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Do reaccionarismo da direita da "Identidade e Família"

por Samuel de Paiva Pires, em 13.04.24

Agora que a poeira assentou, aqui ficam algumas considerações acerca da polémica em torno da publicação do livro Identidade e Família:

1 – Comungando a totalidade dos autores do livro da doutrina católica, destacam-se alguns deles por o seu pensamento político ser classificado pelos próprios e por terceiros como “conservador”, casos de Paulo Otero, João César das Neves, Jaime Nogueira Pinto e Gonçalo Portocarrero de Almada.

2 – Sendo certo que existem duas grandes correntes do conservadorismo - teoria política cujo berço (e local onde foi mais desenvolvida) é a Grã-Bretanha -, uma com um substrato religioso e outra de teor secular, no nosso país, o conservadorismo tem revolvido, ao longo das últimas décadas, em torno da doutrina social da Igreja Católica, da democracia cristã e de temas como o saudosismo do Estado Novo, a crítica ao 25 de Abril de 1974 e a oposição ao liberalismo e ao socialismo nas suas várias declinações, que se reflecte, por exemplo, na oposição à interrupção voluntária da gravidez, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, à co-adopção por estas e à eutanásia. Fundamentalmente, estamos em presença de um conservadorismo católico.

3 – É completamente estranho ao pensamento de vários conservadores portugueses o pensamento de autores como David Hume, Edmund Burke ou Michael Oakeshott. Sinteticamente, estes últimos dão voz a um conservadorismo que aceita a mudança contanto que seja resultante da evolução orgânica da sociedade, gradual e reformista, não revolucionária, total e ideologicamente guiada. Para esta corrente, que alguns classificam como sendo um conservadorismo liberal, a mudança deve ainda resultar de necessidades concretas e não de princípios abstractos alcançados por uma razão dedutiva e apriorística, i.e., pelo que Oakeshott, Popper ou Hayek classificaram como racionalismo dogmático ou construtivista. Por outras palavras, é uma teoria política herdeira das Revoluções Inglesa e Americana e crítica da Revolução Francesa, sendo ainda hoje o substrato ideológico do Partido Conservador do Reino Unido.

4 – Esta corrente, como explica Oakeshott, não implica necessariamente quaisquer crenças religiosas, morais ou de outros domínios “acerca do universo, do mundo em geral ou da conduta humana em geral.” O que está implícito na disposição conservadora em política são “determinadas crenças acerca da actividade governativa e dos instrumentos do governo”, que nada “têm a ver com uma lei natural ou uma ordem providencial, nada têm a ver com a moral ou a religião; é a observação da nossa actual forma de viver combinada com a crença (que do nosso ponto de vista pode ser considerada apenas como uma hipótese) que governar é uma actividade específica e limitada, nomeadamente a provisão e a custódia de regras gerais de conduta, que são entendidas não como planos para impor actividades substantivas, mas como instrumentos que permitem às pessoas prosseguir as actividades que escolham com o mínimo de frustração, e portanto sobre a qual é adequado ser conservador”.

5 – O pensamento plasmado nos artigos de alguns dos autores do mencionado livro, por seu lado, assenta em crenças religiosas e morais e visa restaurar uma determinada concepção de sociedade reminiscente do Estado Novo. Pretende repudiar regras de conduta gerais e abstractas desenvolvidas através da evolução cultural da sociedade portuguesa que têm a liberdade individual e a possibilidade de escolha no seu cerne e substituí-las por uma visão ancorada numa doutrina e crença religiosa que prescreve condutas específicas e substantivas e não é partilhada por todos os cidadãos. Tem como objectivo substituir uma perspectiva liberal e pluralista de sociedade, em que não existe uma verdade única e é deixada aos indivíduos a capacidade de prosseguirem diversas concepções de vida boa, por uma ortodoxia pública imposta pelo Estado alicerçada numa única definição do que constitui uma vida boa, reduzindo a esfera de liberdade de todos os cidadãos.

