Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Na comunidade muçulmana, a Guerra Santa é um dever religioso, devido ao universalismo da missão islâmica e à obrigação de converter todos ao Islão, pela persuasão ou pela força. Os outros grupos religiosos não têm missão universal e a Guerra Santa não é, para eles, um dever religioso, a não ser para fins defensivos.
Ibn Kaldhun
A cultura europeia é intrinsecamente materialista e já só conserva o Cristianismo como uma relíquia de família. […] É nosso dever estabelecer a soberania em todo o mundo e converter a humanidade aos sábios preceitos do Islão e seus ensinamentos, sem os quais o homem não pode aspirar à felicidade.
Hassan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana
Em Agosto de 2008, uma provocação por parte do então presidente georgiano Mikhail Saakashvili viria a precipitar a invasão da Geórgia ordenada por Vladimir Putin e Dmitry Medvedev. O Ocidente assistiu impávido e paralisado a esta invasão, em especial porque Putin utilizou a retórica de defesa dos valores ocidentais para a justificar, argumentando que a sua acção se destinava a proteger os direitos humanos dos cidadãos russos residentes nos territórios da Abkhazia e da Ossétia do Sul.
Em Agosto de 2016, após a proibição de utilização do burkini em alguns municípios franceses, o Conselho de Estado francês suspendeu esta proibição em resposta a um requerimento apresentado pela Liga dos Direitos Humanos e pelo Colectivo Contra a Islamofobia em França.
O que estes dois exemplos têm em comum é o facto de serem sintomáticos de uma certa perplexidade do Ocidente perante terceiros que utilizam uma retórica característica dos regimes políticos demo-liberais, em que os valores da liberdade, igualdade, tolerância e direitos humanos são traves-mestras, para impor valores contrários a estes. Pior do que esta perplexidade que paralisa ou torna as instituições ocidentais reféns de valores que lhes são estranhos, só a colaboração de muitos ocidentais nestas investidas.
Com efeito, muitos activistas defensores dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e dos direitos das pessoas LGBT, bem como aqueles que, em resultado do domínio do discurso político pelo liberalismo e o neo-marxismo que promovem as ideias de universalismo, multiculturalismo e cosmopolitismo, desprezam ou odeiam as noções de pátria, nação e Estado-nação e a sua própria identidade e herança cultural judaico-cristã, são assaz sensíveis e defensores do acolhimento do Outro, em especial dos muçulmanos, ignorando deliberadamente que estes defendem crenças que estão no extremo oposto das suas. Não é propriamente novidade para ninguém que o islão despreza os direitos humanos, submete as mulheres ao jugo e caprichos dos homens e trata-as de formas inadmissíveis e impensáveis no Ocidente e advoga a morte dos homossexuais, dos infiéis e dos apóstatas. Ainda assim, mesmo em face destas evidências, há sempre quem continue refém do relativismo cultural e do multiculturalismo, não hesitando em pedir que se tenha ainda mais tolerância e respeito por aqueles que nos querem subjugar e aniquilar, aparentando sofrer da Síndrome de Estocolmo, como acontece com Pedro Vaz Patto, que passo a citar (negrito meu):
Não pode conceber-se a integração nas sociedades europeias de imigrantes de outras proveniências culturais como um processo forçado, ou como uma forma de aculturação unilateral. Não pode exigir-se dos muçulmanos que deixem de o ser para se integrarem nas sociedades europeias. O preço dessa integração não pode ser a renúncia à sua identidade. O que se lhe deve exigir é que respeitem outras culturas e identidades, como pretendem que as suas sejam respeitadas. Trata-se de um processo bilateral de diálogo intercultural e de enriquecimento recíproco. Se assim não for, a integração estará condenada ao fracasso. Se prevalecer a ideia de que a integração dos muçulmanos nas sociedades europeias implica alguma forma de renúncia à sua identidade, maior será, neles, a tendência para recusar essa integração, para o ódio ao Ocidente, para o isolamento e para a radicalização.
A frase que assinalei a negrito é sintomática de um certo estado mental de quem não conhece ou prefere ignorar deliberadamente o carácter absoluto, totalitário e universalista do islão, que não só não respeita outras culturas como pretende subjugá-las ou aniquilá-las. Enquanto em muitos países muçulmanos os Ocidentais têm obrigatoriamente de se adaptar ao modo de vida e costumes locais - sob pena de poderem cair nas malhas da justiça islâmica -, os muçulmanos em países ocidentais pretendem impor nestes os seus costumes, a sua cultura, a sua religião e as suas leis e têm vindo paulatinamente a consegui-lo. A tolerância é apenas praticada pelos ocidentais, não havendo reciprocidade de tratamento.
Creio ser acertado afirmar que há um desconhecimento, ou uma ignorância deliberada, em relação ao paradoxo da tolerância e ao que Karl Popper escreveu a respeito deste numa das odes contemporâneas ao demo-liberalismo, a sua obra A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (tradução e negritos meus):
Menos conhecido é o paradoxo da tolerância: A tolerância ilimitada tem de levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo àqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. — Nesta formulação, não quero dizer que, por exemplo, devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; enquanto as possamos contrariar por argumentos racionais e mantê-las sob controlo pela opinião pública, a supressão será certamente insensata. Mas devemos reivindicar o direito de as suprimir, se necessário até pela força; pois pode facilmente dar-se o caso de elas não estarem preparadas para discutir racionalmente connosco, começando por denunciar todos os argumentos; elas podem proibir os seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos utilizando os seus punhos ou pistolas. Devemos, portanto, reinvindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante. Devemos afirmar que qualquer movimento que pregue a intolerância se coloca à margem da lei, e devemos considerar o incitamento à intolerância e à perseguição como crime, da mesma forma que devemos considerar como crime o incitamento ao homicídio, ou ao sequestro, ou ao regresso do comércio de escravos.[1]
Isto devia ser algo sedimentado nas mentes de muitos ocidentais, mas infelizmente não o é e muitas instituições não se apercebem da armadilha em que caem ao defender a tolerância para com algumas práticas culturais de muçulmanos que vivem no Ocidente, em que, muitas vezes, acabam por defender práticas que se caracterizam pela intolerância e que são contrárias aos valores ocidentais. Esta armadilha é um sinal preocupante de desorientação por parte de muitas instituições.
Perante isto, é particularmente oportuno salientar algumas considerações que Mario Vargas Llosa teceu aquando da proibição do véu islâmico nas escolas públicas francesas (negritos meus):
A imigração, por isso, em vez do íncubo que habita os pesadelos de tantos europeus, deve ser entendida como uma injecção de energia e de força laboral e criativa a que os países ocidentais devem abrir as suas portas de par em par e trabalhar pela integração do imigrante. Mas sem que por isso a mais admirável conquista dos países europeus, que é a cultura democrática, se veja beliscada, mas que, pelo contrário, se renove e enriqueça com a adoção desses novos cidadãos. É óbvio que são estes quem têm de se adaptar às instituições da liberdade e não estas renunciar a si mesmas para se acomodarem a práticas ou tradições incompatíveis com elas. Nisto não pode nem deve haver concessão alguma, em nome das falácias de um comunitarismo ou multiculturalismo pessimamente entendidos. Todas as culturas, crenças e costumes devem ter cabimento numa sociedade aberta, sempre e quando não entrarem em colisão frontal com os direitos humanos e princípios de tolerância e liberdade que constituem a essência da democracia. Os direitos humanos e as liberdades públicas e privadas que uma sociedade democrática garante estabelecem um leque muito amplo de possibilidades de vida que permitem a coexistência no seu seio de todas as religiões e crenças, mas estas, em muitos casos, como aconteceu com o cristianismo, deverão renunciar aos maximalismos da sua doutrina – o monopólio, a exclusão do outro e práticas discriminatórias e lesivas dos direitos humanos – para ganhar o direito de cidadania numa sociedade aberta. Têm razão Alain Finkielkraut, Élisabeth Badinter, Régis Debray, Jean-François Revel e aqueles que estão com eles nesta polémica: o véu islâmico deve ser proibido nas escolas públicas francesas em nome da liberdade.[2]
Quem esteja minimamente atento pode facilmente observar que, na Europa, as concessões ao multiculturalismo e ao relativismo cultural têm permitido, a coberto da tolerância, que práticas intolerantes tenham vindo a instalar-se paulatinamente em vários países. Muitos muçulmanos, ao invés de renunciarem aos maximalismos da sua doutrina, têm tentado impô-los. Não surpreendem, por isso, episódios como os relatados por Gavin Mortimer, em que muçulmanos se sentem à vontade para insultar e agredir não apenas mulheres muçulmanas que não adoptam práticas como a de tapar o corpo na totalidade, mas também mulheres europeias. Como ficou patente a propósito da recente polémica do burkini, muitos europeus ignoram esta realidade. Ignoram, como salienta Mortimer, a extensão do extremismo islâmico em França, onde 100 das 2500 mesquitas são controladas por salafistas, ou seja, pela corrente mais puritana e fundamentalista do islão, que defende que todas as mulheres andem sempre cobertas. O burkini é parte da sua estratégia, sendo um símbolo da pureza islâmica que serve como forma de distinção entre as muçulmanas moralmente boas (as que usam o burkini) e as moralmente más (as que não usam o burkini). Naturalmente, existem muçulmanas que não pretendem envergar o burkini e que sofrem pressões por isso mesmo. No meio desta polémica, a maioria das pessoas, mais preocupada em defender a liberdade de vestir o que se queira, não entendeu ou ignorou isto, mesmo quando Nicolas Sarkozy afirmou o óbvio: trajar o burkini é um acto político e se este não for proibido, corremos o risco de que raparigas muçulmanas que não pretendam usar o véu ou o burkini venham a ser estigmatizadas e sofram pressões sociais. Na realidade, situações deste género já acontecem. Mortimer revela que uma organização muçulmana chamada "Femmes sans voile" (Mulheres sem véu) publicou uma declaração no Dia Internacional Mulher em que afirmou que as mulheres que a compõem se recusam a usar véu por consubstanciar uma violência simbólica visível no espaço público, e que os islamistas estão a formalizar a desigualdade entre os sexos na família e na sociedade em detrimento dos valores fundamentais da república francesa.
