeus em relação a matérias de imigração vai acentuar a decadência do continente - afinal, a demografia ainda conta e muito.

 

Mas no n.º 1 da revista do i, a "nós" (sai ao sábado), dedicada ao romantismo português, o destaque vai para uma das famosíssimas crónicas do Miguel Esteves Cardoso, que aqui deixo na íntegra, o Elogio do Amor:

 

 

(imagem roubada à Maggie)


"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível.
A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro.
Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade.
Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo".
O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões.
O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina.
O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.
O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.
O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser.
O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém.
Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado do que quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

publicado às 15:53

Há um novo jornal no país: i

por Samuel de Paiva Pires, em 07.05.09

O Paulo Pinto Mascarenhas tem vindo a publicitar o jornal que hoje foi lançado, o "i". Ainda não tive oportunidade de comprar, assim o farei para poder aferir sobre a qualidade desta novidade, a provar que mesmo em tempos de crise é possível incentivar a criatividade e promover novas iniciativas. Quanto ao site, é bastante notável que por ali se aprecia a blogosfera, mas já agora deixava apenas uma sugestão. Ajudaria, porventura, a criar maior interactividade com a blogosfera, a utilização de uma ferramente como o Twingly, à semelhança da utilização que o site do Público lhe dá. Fica apenas a sugestão, com os desejos de uma excelente entrada no mercado e que obriguem os outros a competir em qualidade.

publicado às 21:14






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