6 – A visão de sociedade patente em vários destes artigos implica, consequentemente, uma oposição a mudanças que ocorreram de forma evolucionista e gradual na sociedade portuguesa ao longo de 50 anos, tendo sido possibilitadas pelo 25 de Abril de 1974. Estamos perante um pensamento contra-revolucionário e providencialista – próximo de Joseph de Maistre e Louis de Bonald -, que se reflecte num conservadorismo autoritário que pode e deve ser definido numa única palavra: reaccionário.

7 – Este pensamento reaccionário critica o que classifica como “ideologia de género” partindo da premissa de que o que considera ser a “família natural” é a única concepção legítima de família, dela derivando o conteúdo normativo do que pretende impor autoritariamente a toda a sociedade, sendo todas as outras concepções consideradas desvios patológicos produzidos pela modernidade ou pelo pós-modernismo. Para além de não aceitarem mudanças produzidas pelo curso natural e gradual da evolução social, acreditam que a sua concepção de família é ideologicamente neutra, como se não fosse ela própria uma ideologia de género, uma visão ideológica dos papéis de género e da sexualidade. Talvez falte aos seus cultores capacidade para apreciar esta ironia.

8 – Para finalizar, perdoem-me a deselegância de citar um artigo da minha autoria, escrito a propósito do combate que muitas das figuras desta direita reacionária promoveram à disciplina de Educação para a Cidadania, que, infelizmente, retém actualidade:

Todavia, esta ideia não chega a ser surpreendente, porquanto boa parte da direita, naquilo que vê como um combate cultural gramsciano, acolhe uma inversão entre as matérias onde o primado da comunidade política se impõe e aquelas onde a esfera da liberdade individual deveria tomar preeminência. É uma marca característica desta direita, por um lado, recomendar a liberdade de escolha em áreas como a educação, a saúde e a segurança social com propostas de políticas públicas que serviriam essencialmente os interesses das classes sociais privilegiadas à custa do bem comum, e, por outro, defender a imposição a todos os cidadãos, pela coerção estatal, de uma visão do mundo alicerçada em larga medida na religião católica em matérias eminentemente do foro da liberdade individual e da esfera privada, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a despenalização do aborto e a eutanásia.
Por outras palavras, nuns dias são liberais que acolhem a separação entre sociedade civil e Estado e clamam contra a intromissão deste e da ideologia em domínios em que, por definição, o aparelho político tem de tomar opções políticas e ideológicas, e noutros prosseguem a herança do absolutismo para defender a imposição de uma perspectiva ideológica em matérias em que o Estado se deveria limitar a respeitar o foro privado e a liberdade individual.