Aqueles que defendem a suspensão da proibição do burkini, sendo tolerantes com os intolerantes, não percebem que estão a colocar a tolerância em risco; pretendendo promover a liberdade individual, não percebem que estão precisamente a ajudar a reduzi-la; e sendo França o país que tem como mote "Liberté, égalité, fraternité", não deixa de ser irónico que estejam a ajudar a promover a desigualdade. Sustentando as suas decisões em argumentos assentes na liberdade religiosa, não vislumbram os perigosos precedentes que estão a abrir. Importa, por isso, voltar novamente às considerações de Vargas Llosa sobre a proibição do véu islâmico nas escolas públicas francesas, que são igualmente adequadas no caso da proibição do burkini (negritos meus):
As meninas enviadas pelas suas famílias e comunidades ornamentadas com o véu islâmico para as escolas públicas de França são algo mais do que parece ao simples olhar; isto é, são a avançada de uma campanha empreendida pelos sectores mais militantes do integrismo muçulmano em França, que procuram conquistar uma cabeça de praia não só no sistema educativo como em todas as instituições da sociedade civil francesa. O seu objectivo é que se lhes reconheça o direito à diferença, por outras palavras, a usufruir, naqueles espaços públicos, de uma extraterritorialidade cívica compatível com o que aqueles sectores afirmam ser a sua identidade cultural, sustentada nas suas crenças e práticas religiosas. Este processo cultural e político que se esconde por detrás dos amáveis apelos de comunitarismo ou multiculturalismo com que os seus mentores o defendem, é um dos mais potentes desafios que a cultura da liberdade enfrenta nos nossos dias e, segundo me parece, é essa a batalha que no fundo começou a travar-se em França por detrás das escaramuças e encontrões de aparência superficial e episódica entre partidários e adversários de as meninas muçulmanas poderem ou não usar o véu islâmico nas escolas públicas de França.
(…)
Este argumento [o direito de as meninas muçulmanas assistirem às aulas com véu, por respeito à sua identidade e à sua cultura], levado aos seus extremos, não tem fim. Ou, melhor dizendo, se se aceitar, cria uns precedentes poderosos para aceitar também outros traços e práticas tão ficticiamente «essenciais» à cultura própria como os casamentos das jovens negociados pelos pais, a poligamia e, ao extremo, a ablação feminina. Este obscurantismo disfarça-se com um discurso de alardes progressistas: com que direito é que o etnocentrismo colonialista dos franceses de velho cunho quer impor aos franceses recentíssimos de religião muçulmana costumes e procedimentos que são contrários à sua tradição, à sua moral e à sua religião? Fertilizada por ousadias supostamente pluralistas, a Idade Média poderá assim ressuscitar e instalar um enclave anacrónico, desumano e fanático na sociedade que proclamou, a primeira no mundo, os Direitos do Homem. Este raciocínio aberrante e demagógico deve ser denunciado com energia, como aquilo que é: um perigo gravíssimo para o futuro da liberdade. [3]
Aqui chegados, debrucemo-nos agora sobre as questões mais amplas do islão e o fundamentalismo islâmico e as suas relações com o Ocidente. Um dos lugares-comuns mais propagandeados a respeito do islão é o de que este é uma religião de paz. Outro é o de que o fundamentalismo islâmico é uma corrente minoritária do islão que interpreta o Alcorão e os hadith (conjunto de relatos dos ensinamentos e hábitos do profeta Maomé que compõem a jurisprudência e são importantes na interpretação do Alcorão) perversa e erradamente. Ora, a propósito do ataque terrorista a uma discoteca gay em Orlando, um gay muçulmano, Parvez Sharma, escreveu que "Chamar ao islão uma religião de paz é perigoso e redutor. Tal como os outros dois monoteísmos que o precedem, tem sangue nas suas mãos", e assinalou ainda que o cânone islâmico que emergiu após a morte de Maomé sanciona a violência e condena a homossexualidade. A respeito desta última, a sharia é inequívoca. Em Reliance of the Traveller: A Classic Manual of Islamic Sacred Law, encontra-se a seguinte passagem transcrita por Andrew C. Mccarthy:
Sec. p17.0: SODOMY AND LESBIANISM
Sec. p17.1: In more than one place in the Holy Koran, Allah recounts to us the story of Lot’s people, and how He destroyed them for their wicked practice. There is consensus among both Muslims and the followers of all other religions that sodomy is an enormity. It is even viler and uglier than adultery [AM: which is punished brutally, including by death].
Sec. p17.2: Allah Most High says: “Do you approach the males of humanity, leaving the wives Allah has created for you? But you are a people who transgress” (Koran 26:165-66).
Sec. p17.3: The Prophet (Allah bless him and give him peace) said:
1. “Kill the one who sodomizes and the one who lets it be done to him.”
2. “May Allah curse him who does what Lot’s people did.”
3. “Lesbianism by women is adultery between them.”
É também na sharia que se estabelece a pena de morte como castigo pela apostasia, a flagelação como pena por crimes como beber álcool ou o adultério no caso de pré-pubescentes, sendo que nos restantes casos de adultério aplica-se a pena de morte por apedrejamento, entre outras penas para outros crimes que, à luz dos valores Ocidentais, não são crime algum. É bastante esclarecedor consultar algumas passagens da sharia neste artigo de Mccarthy. Conforme este sublinha, a sharia não é uma invenção da Al-Qaeda, do Daesh ou de qualquer outro grupo fundamentalista islâmico. A sharia é a lei islâmica.
Sobre as ideias de que o islão é uma religião de paz e o fundamentalismo islâmico um desvio que seria, até, anti-islâmico, Jaime Nogueira Pinto escreve o seguinte em Ideologia e Razão de Estado:
Existe também muita controvérsia à volta da natureza do Islão: será uma “religião de paz”, como pretende a maioria dos seus seguidores moderados, que consideram o terrorismo islâmico um desvio e uma deturpação dos ensinamentos do Profeta, ou encerra uma mensagem de proselitismo armado, em que a conversão ou a supressão física é a única alternativa dada aos apóstatas, aos ímpios, aos infiéis, aos não-crentes?
Existem nos livros sagrados islâmicos, no Corão (a lei) e nos Hadith (a jurisprudência), passagens, prescrições e disposições que vão num e noutro sentido. Como acontece aliás, com o Antigo Testamento judaico-cristão e até com os Evangelhos. Mas tal como Moisés e ao contrário de Cristo, Maomé foi um profeta armado e tanto o seu estilo guerreiro, épico e violento como a História sangrenta dos primeiros califas e da expansão muçulmana contra Bizâncio e os Persas, da Índia à Península Ibérica, parecem favorecer uma interpretação mais radical do Islão, reforçada pela sua juventude enquanto religião em fase de recuperação do tempo perdido e pelo facto de o uso da força ser recomendado nos próprios textos sagrados. Textos que, na versão ortodoxa, deverão ser interpretados literalmente.