publicado às 22:03

A euforia poetizante de Lourenço

por João Pinto Bastos, em 22.01.14

À semelhança do meu mui estimado Eduardo Lourenço, também não pedi às nossas elites dirigentes para acumularem a dívida que, levianamente, acumularam, fazendo tábua rasa dos mais elementares princípios da boa governação económica. O problema é que, sem que ninguém, no seio da cidadania, dissesse fosse o que fosse para obstar à deriva dividocrática da República,  exceptuando alguns "jovens" do Restelo, a partidocracia portuguesa desgraçou, em meia dúzia de anos, um país que, por força dos sofrimentos pretéritos, merecia melhor sorte. A situação "humilhante" de que fala, com alguma pitada de ironia, Lourenço é, muito resumidamente, o triste corolário de uma cultura de facilitismo que penetrou de alto a baixo toda a sociedade portuguesa, recauchutando um sistema político já de si bastante permeável à demagogia e ao bloqueio. É por isso que, sem esgaravatar muito, o soi-disant "milagre português", assente nos "esquemas de sobrevivência", é, inevitavelmente, uma espécie de arrimo último da intelectualidade que se recusa a raciocinar fora da caixa. Eduardo Lourenço, não obstante a sua profunda inteligência, não foge, nestas declarações, da mediania intelectual infelizmente tão característica do regime. Não é que, note-se, eu refute a validade da tese que prescreve que o português, ao longo dos séculos e das mais complexas situações, foi e é um homem, inerentemente, desengonçado, capaz de fugir, passe o plebeísmo, com uma perna às costas dos obstáculos mais periculosos. Não nego, repito, esta obviedade, que é, aliás, facilmente perscrutável numa análise atenta da nossa história. Porém, o desafio que impende sobre o nosso país, atentas as dificuldades presentes, exige uma resposta de outro recorte, que começa, em primeiro lugar, naquilo a que, indirectamente, Lourenço se referiu, ainda que sem lhe dar o verdadeiro nome: a cultura do consenso. De facto, como disse o filósofo-mor da identidade portuguesa, a democracia não pode nem deve excluir ninguém, e o primeiro passo para levar avante este preceito reside na interiorização por banda dos dirigentes dos principais partidos do regime da necessidade de pactuar sobre o essencial. Essa cultura pactista exige o compromisso máximo de todos, desde os partidos até à restante sociedade civil, e demanda, também, uma compreensão diferente sobre a portugalidade e a cultura que se deseja (re)construir para que o Portugal dos nossos filhos e netos tenha viabilidade. O consenso, democraticamente deliberado, é o alfa e o ómega da sobrevivência futura, e não será, com toda a certeza, com "euforias" desbragadamente revolucionárias que se logrará ultrapassar a presente crise. O consenso faz-se da cedência com convicção, acordando no fundamental, sem deixar, contudo, de lado os princípios norteadores de cada um. É disto que Portugal precisa, e não de devaneios poetizantes que não levam, manifestamente, a lado algum. E Eduardo Lourenço sabe, melhor do que ninguém, que as coisas são mesmo assim.

publicado às 23:25

 

Roger Scruton, "Identity, family, marriage: our core conservative values have been betrayed":

 

«Burke was a great writer, a profound thinker and a high-ranking political practitioner, with a keen sense both of the damage done by the wrong ideas, and the real need for the right ones. Political wisdom, Burke argued, is not contained in a single head. It does not reside in the plans and schemes of the political class, and can never be reduced to a system. It resides in the social organism as a whole, in the myriad small compromises, in the local negotiations and trusts, through which people adjust to the presence of their neighbours and co-operate in safeguarding what they share. People must be free to associate, to form "little platoons", to dispose of their labour, their property and their affections, according to their own desires and needs.

 

But no freedom is absolute, and all must be qualified for the common good. Until subject to a rule of law, freedom is merely "the dust and powder of individuality". But a rule of law requires a shared allegiance, by which people entrust their collective destiny to sovereign institutions that can speak and decide in their name. This shared allegiance is not, as Rousseau and others argued, a contract among the living. It is a partnership between the living, the unborn and the dead – a continuous trust that no generation can pillage for its own advantage.

 

(...)

 

Our situation today mirrors that faced by Burke. Now, as then, abstract ideas and utopian schemes threaten to displace practical wisdom from the political process. Instead of the common law of England we have the abstract idea of human rights, slapped upon us by European courts whose judges care nothing for our unique social fabric. Instead of our inherited freedoms we have laws forbidding "hate speech" and discrimination that can be used to control what we say and what we do in ever more intrusive ways. The primary institutions of civil society – marriage and the family – have no clear endorsement from our new political class. Most importantly, our parliament has, without consulting the people, handed over sovereignty to Europe, thereby losing control of our borders and our collective assets, the welfare state included.»