Para esta corrente, o próprio Corão não só não impede a via totalitária do Islão como a encoraja: Maomé é um chefe militar sequioso de conquistas, faz da guerra santa e da morte na guerra santa o mais glorioso objectivo do crente, usa de uma linguagem de grande fúria e virulência, não mostra qualquer espécie de tolerância para com os não-crentes e institui uma teocracia absoluta que não estabelece nem admite distinção entre fé e razão. Terá, assim, criado uma religião radical, que pelo seu empenhamento territorial e político, pode justificar um tipo de totalitarismo ideológico, uma espécie de teocracia revivalista e absoluta.
(...)
Maioritário ou minoritário no mundo islâmico, legitimado ou não pelos textos do Corão, o islamismo radical é uma realidade materializada num movimento ideológico e activista que desencadeou uma guerra contra os Estados Unidos, Israel e os Estados árabes “heréticos”. Estes últimos fazem parte da “Casa da Guerra" porque os seus governantes são considerados ímpios ou apóstatas.[4]
O último parágrafo refere-se à Al-Qaeda, mas é igualmente adequado ao Daesh, sendo apenas de acrescentar que também a Europa se encontra entre os inimigos do islamismo radical. Embora a distinção entre islão e islamismo radical seja útil, a ideia de que o Ocidente não tem problemas com o islão, mas sim com os fundamentalistas islâmicos, é simplista e politicamente correcta, mas não é verdadeira, como assinala Samuel Huntington (tradução e negritos meus):
Alguns ocidentais, incluindo o Presidente Bill Clinton, têm argumentado que o Ocidente não tem problemas com o islão, mas apenas com extremistas islâmicos violentos. Mil e quatrocentos anos de história demonstram o contrário. As relações entre o Islão e a Cristandade, quer a Ortodoxa, quer a Ocidental, têm sido tempestuosas. Cada um tem sido o Outro do outro. O conflito do século XX entre a democracia liberal e o Marxismo-Leninismo é apenas um fenómeno histórico efémero e superficial em comparação com a continuada e profundamente conflitual relação entre o Islão e a Cristandade. Por vezes, tem prevalecido a coexistência pacífica; mais frequentemente, a relação tem sido de intensa rivalidade e pautada por vários graus de guerra quente. As suas "dinâmicas históricas" comenta John Esposito, "... levaram a que as duas comunidades se encontrassem frequentemente em competição e, por vezes, empenhadas num combate mortal por poder, território e almas." Ao longo dos séculos, as fortunas das duas religiões têm ascendido e caído numa sequência de importantes vagas, pausas e vagas contrárias.[5]
Ainda assim, em relação ao islamismo radical, importa também questionar, de acordo com Jaime Nogueira Pinto, se
Estaremos perante um desígnio universal, uma ideologia-religião islâmica que pretende a conversão do mundo aos seus ensinamentos pela palavra e pela força, ou apenas perante um movimento que pretende restaurar a verdadeira fé na área islâmica (o mundo árabe e a Ásia, o Magrebe e a África islamizados), corrigindo e castigando os heréticos e desapossando-os do poder? Se se trata de restabelecer a “casa de Deus” (o verdadeiro Islão), na “Casa da Guerra” (o mundo árabe não ortodoxo) deixando em paz o resto do globo desde que este os deixe em paz, é uma coisa; se se trata de exportar uma religião e converter o resto do mundo, é outra.[6]
No seguimento da passagem supracitada, importa sublinhar que o islão efectua uma distinção entre o dar al-islam, o mundo onde se aplica o islão, ou seja, a casa de Deus, e o dar al-harb, o mundo ou casa da guerra, que, segundo José Adelino Maltez, "seria necessário converter, através de um esforço, dito jihad." Embora o significado de jihad seja disputado pelas várias correntes de interpretação do islão, existem três formas de jihad: "a maior, que tem a ver com o combate do crente contra um inimigo interior, contra as paixões e a inclinação para o mal; a menor interior, que ocorre dentro do próprio mundo islâmico, contra os renegados e os apóstatas, justificando a dominação dos rebeldes e dos tiranos pela força; e a menor exterior, que tem a ver com a expansão do Islão em todo o mundo."[7] Se é verdade que, em relação a esta última, o Alcorão e os ensinamentos islâmicos afirmam que deve ser apenas defensiva e impõem determinadas condições para que os muçulmanos possam pegar em armas - têm de sofrer alguma forma de opressão em relação à prática do islão e ameaças às suas vidas, devem ter sido forçados a deixar as suas casas no local onde ocorre a opressão e só se o opressor continuar a oprimi-los no local para onde se mudaram e a ameaçar as suas vidas é que podem pegar em armas -, e estabelecem também condições em relação ao que é permitido na guerra defensiva - como, por exemplo, civis que não lutem contra o islão não devem ser atacados, mulheres, homens e idosos devem permanecer intocáveis e os prisioneiros de guerra devem ser tratados com respeito - também não é menos verdade que a Al-Qaeda veio romper com estes ensinamentos, tendo Bin Laden, de acordo com Jaime Nogueira Pinto, justificado a guerra total em virtude da desproporção dos meios em relação ao inimigo, inscrevendo-se, desta forma, na linha extremista do wahhabismo,[8] que tem uma visão integrista e puritana do islão. E se a Al-Qaeda trouxe esta novidade, o que dizer do Daesh, cuja violência extrema é uma imagem de marca?
Com efeito, o islamismo moderno, nas palavras de Roger Scruton, "é um exemplo daquilo a que Burke chamou, ao descrever os revolucionários franceses, uma "doutrina armada", ou seja, uma ideologia agressiva apostada em erradicar toda e qualquer oposição."[9] O islamismo promove uma irmandade que "fala secretamente ao coração de todos os muçulmanos, unindo-os contra o infiel,"[10] e levou até a uma confluência entre xiitas e sunitas que esteve na base do chamado ressurgimento islâmico, aparecendo o islão, "pela primeira vez em muitos séculos, (...) - aos olhos de muçulmanos, mas também aos olhos dos infiéis - como um movimento religioso uno e unido em torno de um objectivo comum," o que fica a dever-se, em muito, a dois factores, "a civilização ocidental e o processo de globalização que ela desencadeou."[11] Conforme salienta o filósofo britânico,
No tempo em que o Oriente era o Oriente e o Ocidente era o Ocidente, os muçulmanos podiam consagrar as suas vidas a deveres piedosos e ignorar o mal que prevalecia no dar al-harb. Mas quando o mal se espalha por toda a terra, propondo alegremente liberdades e direitos em vez dos rígidos deveres de um código religioso, e chega a invadir o dar al-islam, despertam os velhos antagonismos e, com eles, a velha necessidade de recrutar aliados contra o infiel.[12]
A própria utilização, com uma pesada conotação pejorativa, do termo infiel (kafir) - embora o cristianismo também tenha utilizado o termo no passado - para designar todos os que não crêem no islão, que devem ser persuadidos a converter-se, pela palavra ou pela força, ou combatidos e mortos, é ilustrativa de como esta religião encara a tolerância e a liberdade religiosa. Segundo Christopher Hitchens,
O islão começou não só por condenar todos os cépticos ao fogo eterno como continua a reivindicar o direito de fazer o mesmo em quase todos os seus domínios e continua a pregar que esses mesmos domínios podem e têm de ser alargados através da guerra. Durante a minha vida, nunca houve uma tentativa de questionar ou sequer investigar as reivindicações do islão que não tenha sido recebida com uma repressão extremamente dura e célere. Assim sendo, temos o direito de concluir provisoriamente que a aparente unidade e confiança da fé são uma máscara para uma insegurança muito profunda e, provavelmente, justificável. Naturalmente, nem será preciso dizer que existiram e existirão sempre feudos sanguinários entre diferentes escolas do islão, resultando em acusações estritamente intermuçulmanas de heresia e profanação e em actos de violência terríveis.[13]
Independentemente das discórdias e conflitos entre as várias correntes do islão, os infiéis são um inimigo comum. A este respeito, vejamos o que afirmou o Ayatollah Khomeini em 1984, citado em O Ocidente e o Resto de Scruton:
Se permitirmos que os infiéis continuem a desempenhar a sua missão de corruptores da terra, tanto maior será o seu castigo. Assim, se matarmos os infiéis para pôr termo à sua actividade [corruptora], estaremos na verdade a prestar-lhes um serviço. Pois o seu castigo final será menor. Permitir que os infiéis permaneçam vivos significa autorizá-los a prosseguirem as suas actividades corruptoras. [Matá-los] é uma operação cirúrgica ordenada por Alá, o Criador... Aqueles que respeitam as regras do Corão sabem que devemos aplicar as leis de qissas [retribuição] e que devemos matar... A guerra é uma bênção para o mundo e para todas as nações. É Alá quem ordena aos homens que combatam e matem.[14]
Embora seja possível encontrar passagens no Alcorão para justificar a ideia de que o islão é uma religião de paz, de acordo com Scruton (negritos meus),
o facto é que a interpretação de Khomeini da mensagem do Profeta encontra confirmação no texto e reflecte precisamente a apropriação do político que tem distinguido as revoluções islâmicas no mundo moderno.