publicado às 17:15

Simplesmente Portugal

por John Wolf, em 20.04.13

Quando um político aparece em público a anunciar que o sofrimento poderia ser menor, dí-lo da boca para fora, em pleno exercício da arte demagógica, populista. Se apenas diz o que os outros querem ouvir, não está a ser honesto ou é profundamente ingénuo. Seja qual for a liderança de Portugal nos próximos tempos políticos, a austeridade, imposta de fora ou não, será incontornável. Não existe uma varinha mágica para acenar e fazer desaparecer os grandes sacrifícios que estão a ser impostos aos Portugueses. O exequível, para minimizar a dor, passa por redesenhar o conceito económico e social do país. Será importante que tenhamos em conta que a União Europeia estará à mercê de crises incontornáveis nos próximos anos. Uma seguida de outra. A seguinte diferente da precedente. Os putativos lideres têm a obrigação ética e moral de transmitir aos seus constituintes, que não regressaremos à velha normalidade. Que o mundo mudou. Seja qual for o programa eleitoral a apresentar, o mesmo será sempre uma nota de rodapé de um guião escrito por forças maiores. De nada serve invocar os pais fundadores. A época da paternidade terminou. O momento exige grande criatividade que não se encontra na caixa de ferramentas, ferrugenta. Portugal tem de apostar na sua matriz cultural. Nos elementos intrínsecos que não podem ser contrafeitos no extremo Oriente. Nos produtos e artes, pertença da tradição e das gentes locais. Todos esses tesouros que brilham no firmamento económico e que foram desprezados em nome da sofisticação tecnológica, têm de ser readmitidos com todo o fulgor. Os artesãos Portugueses são notáveis e deveriam ser acarinhados. Tomara que os políticos tivessem metade dos seus dotes. Quem fez os vinhos, os sapatos, a filigrana e as tapeçarias de Portugal? Não foram os partidos políticos. A grande missão de governação passa por anular o divórcio que ocorreu com a alma das gentes. O brio e a auto-estima têm de ser devolvidos à gente simples, disposta de sol a sol a trabalhar com afinco, longe das conjecturas doutrinárias, dos parlamentos e palácios. Para os Portugueses serem felizes precisam de tão pouco. E os políticos nem isso entendem. Só atrapalham e estragam aquilo que está à mão de semear. Cultura de uma nova vaga de esperança.

publicado às 09:36

Aqui fica o meu segundo artigo escrito para a secção de opinião do Diário Digital e também publicado no blog da Real Associação de Lisboa.

 

 

Recentemente, veio-me à memória uma aula de 2008 em que um conhecido professor da nossa praça dizia que as crises de identidade são características de nações com hiper-identidade. Estamos sempre a falar da nossa identidade precisamente por termos identidade a mais. A nossa longa História nacional tem um peso enorme sobre os nossos ombros, hoje obrigados ao temor reverencial troikista. O nosso passado é de uma grandeza que nos faz sentir como pigmeus, muitas vezes deixando-nos sem saber como lidar com ele. Daí o nosso eterno retorno mental e retórico às épocas áureas do domínio português sobre mares de todo o mundo. Daí a nossa servidão voluntária quando nos pretendem impor ideias que são simplesmente páginas novas no processo de apagamento da identidade portuguesa em curso. Vem isto a propósito de dois ataques do rolo unidimensionalizador do estado, que encontra quase sempre, infelizmente, uma enorme passividade da sociedade portuguesa em relação aos ataques por ele prosseguidos.

Em primeiro lugar, o mal afamado Acordo Ortográfico. Não pretendo estender-me numa análise do género da que muitos têm feito, e bem, sobre as incoerências linguísticas do próprio acordo ou os errados critérios e interesses que o norteiam, como Pedro Mexia salientou num excelente artigo publicado no Expresso de 14 de Janeiro de 2012. E não o pretendo fazer porque, antes de mais, fazê-lo é aceitar a existência do próprio acordo. É aceitar que o estado é dono da língua. É aceitar que, sem que ninguém lhe tenha conferido esse mandato, o estado se pode arrogar a possibilidade de fazer o que quer com a língua. No caso em apreço, é aceitar que o estado pode convocar um grupo de alegados iluminados e permitir-lhes redesenhar a língua de milhões de pessoas a seu bel-prazer. Escapa a estes iluminados, provavelmente herdeiros da filosofia cartesiana que incorre no racionalismo construtivista – um ignóbil produto da modernidade que inspirou totalitarismos assentes no princípio de que é possível desenhar ou redesenhar uma sociedade complexa a partir de cima, ou seja, do aparelho estatal – uma coisa tão simples quanto isto: a língua é uma das instituições humanas originada e desenvolvida espontaneamente, i.e., através da interacção de milhões de indivíduos ao longo do tempo. A língua originou-se através da natural evolução humana e é por via das interacções que se registam numa comunidade ou sociedade que se vai modificando, de forma lenta, gradual e sem coação estatal. A língua não é produto nem pode ser apropriada por um aparelho cuja fundação é posterior ao momento de origem da língua da sociedade de onde aquele emana. Sinto-me ultrajado com este acordo e pela violentíssima forma como o estado tem avançado para o impor. Raras vezes tenho sentido uma revolta tão grande, uma revolta que cada vez mais me custa calar e que é, com toda a certeza, partilhada por milhões dos meus compatriotas. É difícil, mas não impossível, resistir ao rolo unidimensionalizador da única instituição que detém o monopólio da força legítima. Mas não resistir é aceitar a coação estatal num domínio que é nosso, dos indivíduos e da sociedade, dos portugueses, não do estado. E é por isto que sou terminantemente contra a existência de qualquer acordo ortográfico. Este ou outros (e sim, sei que se fizeram vários ao longo do século XX e sempre por razões políticas). Não discuto os critérios do acordo porque, por uma questão de princípio, este nem sequer deveria existir.