No entanto, os sentimentos de Khomeini não lhe foram inspirados apenas pela sua leitura do Corão, constituindo igualmente o resultado de um exílio prolongado, primeiro no Iraque e a seguir no Ocidente, onde viveu protegido pelos infiéis que pretendia esconjurar pela aniquilação. E demonstram claramente que as virtudes dos sistemas políticos ocidentais são, para uma determinada mentalidade islâmica, incompreensíveis - ou compreendidas, como foram por Qutb e Atta, como falhas morais imperdoáveis. Mesmo desfrutando da paz, bem-estar e liberdade decorrentes de um estado de direito secular, alguém que encara a charia como o caminho único da salvação pode ver nessas vantagens meros sinais de vazio espiritual ou de corrupção. Para alguém como Khomeini, os direitos humanos e o governo secular denunciam a decadência da civilização ocidental, que não consegue erguer-se contra aqueles que a querem destruir e espera em vez disso conseguir apaziguá-los. Mas para o militante islamista não há compromisso possível e os sistemas que se norteiam pelos princípios do compromisso e da conciliação são meros agentes do Diabo.[15]
Aqueles que se encontram reféns da retórica dos direitos humanos e advogam mais tolerância para com práticas muçulmanas que, na verdade, ofendem os direitos humanos, não percebem que estão apenas a sinalizar aos muçulmanos a fraqueza do Ocidente perante os que o querem subjugar. Como Scruton assinalou em 2009, num ensaio intitulado "Islam and the West: Lines of Demarcation", o Ocidente encontra-se num perigoso período de concessão ao islão, em que as legítimas revindicações da nossa própria cultura são ignoradas ou minimizadas como forma de provar as nossas intenções pacíficas.
Que fazer?
José Meireles Graça, a propósito da polémica em torno do burkini, escreveu o seguinte:
Finalmente: É uma atitude inteligente o Estado, em vez de fechar as madraças onde se ensine o ódio ao Ocidente, e impedir a construção de mais mesquitas onde se prega o obscurantismo de uma religião à qual os muçulmanos moderados ainda não impuseram o aggiornamento, andar pelas praias a multar mulheres que tiveram a infelicidade de nascer em sociedades medievais?
Há quem diga, com boas razões, que não. Inclino-me a pensar que sim, não porque a verdadeira guerra esteja aí mas porque, para tratar doenças, nos devemos preocupar com as causas, mas sem desprezar o tratamento sintomático.
Partilho desta opinião. É verdade que há questões muito mais importantes e prioritárias nas relações com o islão. Mas também é verdade que muitas instituições ocidentais têm feito concessões a práticas que violam os valores do Ocidente e que, no meio da desorientação que nelas grassa, talvez já nem saibam bem o que fazer no que concerne às relações com o islão. Ora, é preciso começar por algum lado, nem que seja por alguns dos sintomas.
Muito se fala, em Teoria das Relações Internacionais, de hard power e soft power. É um lugar-comum dizer-se que, frequentemente, o soft power, isto é, a influência, só consegue alcançar os seus objectivos se tiver forma de os alcançar também através do hard power. Soft power sem hard power leva muitas vezes a resultados insatisfatórios.
O mesmo se pode aplicar em relação à forma como as instituições ocidentais devem lidar com as reivindicações do islão nos países ocidentais. Em primeiro lugar, devem abandonar a retórica multiculturalista e perceber a armadilha a que aludi neste post, quando com a intenção de defenderem a tolerância ou a liberdade, acabam por fazer concessões a práticas que colocam estes valores em causa. Em segundo lugar, se as instituições - bem como muitos indivíduos ocidentais - pretendem continuar a pedir tolerância e respeito aos muçulmanos (soft power), têm de estar preparadas para não fazer concessões em tudo o que ofenda os valores ocidentais (hard power), para que os muçulmanos entendam que, no Ocidente, são a cultura e os valores ocidentais que imperam. O Ocidente tem um património cultural e político que tem de ser defendido.
Scruton, na parte final do artigo que acima mencionei, recomenda isto mesmo como forma de nos defendermos do islamismo. Após aludir a sete características definidoras do Ocidente e que o distinguem das comunidades islâmicas, o britânico diz-nos que temos de estar preparados para não fazer concessões aos que querem que nós "troquemos a cidadania pela sujeição, a nacionalidade pela conformidade religiosa, a lei secular pela sharia, a herança judaico-cristã pelo islão, a ironia pela solenidade, a auto-crítica pelo dogmatismo, a representação pela submissão e a alegria de beber pela abstinência censória. Devemos tratar com desprezo todos os que exigem estas mudanças e convidá-los a viver onde a sua forma de ordem política preferida já se encontra em vigor. E devemos responder à sua violência com a força que seja necessária para contê-la."
1 - Karl Popper, The Spell of Plato, vol. 1 de The Open Society and Its Enemies (London: Routledge, 2003), 293.
2 - Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo (Lisboa: Quetzal Editores, 2012), 98.
3 - Ibid., 96-97.
4 - Jaime Nogueira Pinto, Ideologia e Razão de Estado (Porto: Civilização Editora, 2013), 906-907.
5 - Samuel P. Huntington, The Clash of Civilizations (Londres: Simon & Schuster, 2002) 209.
6 - Jaime Nogueira Pinto, Ideologia e Razão de Estado, 906.
7 - José Adelino Maltez, Curso de Relações Internacionais (São João do Estoril: Principia, 2002), 93.
8 - Jaime Nogueira Pinto, O Islão e o Ocidente, 4.ª ed. (Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2015), 150-151.
9 - Roger Scruton, O Ocidente e o Resto (Lisboa: Guerra e Paz, 2006), 102.
10 - Ibid., 114.
11 - Ibid., 111.
12 - Ibid., 111-112.
13 - Christopher Hitchens, Deus não é grande, 2.ª ed. (Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2010), 152.
14 - Roger Sruton, O Ocidente e o Resto, 108.
15 - Ibid., 108-109.
Esta semana assisti ao Tanto para Conversar, o programa nocturno de conversa amena na RTP2, na qual Ricardo Araújo Pereira, na vertigem do seu establishment, justificou a sua opção em ser de esquerda e comunista socorrendo-se do pensamento de Norberto Bobbio no seu livro Direita e Esquerda. Cito RAP: “As pessoas de esquerda acham que as pessoas são mais iguais do que desiguais; para as pessoas de esquerda é natural que a sociedade tenda a reproduzir essa igualdade; as pessoas de direita acham que as pessoas são mais desiguais do que iguais, portanto para as pessoas de direita, se umas têm mais mérito do que as outras, é até justo que a sociedade reproduza essa desigualdade”.
Pode dizer-se que na cabeça comunista de RAP o pensamento de Bobbio faz todo o sentido excepto, diria eu, em dois pequenos detalhes. O primeiro detalhe é que a esquerda comunista não vê os homens todos como mais iguais, distingue claramente "os ricos” como inimigos da sociedade. O segundo detalhe é que a esquerda comunista não reproduz a igualdade dos homens, utiliza apenas meios “extraordinários” para erradicar "os ricos”. Também nisto da esquerda/direita o diabo está, como sempre, nos detalhes.