Em segundo lugar, como não poderia deixar de ser, quero referir-me à recentemente anunciada extinção da celebração do dia da Restauração da Independência. Também este assunto pairou no debate público português ao longo dos últimos meses, não faltando quem sugerisse quais os feriados que deveriam acabar. Ora, mais uma vez, isto prefigura uma situação inaceitável. Conforme salientou João César das Neves no Diário de Notícias de 7 de Novembro de 2011, num artigo muito oportunamente intitulado “Os limites da política”, «O Governo não é dono disto». Não compete ao governo, ou pelo menos não deveríamos deixar que lhe competisse, dispor como bem entender de celebrações que pertencem ao domínio da sociedade, que são reflexo dos mitos com que inventámos a nossa nação. Mas já que o está a fazer, então a referida extinção torna-se ainda mais escabrosa quando pensamos que o 5 de Outubro de 1910 continua a ser celebrado. Se nos recordarmos que a fundação do actual regime já é celebrada a 25 de Abril, torna-se ofensivo e acintoso. Ademais, perante mais esta ofensa à nossa identidade, permite-nos perguntar porque não mudar a celebração do Dia de Portugal de 10 de Junho para o Dia da Restauração da Independência, sendo o 1º de Dezembro uma data fundamental na construção do estado moderno em Portugal? Ou será que os pruridos que assistem a alguns iberistas e à laboriosamente ofendida Câmara de Comércio espanhola e aos seus bem pagos delegados empresariais portugueses não o permitem? Em tom provocador, gostaríamos de saber se em Buenos Aires também se exige aos argentinos a liquidação do feriado do 25 de Maio, essa tremenda “ofensa aos espanhóis que dão trabalho” a tantos cidadãos daquele país sul-americano? Melhor ainda, e que tal mudar o mesmo Dia de Portugal para 1 de Dezembro, mas em vez de meia dúzia dos donos do poder celebrarem em frente da Câmara Municipal de Lisboa a Implantação do regime que criou as condições para 48 anos de ditadura, passávamos todos a celebrar o 5 de Outubro de 1143, data da assinatura do Tratado de Zamora e, consequentemente, da fundação de Portugal? Aliás, devemos ser o único país do mundo com a originalidade de não celebrar a sua Independência. O que se torna simplesmente ridículo perante a nossa enorme e longa História.

Tudo isto porque, relembrando Jacques Le Goff, sabemos que é na memória que cresce a história, e um povo sem memória é um povo sem futuro, pelo que importa não esquecer a nossa tradição e salientar, de acordo com José Adelino Maltez no seu recente Abecedário Simbiótico, que «Ser pela tradição é saber recuar, em pensamento e em entusiasmo, para, aprofundando o presente, dar raízes ao futuro, e melhor se poder avançar (…).» Com saudades de futuro, neste nosso Portugal por cumprir, há que continuar a ser livre, isto é, a dizer não, porque a essência do homem livre é ser do contra – não renunciando, antes pelo contrário, à participação cívica. Como assinalou Camus, a revolta surge do espectáculo do irracional a par com uma condição injusta e incompreensível. Perante os ataques desferidos, muitos continuam a não compreender Fernando Pessoa quando este nos diz que «O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado». Compete-nos fazer os possíveis e impossíveis para acabar com esta violência sobre todos nós.