Se há coisa que abunda em Portugal, são as sedes locais dos partidos políticos. Edifícios com arquitectura de traça antiga, em ruína ou não, ou escritórios que ocupam um piso de um prédio recente onde abunda alumínio acastanhado. Não sei qual o volume do património predial dos partidos, mas não deve ser coisa pequena. Nem vou mencionar as sedes temporárias de candidaturas ao poder, às eleições, sejam autárquicas ou de outra natureza. Não vou por esse caminho de saber se a cedência de espaços foi feita por amor à camisola pelo patrão imobiliário da terra ou se o mês do inquilino irá ser pago de outra maneira, com calma quando chegares ao posto. Não vale a pena esgravatar nessa agência que decerto haverá belas histórias para contar sobre aluguéis pagos em género ou espécie, no dia em que os compadres chegam ao poder. Quanto ao IMI, é mais que acertado que os partidos políticos paguem esse imposto. Não vejo razão para que as residências ideológicas sejam dispensadas desse ónus. Não sei nem me interessa que nos Ratos, nos Caetanos, nos Caldas ou nas Liberdades os ocupantes não se sirvam dos espaços para fins residenciais (embora muitas vezes utilizem a sede para dormir politicamente). A inclinação política ou a paixão ideológica não pode servir de pretexto para eximir algumas personalidades jurídicas das suas responsabilidades contributivas. Dirão alguns que o facilitismo tributário é para estimular o gosto pela causa pública, pela discussão cívica em prol da sociedade, para garantir a participação política. Causa pública uma ova - vejam-se os resultados das últimas três décadas de invocação do superior interesse e do bem colectivo. Qualquer terriola de Portugal tem sempre uma Rua 25 de Abril, e, ao virar da esquina, ou na própria rua revolucionária, lá estão as cores e o emblema do partido tatuados na fachada de cal branca. A haver uma bandeira, geralmente essa já perdeu a cor original e às vezes vê-se que foi traçada pelo bicho do vento que não perdoa, que não aprecia a basófia gratuíta que sai das janelas do grémio ideológico, das bocas desses lideres. Qualquer dia, já que existe essa lacuna na lei, o T3 de uma família desempregada se transforma em secção partidária para chupar essa vantagem do tutano fiscal - para aproveitar o perdão do IMI, com cozinha e casa de banho, para os militantes em regime de estadia de longa duração. Não sabe o governo onde ir buscar o graveto que a Troika exige? Façam-se à estrada com uma roulotte das finanças, montem o acampamento e efectuem o levantamento das sedes e secções dos partidos que se encontram em cascos de rolha e além-mar. E façam as contas, mas façam as contas como deve ser. Apliquem a coima retroactivamente (com juros acrescidos, naturalmente) e ponham os partidos a pagar a conta também.
Em dia de Taça de Portugal, pergunto porque razão, o actor Ruy de Carvalho terá honrado mais o país ao longo de setenta anos, do que o mestre marceneiro Rui do carvalho, que esculpiu a madeira dessa árvore durante igual período de tempo, sem sequer ter recebido as comendas, as ordens e as medalhas com que o actor foi agraciado? Com todo o devido respeito, a cultura tem muito que se diga, sobretudo quando os seus intérpretes julgam por um instante que contribuem com mais mestria para o país, do que aqueles, que em vez de pisarem palcos, pisam as uvas de sol a sol, de um qualquer outro digno mester. As palavras de rapina, soam-me a falsa modéstia, e servem para acentuar ainda mais a fractura que divide este país, entre iluminados e pobres coitados ignorantes. Não pediu nada em troca? - afirma o artista. Tivesse escolhido outra profissão. O actor Ruy de Carvalho, ao colocar-se em bicos de pé, fez-se ouvir na última fila da plateia, mas não pelas melhores razões. Teria preferido que não tivesse afirmado o seu desgosto, e fosse um mero operário, a excepção, o simples contra-regra. O problema dos vultos e intocáveis do país, é pensarem que podem dizer o que bem entendem, e que as palavras apenas um sentido têm. Ao ataque ao músculo da cultura, este representante poderia se ter defendido com mais finesse e respeito pelas gentes do povo, que tantas e tantas vezes o aplaudiram. E nunca o vaiaram.
Roger Scruton, Postmodern Tories:
«If we are to confront these ideas, it seems to me, we must begin from Plato’s famous distinction between philosophy, whose goal is truth, and rhetoric, whose goal is persuasion. In a media-dominated democracy truth counts for very little, while persuasion is everything. Looming over the battlefield of modern politics is the rhetoric of equality. It fights for any side that can capture it, defending traditional conservatism as equality of opportunity, and socialism as equality of outcome.
Philosophically speaking the idea that all human beings are equal is questionable. Equal in what respect, for what end, and in what perspective? Are criminals to be treated equally with law-abiding citizens, for instance? Nevertheless, from the rhetorical point of view, the very same idea of equality is the premise of every winning argument. Equality demands equal treatment for disadvantaged and advantaged children, and therefore exams that make no real distinctions between them. It demands equal treatment for nationals and for migrants, and therefore the abolition of effective border controls. It demands equal treatment for gay and straight people, and therefore gay marriage.
Looming slightly less prominently over the battlefield is the rhetoric of freedom. Philosophically speaking it is again highly questionable whether human beings are or ought to be free: free from whom, to do what? In the name of freedom men abandon their families; schools abandon discipline; universities abandon the old and tried curriculum in order to offer students a wider choice of degrees. Freedom means opportunity, and opportunity means that the canny, the determined and the strong rise to the top, enjoy those phenomenal city salaries, and join the new class of global fat cats. Dressed up in this way, individual freedom cries out for top-down control.
Yet freedom also opens the road to the rest of us; educational freedom creates opportunities for those at the bottom of society; economic freedom protects the volunteer and the entrepreneur against the smothering cloak of regulation; freedom of conscience protects us from the rule of priests and mullahs, while freedom of speech enables us to scorn bigots and bullies without fear of reprisal. Freedom, in this sense, is unquestionably a good thing—unless it is abused. And there’s the rub. What counts as abuse, who is to decide, and what should be the penalty? The philosophy here is deep and difficult but the rhetoric is easy. Matthew Arnold summarised the matter succinctly: “a very good horse to ride; but to ride somewhere.”
Reading these two books I came to the conclusion that the current difficulties for the conservative cause lie exactly in the tension that worried Plato. The philosophy of conservatism, launched two centuries ago by Adam Smith, Edmund Burke and David Hume, and on the continent by GWF Hegel and Joseph de Maistre, is, in my view, difficult, intricate and true. Today’s winning political rhetoric, by contrast, is simple, persuasive, and false. The theory of knowledge and its social function that inspires Michael Gove cannot silence the loud cry of the teachers’ unions for equality whatever the cost. The subtle arguments for the market economy developed by the Austrian school will never extinguish the zero-sum fallacy, which says that if some are rich it is because others aren’t. Burke’s defence of common law justice, like Hegel’s defence of the family and the corporation, has little weight against the rhetoric of “compassion.” Even those on the right who believe that the long-term effect of this rhetoric is to make everyone dependent on the state, and the state dependent on borrowing from a purely imaginary future, will go on repeating it. For the ruling belief is that “in the long run we are all dead,” as Keynes famously put it—none of us will have to pay for current policies and meanwhile it is best to look caring and nice. The philosophy of conservatism has nothing to say in response to this. For it is not about appearing nice. It is about conserving the foundations of civil society. Whatever rhetoric you choose for promoting that cause, the other side is going to describe you as “nasty.” For rhetoric is about appearance, not truth.»
Alberto Gonçalves, Branca de Neve procura emprego:
«É provável que uma hipotética saída da União Europeia agravasse ainda mais a nossa situação económica. Mas talvez melhorasse a nossa saúde mental. No meio de uma crise que coloca a sua própria existência em risco, o Parlamento Europeu dedica-se a demonstrar que não se perderia muito: não satisfeito por possuir uma absurda Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade dos Géneros, o PE permite que a dita comissão se alivie de palpites acerca de matérias que sempre os dispensaram.
Até agora, essa destravada fraternidade tentava interferir no mundo real e entretinha-se a propor quotas em empresas e delírios assim. Agora, soube por Helena Matos (blasfemias.net), a referida Comissão avança para o mundo da ficção e quer abolir das escolas ou no mínimo temperar a influência das obras literárias infanto-juvenis que atribuem papéis "tradicionais" aos elementos masculinos e femininos da família. Livrinho em que o pai saia para o trabalho e a mãe fique a cuidar da prole irá, se a coisa vingar, directamente rumo ao index dos eurodeputados.
O index será vasto. Não estou a ver nenhum clássico da literatura do género em que a personagem do marido passe os dias a mudar fraldas e a da esposa assuma um lugar de relevo na sociedade. Mesmo na "Branca de Neve", que está longe de representar um agregado familiar retrógrado (conheço pouquíssimas senhoras que coabitem em simultâneo com sete cavalheiros, para cúmulo de estatura alternativa), a verdade é que a heroína trata das arrumações caseiras enquanto os seus sete parceiros labutam nas minas. E quanto a Huckleberry Finn, criado na ausência da mãe e na presença de um pai alcoólico, erradica-se ou não? E os órfãos de Dickens? E, uns degraus abaixo, os pobres sobrinhos sem tia da Disney? Além disso, a Comissão dos Direitos da Mulher e Etc. é omissa no que toca às fábulas. Se, por exemplo, é indesmentível que, ao invés da cigarra, a formiga trabalha como uma desgraçada, nem Esopo nem La Fontaine sugerem que a dita seja fêmea e unida pelo matrimónio a um formigo que colabora nas tarefas do lar e respeita o "espaço" da companheira. Que obras, em suma, corresponderão aos requisitos de igualdade? Há uma imensidão de dúvidas.
Por sorte, há um PE recheado de certezas, que reivindica à Comissão Europeia legislação capaz de regulamentar (um verbo predilecto) o equilíbrio conjugal nas histórias para petizes - no papel e também no cinema, na televisão, na publicidade e onde calhar. O argumento (digamos) é o de que os "estereótipos negativos de género" minam a "confiança" e a "auto-estima" das jovens, limitando as suas "aspirações, escolhas e possibilidades para futuras possibilidades [a repetição não é gralha] de carreira". Quem fala assim não é gago: é semianalfabeto na medida em que escreve com os pés, arrogante na medida em que submete a liberdade criativa à engenharia social e um bocadinho maluco na medida em que confunde a fantasia com o quotidiano.
Não tenho opinião sobre os modelos imaginários que devem orientar as criancinhas. Em compensação, parecem-me evidentes os modelos palpáveis de que as criancinhas devem ser protegidas a todo o custo - a menos, claro, que os pais lhes desejem um emprego em Bruxelas, a incomodar o próximo para entreter o ócio e realizar uma vocação.»
Mr. Brown, Murro na mesa
Pedro Pestana Bastos, A decisão do Tribunal Constitucional (uma crítica jurídica)
Nuno Gouveia, Equidade
Pedro Braz Teixeira, A ADSE e a CGA são constitucionais?
Nuno Gonçalo Poças, Inconstitucional: Uma perspectiva de quem se está a cagar para o juridiquês
LR, Equidade I e Equidade II
Ricardo Arroja, Between a rock and a hard place
João Gonçalves, Decisões políticas
João Távora, Um estranho princípio da igualdade
A paixão moderna pelo conceito de igualdade é um fenómeno verdadeiramente inexplicável em termos minimamente racionais, porque mais religioso e dogmático que boa parte das religiões. Se os liberais têm na liberdade individual o princípio primeiro, não hesitam, porém, em colocar dúvidas sobre as suas acepções - ou não seja a metodologia científica, especialmente em ciências sociais, reflexo em grande medida dos ensinamentos de Karl Popper. Aos igualitaristas, a dúvida é uma coisa que não lhes assiste e não descansam enquanto não nivelam tudo e todos por baixo, em nome do progresso (sabe-se lá de qual progresso, mas isso também não lhes interessa muito). É um mistério de fé, na verdade.
Há uns anos debrucei-me sobre este tema, evidenciando como o próprio Rousseau demonstrou que a desigualdade é o motor de uma sociedade livre, numa das suas primeiras obras. A respeito desta temática, ler este artigo de Gary Becker, de onde saliento os seguintes parágrafos:
«Many people, especially academics and other intellectuals, would find the phrase “good inequality” jarring. They can hardly think of any aspect of inequality as being good. Yet a little thought makes clear that some types of economic inequality have great social value. For example, it would be hard to motivate most people to exert much effort, including creative effort, if everyone had the same earnings, status, prestige, and other rewards. Many fewer individuals would engage in the hard work involved in finishing high school and going on to college if they did not expect their additional education to bring higher incomes, better health, more prestige, and better opportunities to marry.
(...)
Although inequality in many developing and developed countries grew during the past thirty years, world income inequality actually declined. Credit this to a much more vigorous growth in per capita income in populous developing countries—Brazil, China, India, and Indonesia, for example—than in the rich Western countries and Japan. World poverty declined enormously, and so did the income gap between poorer and richer countries. Thus, a large decline in the bad kind of world inequality.»
Aqui fica uma passagem de um excelente artigo, na Foreign Affairs:
Those alliances will have to go far beyond government-to-government contacts, to embrace civic society, nonprofit organizations, and the private sector. Democratic states must recognize that their citizens' use of technology may be a more effective vehicle to promote the values of freedom, equality, and human rights globally than government-led initiatives. The hardware and software created by private companies in free markets are proving more useful to citizens abroad than state-sponsored assistance or diplomacy.
(Originalmente publicado no blog do PEPAC - Porque os Estágios Parecem Algo Complicado)
Nos anos 90 os estudantes e jovens portugueses foram apelidados de "geração rasca". Na primeira década do século XXI, passámos a ser uma geração quase acefalamente conformada com o status quo de uma sociedade onde a incompetência, a falta de transparência e a corrupção generalizada se tornaram apanágio. Emigramos, olhamos para o lado ou simplesmente deixamo-nos levar nesse dolce fare niente, encolhendo os ombros perante situações que por acontecerem todos os dias, se tornam banais e deixam de nos indignar, acabando por, no fundo, enveredar pelo clássico axioma que nos diz que "se não os podes vencer, junta-te a eles".
Somos, na verdade, o espelho de uma sociedade civil muito pouco vibrante e que em pouco ou nada responsabiliza os seus decisores políticos, que nas últimas décadas em demasia se têm preocupado com as gerações dos direitos adquiridos, com o aumento (desmesurado) do Estado sem olhar ao mérito e à qualidade dos seus funcionários (recrutamentos e concursos públicos viciados à partida, cunhas para familiares e amigos ou sistemas de avaliação perniciosos e que originam negociatas entre funcionários, são apenas alguns dos exemplos do que vergonhosamente se vai passando na administração pública) em detrimento dos jovens qualificados que podem ser uma mais valia para o país. Tudo isto enquanto o sistema educacional se tem vindo a tornar cada vez mais facilitista, a justiça cada vez mais descredibilizada perante a opinião pública, e os políticos cada vez mais desacreditados perante os cidadãos.
Qualquer democracia liberal digna dessa qualificação deve ter uma sociedade civil perante a qual haja accountability das acções do Estado. Não, não podemos continuar a deixar passar em branco situações gritantes e escandalosas que deveriam envergonhar não só os jovens como qualquer cidadão. Afinal, ser cidadão implica, para além de um vínculo à civitas, a participação política e o direito de exigir que os decisores prestem contas dos seus actos. Já dura há demasiado tempo um certo sentimento de impunidade e de desresponsabilização que reina entre quem nos tem vindo a (des)governar, entre quem não tem sentido de causa ou ética pública. Esta, deve pautar-se, acima de tudo, pela transparência, pela competência e pela igualdade no tratamento de todos perante as mesmas oportunidades.
Competência, transparência e tratamento igual, três conceitos-chave que importa reter quando pretendemos analisar o que tem acontecido com o processo de selecção do PEPAC. Esta é, sem dúvida, uma iniciativa revestida de boas intenções, nomeadamente, dar qualificações a jovens recém-licenciados que, por sua vez, contribuem com os seus conhecimentos para que a máquina estatal se torne mais eficiente. Isto, pelo menos, em teoria.
Se pensarmos em termos de competência e tratamento igual para todos, e dado que se trata de um processo de recrutamento, estamos em crer que seria apenas normal que se solicitasse a submissão de Curriculum Vitae e se realizassem entrevistas. Ora, qual o espanto inicial quando não só tal não acontece como as candidaturas foram realizadas através de um simples formulário onde era solicitado o nome da licenciatura e se o candidato já era detentor de uma pós-graduação, mestrado ou doutoramento, as médias de licenciatura e ensino secundário, competências na área de informática e línguas e se possuía experiência profissional. No fim, uma fórmula matemática calcularia a pontuação do candidato com base nestas informações, como consta do documento relativo aos parâmetros de avaliação.
Mas, acontece que, não diferenciando se as licenciaturas em causa são de 3 anos (de acordo com o regime de Bolonha) ou 4 anos (regime pré-Bolonha), por exemplo, está-se a tratar de forma igual o que é per se desigual, o que encerra em si, paradoxalmente, uma profunda desigualdade. Não diferenciando sequer as Universidades, dado que não era solicitada informação sobre a instituição de ensino onde o candidato obteve o grau de licenciado, está-se, novamente, a tratar de forma igual o que é desigual - até porque existem vários rankings e indicadores nacionais e internacionais de avaliação da qualidade das Universidades. E aplicando uma fórmula matemática generalista a dados que pouco informam sobre quem é, na realidade o candidato, está-se a tratar de forma igual pessoas que são todas elas diferentes entre si, porque cada ser humano é único e irrepetível. Não solicitando o CV (onde se deve ressalvar o chamado hidden curriculum (actividades extra-curriculares, experiência profissional, competências técnicas e artísticas etc), que é, a mais das vezes, bem mais importante do que o grau académico de que se é detentor) nem realizando entrevistas, acabou por se tratar 25 mil candidatos com o desdém de os considerar apenas um produto de uma fórmula matemática. Isto é, no mínimo, desumano e arrogante, e só demonstra a incapacidade da Administração central para processar de forma competente a informação. Deixámos de ser cidadãos para passarmos a ser um número, para passarmos todos a ser supostamente iguais, quando não há dois seres humanos exactamente iguais entre si. Mais uma vez, paradoxalmente, um suposto pressuposto de igualdade, só conduziu a uma profunda desigualdade de tratamento.