 

(Errata: onde se lê coação estatal deve ler-se coerção estatal)

publicado às 15:25

Respostas de reflexão sobre a democracia em Portugal

por Samuel de Paiva Pires, em 06.02.09

Aqui deixo as respostas a um inquérito no âmbito do estudo levado a cabo por um grupo de estudantes do ISCTE, subordinado ao tema Blogs e Política: Participação, Voto e Identidade.

 

1. Considera a Democracia o melhor sistema político existente? Porquê? Quais as virtudes e defeitos deste sistema político quando comparado com outros?

A democracia é, como se costuma dizer, o melhor dos piores regimes. É naturalmente melhor do que qualquer regime oligárquico, tirânico ou autoritário. Na sua acepção ideal, tem como grandes virtudes a liberdade de expressão, a aspiração à difusão das oportunidades e igualdade no acesso à educação, permitindo ainda aos indivíduos e à sociedade civil ter um papel determinante na condução da política e da vida pública, ao passo que o aparelho estatal assenta teoricamente numa separação de poderes e num sistema de checks and balances como forma de evitar que exista qualquer poder incontrolado, porque como ensina Karl Popper, o importante em democracia não é saber quem manda mas como controlar o poder de quem manda. Se bem que, quando comparado com outro tipo de regimes, especialmente os autoritários, seja mais difícil de efectuar reformas ou crescer e desenvolver economicamente de forma acentuada um regime democrático, isto em teoria, até porque se a China cresce ao ritmo exponencial que tem crescido, também os Estados Unidos são o exemplo de uma democracia com uma sociedade civil vibrante que consegue enfrentar diversas crises regenerando-se por dentro e voltando a crescer e desenvolver-se economicamente, e também há imensos exemplos de democracias e regimes autoritários que não se conseguem desenvolver economicamente e socialmente de forma significativa. Em minha opinião, é a liberdade de expressão que constitui um fundamento inegável de qualquer regime que se considere realmente democrático (há que distinguir entre democracias eleitorais, frequentemente sem liberdade de expressão, onde apenas o elemento da realização de eleições qualifica o regime como democrático, e democracias liberais, o moderno regime dos países do que vulgarmente se designa por Ocidente). Porém, a democracia tem o condão de poder degenerar, tal como tem vindo a acontecer em Portugal, numa ditadura da maioria (a mais das vezes medíocre, basta olhar para os imensos exemplos de políticos portugueses), e num regime realmente oligárquico subjugado por interesses mais ou menos desconhecidos.

2. Em casos excepcionais, consideraria a hipótese de suspender temporariamente a Democracia em Portugal, tendo como objectivo uma intervenção política mais eficaz, que permitisse, porventura, uma melhoria das condições de vida dos portugueses? Em que situações admite esta possibilidade?


O regime actual está numa degenerescência cada vez mais acentuada pela mediocridade e autismo de muitos políticos. Porém, a História tem diversos exemplos de ditadores que tinham apenas a intenção de corrigir e minorar algumas falhas de um regime recorrendo à ditadura. Mas, como diria Montesquieu, “todo o homem investido de poder é tentado a abusar dele” e as ditaduras têm o problema de não ter um prazo de validade. Como tal, se fosse uma ditadura como no Império Romano, em que em algumas situações excepcionais se governava por decreto durante um período de 6 meses, ainda seria de equacionar (se bem que 6 meses seria manifestamente pouco tempo para corrigir a maioria das falhas estruturais deste regime), desde que, posteriormente, se voltasse à democracia de forma pacífica.

3. Como avalia o funcionamento do regime democrático em Portugal? Como fundamenta essa (boa/má) avaliação? E quais são os efeitos desse mesmo funcionamento?