E a falta de competência veio ainda mais ao de cima quando após saírem os resultados, muitos candidatos começaram a falar entre si e a verificar incongruências como as que foram reportadas aqui. Pessoas que deveriam ter pontuações totais inferiores em relação a outras foram colocadas à frente destas.
Do ponto de vista da transparência, e sendo este um concurso público, seria apenas normal que as candidaturas de todos os jovens fossem disponibilizadas online. E foram-no, mas apenas nos primeiros dias em que saíram as listas de candidatos, e ainda no primeiro dia em que saíram as listas de colocados. A partir daí, nunca mais foi possível aceder aos dados dos vários candidatos, o que, desde logo, lança suspeitas sobre o processo de selecção. É mais que legítimo levantar dúvidas sobre se não houve manipulação dos dados, sobre se mesmo os dados solicitados foram tratados correctamente (o que sabemos que não foram, em decorrência do que escrevemos no parágrafo acima), e sobre porque não é possível visualizar os dados dos candidatos e seleccionados, como foi em dada altura.
Onde ficam então a competência, a transparência e a igualdade? Pura e simplesmente na gaveta. Além do mais, em época de crise financeira estrutural grave, em que uma gestão eficiente e valorização dos recursos disponíveis devem ser a tónica da administração pública, não deveria o Estado preocupar-se em realizar um concurso pensado e planeado de forma competente?
Entretanto, milhares de jovens que se candidataram a este programa têm falado sobre isto. Têm escrito por aí no facebook e blogs, dando conta deste tipo de irregularidades. A comunicação social e o Governo mantêm-se completamente mudos.
Foram enviados cerca de 700 e-mails, entre contactos dos vários jovens envolvidos neste grupo, imprensa, universidades, e governo. Note-se, foi enviada divulgação desta causa para todos os grandes órgãos de comunicação social do país, e para os gabinetes de todos os Ministros e Secretários de Estado. Exigimos, nada mais nada menos do que ser ouvidos, porque é preciso dizer "basta". Basta deste sentimento de impotência perante um Estado que está cada vez mais distante dos cidadãos, que prejudica deliberadamente os jovens e que é inerentemente injusto. Basta deste sentimento de impotência perante a ditadura da incompetência, da corrupção generalizada e do "se não os podes vencer, junta-te a eles".
Independentemente de quaisquer filiações ideológicas ou partidárias, de quaisquer crenças ou religiões, ou da idade, o que está em causa é a necessidade de alertar para uma profunda injustiça e para a gritante incompetência dos decisores políticos e da burocracia estatal, mais até do que no que diz respeito a este tão propagandeado PEPAC. Este é apenas mais um passo que leva a sociedade civil a vergar-se perante um Estado profundamente injusto. Juntem-se a nós, jovens e menos jovens, candidatos ao PEPAC e descontentes, porque apenas juntos poderemos fazer-nos ouvir perante quem nos anda há muito a enganar.
Porque mais vale quebrar que torcer, mais vale enfrentar do que vergar, mais vale ser ouvido do que simplesmente encolher os ombros, juntem-se a nós no perfil do Facebook Pepac Estágios, no grupo também no Facebook, deixem-nos comentários nestes e no blog, enviem-nos e-mails para pepac2010@gmail.com com sugestões e a relatar as situações que conhecem que permitam desmacarar este logro. Ficamos a aguardar!
Como por várias vezes tenho escrito, o conceito de igualdade inspirado em Rousseau é uma das ideias mais escravizantes de todos os tempos. Berlin, Popper, Hayek, Schumpeter o demonstraram magistralmente. O liberalismo, no entanto, só existe em relação com o conceito de igualdade, não em contraposição, mas com um conceito de igualdade diferente do de Rousseau. O conceito de igualdade de condições à partida. Significa que todos devemos ser tratados da mesma forma, limitados apenas pelo conhecimento que detemos, e que nos permite diferentes graus de realização pessoal. Ainda podemos fazer entrar na teorização o conceito de liberdade negativa - liberdade como ausência de coerção por parte de terceiros - do governo limitado, como forma de assegurar a difusão de poder que diminui a perigosidade do Estado para o indíviduo, e o Rule of Law, i.e., o Estado de Direito. Não interessa para os casos concretos que aqui quero deixar. E esses são apenas casos que demonstram a desigualdade no tratamento dos diversos indivíduos por parte do Estado português.
Hoje, nos correios, contava uma senhora no balcão ao lado que o filho e uns amigos haviam sido assaltados por um bando de delinquentes, em relação aos quais a polícia afirmou não poder fazer nada. Novamente concluí que o Estado português, por alguma razão, esqueceu-se que é a única entidade que detém o monopólio da força legítima - alguém se recorda, por exemplo, dos acontecimentos na Quinta da Fonte?
Outra situação com a qual a sociedade se tornou conivente: os arrumadores de rua. Isto é particularmente gravoso em Lisboa, e todos sabemos do que se trata, i.e., uma coacção e uma chantagem moral com que nos habituámos a conviver, sendo uma situação à qual as autoridades não fazem frente.
Recordo-me ainda de outra, os delinquentes que andam de autocarro sem pagar, em relação aos quais os motoristas da Carris nada fazem, ao passo que se um qualquer cidadão que regularmente utilize este serviço se esquecer de carregar o passe ou de comprar o bilhete, não se livra de uma pesada multa.
Se em vez de bandos de delinquentes e marginais, um mero cidadão cumpridor dos seus deveres se atrevesse a semelhantes tropelias, as devidas autoridades, consoante a questão em causa, logo o tratariam de forma implacável e exemplar. Constata-se, logicamente, que há uma desigualdade que subverte a ideia de igualdade, quer a de Rousseau, quer a de condições iguais no tratamento.
Mas, mais importante que estas constatações de facto que qualquer cidadão pode verificar, é o que a funcionária dos correios que me atendeu revelou. Cerca de 12000 euros foi quanto recebeu uma família cigana que ali levantou diversos vales no valor de cerca de 2000 euros. Como não tinha dinheiro suficiente em caixa e sabia que os reformados ali se deslocariam no mesmo dia para levantar as míseras reformas, a funcionária pagou alguns vales e pediu para voltarem mais tarde, guardando algum dinheiro para os idosos que habitualmente ali se deslocam. A família cigana insurgiu-se por não receber os 12000 euros de uma vez e ter que se deslocar mais tarde ao posto dos correios, começando a partir o que encontrou à mão.
O Estado português, não se sabe bem porquê, para além de se esquecer de que detém o monopólio da força legítima e que a todos deve tratar por igual (o que não faz, ao contrário do que apregoa), despreza aqueles que necessitam do seu apoio - quantos não passam fome no nosso país? quantas crianças nada mais têm como refeição do que o que a acção social escolas lhes dá na escola? quantos idosos mal conseguem sobreviver com míseras reformas, depois de uma vida inteira de trabalho? quantos idosos morrem enregelados e com gripe no Inverno? - e ainda privilegia os que o afrontam ilegalmente, os que dele se aproveitam indevidamente e que em nada contribuem quer para os cofres do Estado, quer para a coesão e desenvolvimento da sociedade. O Estado português efectivamente trata os seus cidadãos de forma desigual, recompensando a marginalidade e penalizando os que cumprem os seus deveres.
Isto não são juízos de valor. São meras constatações e juízos de facto. Cada qual tire as suas conclusões.
P.S. - Não me enganei. Era mesmo a fotografia do Palácio de Belém que queria colocar aqui. As situações descritas passaram-se e passam-se nas suas imediações.
Há dias diziam-me uns amigos que eu tenho andado demasiado dócil na blogosfera, sem implicar com ninguém e mesmo sem ser tão assertivo, para não dizer corrosivo, como costuma ser apanágio dos meus textos. Ora então hoje vou implicar, embora saiba de antemão que nem devo obter qualquer réplica, mas também não interessa.