 O regime actual padece de graves falhas que ao nível político estão cada vez mais visíveis, funcionando cada vez pior. Desde logo, a arquitectura do aparelho estatal, com um regime híbrido e com poderes muito pouco separados, contando com um Presidente da República com poucos poderes, um Primeiro-Ministro que é sempre um potencial ditador se tiver uma maioria absoluta no parlamento, um parlamento que mais não é do que a casa não da democracia mas da mediocridade e de um triste Estado espectáculo sem qualquer sentido de estado e dedicação à causa pública, com deputados completamente reféns dos partidos pelos quais são eleitos (o próprio sistema eleitoral está mal concebido, deveriam existir círculos uninominais e os deputados responderiam apenas perante as populações dos círculos por onde seriam eleitos (veja-se o caso dos Estados Unidos ou do Reino Unido), não tendo que obedecer cegamente a um partido que a mais das vezes invoca um princípio profundamente anti-democrático, a disciplina partidária). Além do mais, este regime tornou Portugal refém de si próprio e de meia dúzia de supostos “anti-fascistas”, muitos deles ferozes adeptos da democracia do pensamento único ou do centralismo democrático. A inserção na União Europeia serviu enquanto estratégia para consolidar internamente o regime, o qual, por falta de qualquer outro tipo de legitimação, passou ainda a basear-se no alegado “anti-fascismo”, para assim perversamente muitos poderem invocar a luta pela liberdade como desculpa para muitos dos seus actos ilícitos, ilegais ou, pelo menos, imorais. Por outro lado, também o sistema judicial está cada vez mais desacreditado. A justiça é lenta, feita para ricos, apenas os pobres vão para a cadeia, é de facto cega mas é através das diversas injustiças que os próprios tribunais cometem todos os dias (e eu falo com conhecimento de causa), e num país onde todos se queixam da corrupção e dizem à boca cheia que desde as autarquias ao governo central está tudo cheio de corruptos, nunca se viu ninguém ser preso por corrupção (salvo a excepção de dois ou três bodes expiatórios como Vale e Azevedo ou, mais recentemente, Oliveira e Costa). Já falei dos três poderes clássicos, resta-me apenas assinalar três pontos concretos enquanto efeitos nefastos deste regime. Em primeiro lugar, quanto à liberdade de expressão, se já não existe censura institucionalizada, como noutros tempos, existe uma auto-censura pelo politicamente correcto e pelo receio de se dizer livremente o que se pensa, um medo não se sabe muito bem em nome de quê. Em segundo lugar, a partidocracia e mediocridade que se tornaram dominantes e esgotam o sistema estatal, afastando quaisquer indivíduos realmente interessados em contribuir para o desenvolvimento do país de uma forma activa (intervindo politicamente), que não apenas por interesses próprios ou de terceiros, os tais interesses que dominam o regime comprometido entre favores e negócios mais ou menos desconhecidos que em nada beneficiam o povo ou a projecção estratégica de Portugal. Por último, o efeito mais nefasto e que mais me preocupa na medida em que penso que coloca o futuro de Portugal em risco: a educação. Desde os primeiros dias após o 25 de Abril de 1974 que o sistema de ensino tem vindo a degenerar, tornando-se cada vez mais facilitista como forma de promover uma alegada igualdade, nivelando-se por baixo os padrões de exigência e manipulando-se resultados apenas para as estatísticas. Para além da liberdade de expressão, a grande aspiração da democracia é generalizar ou possibilitar que o conhecimento se generalize a todos, promovendo os valores da ciência e da excelência, mas isso não pode ser feito através de uma massificação que promova o facilistismo e a mediocridade. Como diria José Régio, “Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí”, ou pelo menos não deveríamos ir por onde temos ido, no que diz respeito à educação.

4. Na sua opinião o que poderia ser feito a nível institucional para melhorar o desempenho da democracia em Portugal?


No seguimento do que referi anteriormente, teria que se rearquitectar completamente o sistema. Para começar, o sistema eleitoral, através da implementação de círculos uninominais, para que os deputados possam exercer o seu mandato de forma verdadeiramente livre, apenas respondendo aos círculos por onde são eleitos, acabando-se também com o desplante actual de imensos deputados que nem sequer conhecem as dinâmicas regionais e locais dos círculos por onde são eleitos. Depois, é cada vez mais premente a necessidade de uma segunda câmara, uma câmara alta no parlamento, de carácter técnico, à semelhança da câmara dos Lordes britânica, e, já agora, convinha que essa segunda câmara fosse um pouco mais profissional e tivesse mais sentido de estado do que muitos dos deputados deste regime têm tido, sendo apenas deputados em part-time e obedecendo aos ditames do partido a que pertencem sem estarem realmente informados de muitas das matérias em que votam. Em terceiro lugar, acabar com o paradoxo de “representar algo que é uno”. Se algo é uno, não é passível de ser representado. Só pode haver efectivamente representação política de diversas regiões, estados federados, interesses da sociedade civil, empresas e organizações (através de lobbys legítimos e legais como acontece em Bruxelas ou em Washington). Como tal, urge regionalizar o Estado português para descentralizar o poder de Lisboa, garantir uma reafectação de recursos do orçamento de estado mais equilibrada e que permita às diversas regiões, especialmente as do interior, desenvolver-se e sair do marasmo da desertificação e do esquecimento a que foram votadas nas últimas décadas. Iria até mais longe, já uma vez no Estado Sentido, logo no início do blog, sugeri uma eventual federação do país, e aqui recupero parte desse texto: “Desta forma se alcançaria um Estado descentralizado através do que Tocqueville ensina, conferindo "uma vida política a cada porção de território, a fim de multiplicar até ao infinito as oportunidades de os cidadãos agirem em conjunto e lhes fazer sentir diariamente que dependem uns dos outros", o que diminuiria a típica assimetria entre o Portugal rural e urbano. Com este projecto se recuperaria o conceito dos corpos intermédios que diminuem a perigosidade do Estado para a liberdade do homem e do cidadão, acautelando e aconselhando o poder vigente.”
Mas, sendo um realista por definição, sei que esta proposta é ir longe demais. Já a da regionalização, creio até que é uma inevitabilidade que venha a acontecer. Num caso ou noutro, parece-me que as regiões ou estados deveriam ou deverão estar representados na tal segunda câmara (à semelhança de Espanha).
Sei que muitos refutam qualquer destas duas propostas recorrendo ao argumento de que tal iria acirrar regionalismos e desunir a nação. Não me parece que tal possa acontecer numa nação quase milenar mas, como mais vale prevenir que remediar, a cereja no topo do bolo, seria ainda optar por uma das duas seguintes hipóteses: porque sou monárquico, seria voltar a uma monarquia (obviamente liberal e democrática), e porque também sou presidencialista, tornar o regime verdadeiramente presidencialista.
Uma coisa é certa, hipóteses e alternativas não faltam. O que falta é vontade política por parte dos actuais detentores dos benefícios provenientes do regime, para sacrificar os seus interesses egoístas em nome de um verdadeiro desenvolvimento, justiça social e igualdade (coisas que muita gente por aí advoga de forma hipócrita). E uma coisa me parece cada vez mais evidente, se nada se fizer, mais cedo ou mais tarde, infelizmente, corremos o grave risco de voltar a ter uma ditadura. 

5. O que considera que pode fazer, ou faz, que contribua para melhorar o desempenho da democracia em Portugal?


Actualmente, para além da intervenção e do clamor pela liberdade de expressão e de pensamento que representa o ter um blog como o Estado Sentido, sou membro associado do Instituto da Democracia Portuguesa, faço parte do projecto da plataforma de comemoração do Centenário da República, e sou ainda presidente de uma associação de jovens, a Juventude Portuguesa do Atlântico. Creio que a melhor forma de contribuir para melhorar o desempenho da democracia em Portugal é através de uma dinamização e participação activa por parte dos indivíduos e da sociedade civil, na senda da tradição liberal anglo-saxónica, quer através do plano das ideias, até porque o poder das ideias tem sido responsável pelas principais mudanças em todo o mundo, quer através do plano prático, agindo proactivamente, porque não podemos apenas passar a vida a criticar do lado de fora, se queremos mudar alguma coisa, é preciso sermos nós próprios a agir.

publicado às 20:23






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