Eu gostava muito de ser de esquerda. Juro que gostava de só ter certezas absolutas, ser moralmente arrogante, intolerante e ter a certeza absoluta que sei o que é melhor para todos os outros. Feliz ou infelizmente deu-me para ser de direita, e liberal ainda por cima. Outros há, neste país há tanto tempo cheio de preconceitos de esquerda, que continuam nessa senda a tentar enganar toda uma nação. Daniel Oliveira é apenas mais um. Veja-se o excelente artigo do Rodrigo Moita de Deus na edição de hoje do i e compare-se com o contraditório intelectualmente desonesto e conceptualmente ignorante e, pior, arrogante, de Daniel Oliveira.
Daniel Oliveira sofre do síndrome típico da esquerda baseado nos ensinamentos de Rousseau (o tal que foi o maior inimigo da liberdade de todos os tempos), a busca pela igualdade, uma abstracção que em muito tem sido responsável por certos caminhos para a servidão. Acha também que a democracia só é democracia porque há eleições. E demonstra mais uma vez a sua ignorância ao confundir monarquia com aristocracia, e julgando que os monárquicos querem é recuperar os privilégios de outrora - quanto a isto o João Pedro já aqui desmontou esta falsa ideia:
"Já a ideia de "meninos-bem", como disse atrás, é chão que deu uvas. Há monárquicos de direita e de esquerda, dentro e fora dos partidos, em todos os estratos sociais, nas universidades, nas artes e letras, na diplomacia, na imprensa e nas forças armadas. Se durante uns tempos eram reduzidos à imagem dos bigodes enrolados e capotes alentejanos (por vezes por culpa própria, fechando-se um pouco à sociedade), hoje só os néscios - ou os demagogos, descendentes directos dos governantes de 1911- é que recorrem à caricatura."
Mas Daniel Oliveira acha também que só há privilégios hereditários em monarquia, e insurge-se contra tal dizendo que é um ultraje não poder chegar a Chefe de Estado por não ter o sangue certo. No fundo, o que Daniel Oliveira parece ter, tal como todos os que se costumam pautar por este argumento, é um desejo secreto de vir a ser Presidente da República. E está disposto a sacrificar toda uma nação e um eventual projecto de desenvolvimento real e sustentado do país em nome desse seu desejo. Saberá, no entanto, e muito bem, que na III República não precisa de ter o sangue certo para ser Presidente, mas precisa de ter as opiniões, as acções e as filiações partidárias certas.
Posto que, para não variar, os parcos e fracos argumentos dos alegados republicanos se limitam a questões relativas aos conceitos de igualdade, legitimidade, hereditariedade e democracia, em relação aos quais costumam ser bastante ignorantes, desconhecedores ou intelectualmente desonestos, aqui fica um texto que no início deste ano escrevi em resposta ao desafio lançado pelo Tiago Moreira Ramalho no Corta-Fitas. Sei que Daniel Oliveira nem se dará ao trabalho de o ler, ele já tem as respostas e as certezas todas. Mas, caro leitor, não se deixe enganar por quem só lhe quer mandar areia para os olhos:
Não estivesse eu atafulhado em trabalhos, curiosamente, um sobre o reconhecimento da I República pela Inglaterra, e demorar-me-ia muito mais do que apenas esta breve nota a respeito do debate iniciado pelo Tiago Moreira Ramalho, que é de tomar em apreço pois é para isto mesmo que a blogosfera mais deveria servir, o debate de ideias. Sublimes como sempre, o Miguel e o Nuno deram já as suas respostas, e aconselho ainda a ler o João Gomes e os comentários do Leonidas, Rui Monteiro e Ricardo Gomes Silva aqui e ali.
Há dois conceitos que gostaria de esclarecer brevemente pois claramente carecem de uma operacionalização não efectuada pelo Tiago Moreira Ramalho ou por quaisquer outros republicanos neste debate (basta atentar no programa do Prós e Contras sobre o tema), nomeadamente os conceitos de legitimidade e democracia.
Recorrendo aos clássicos ensinamentos de Max Weber, pode-se dividir a legitimidade em três tipos, a legal/racional, a tradicional/histórica e a carismática. Actos eleitorais validam apenas a legitimidade legal, enquanto os Reis possuem pelo menos dois quando não mesmo os três tipos de legitmidade, a carismática porque de certa forma ligada a um elemento transcendente, a mais das vezes religioso (veja-se o caso da Rainha de Inglaterra), a tradicional porque repousa no Rei o peso da História da nação que representa, e a legal pois tal como refere o Miguel Castelo-Branco "De facto, na constituição histórica como no liberalismo, o Rei é imputável e responsável pelos seus actos, no exercício de funções ou fora delas. Um Rei que não cumpra as suas obrigações ou não se submeta às disposições constitucionais e à herança consuetudinária é substituído através de mecanismos de substituição (vide D. Afonso VI, v. Eduardo VIII). O filho do Rei será Rei se, e apenas se, aceitar a incumbência no respeito pela constituição".
Acresce o que há mais de um ano atrás um amigo meu, na altura colaborador do Estado Sentido, escrevia sobre a evolução do conceito de legitimidade de Weber a Habermas:
Habermas aponta aqui que a legitimidade legal não se baseia apenas numa virtude de correção procedimental, mesmo que esse procedimento sofra o efeito de uma tradicionalização (aceitação generalizada da legitimidade democráticas através das eleições, como se o jogo acabasse aqui). Aponta então que essa legitimidade se deve basear numa moral procedimental, que conta com outros critérios democráticos que podem funcionar como filtros, e que, por isso, nunca aceitariam o nazismo alemão como uma ordem legítima, o que o pensamento weberiano perfeitamente permite.
Para Habermas, as medidas adoptadas por Hitler a partir de 1933 não seriam válidas, pois ainda que tenham sido aprovadas pela maioria, havia uma exclusão de participantes do discurso - a democracia transformava-se em ditadura da maioria.
Posto isto, creio que quanto à legitmidade estamos tratados, não só seria mais legítimo voltarmos a ter uma monarquia, como o facto da República nunca ter sido referendada e a própria Constituição o impedir demonstram em pleno a legitimidade de que o regime carece, que na actual III República apenas tem sido sustentada pelo anti-fascismo, isto é, a oposição ao Estado Novo, que começa também cada vez mais a não ser suficiente, ou não se oiçam tantas vozes dissidentes e divergentes, as mais audíveis sendo precisamente as dos monárquicos.
Quanto ao conceito de democracia, recorremos aqui aos ensinamentos de Larry Diamond e de Robert Dahl. Para começar, Larry Diamond distingue entre democracia eleitoral e democracia liberal, sendo que a democracia eleitoral pode frequentemente ser chamada de democracia iliberal. Creio que o nome diz tudo, mas brevemente significa que qualquer regime onde existam eleições é uma democracia eleitoral mas pode ser uma democracia iliberal, vejam-se os casos controversos de Venezuela, Angola e Rússia na actualidade. E o que é uma democracia liberal? É o tendencialmente desejável regime que se nos apresenta nos países Europeus, Estados Unidos, Canadá e Austrália, um regime que segundo Dahl responde completamente ou quase completamente perante todos os seus cidadãos. Nesse regime todos os seus cidadãos devem ter oportunidades iguais de:
1 - Formular as suas preferências;
2 - Explicar as suas preferências aos seus concidadãos e ao governo através de acções individuais ou colectivas;
3 - Ter as suas preferências consideradas de forma igual na conduta do governo, isto é, consideradas sem discriminação devido ao seu conteúdo ou fonte da preferência.
Estas são as três condições essenciais consideradas por Dahl para um regime ser democrático e dentro destas existem 8 critérios que são tradicionalmente considerados pelos estudos de democratização e política comparada como o "minimum procedural", os critérios mínimos para um regime ser democrático, que são:
1 - Liberdade de formar e juntar-se a organizações;
2 - Liberdade de expressão;
3 - Direito de voto;
4 - Eligibilidade para cargos públicos;
5 - Direito dos líderes políticos competirem por apoio;
6 - Fontes de informação alternativas;
7 - Eleições livres e justas;
8 - Instituições que façam as políticas do governo depender de votações e outras expressões de preferência.
(Nota: Consoante o tipo de estudo que se queira realizar adicionam-se outros critérios a estes, dos quais os mais comuns serão a liberdade de imprensa e o controlo dos militares pelo poder civil)
Posto isto, o argumento de que a República é mais democrática porque se vota em quem é o Chefe de Estado é uma total falácia, eu pelo menos prefiro uma verdadeira democracia liberal e útil à nação e ao desenvolvimento do país, com a legitimidade assegurada pelo que já acima referi, do que um regime que acha que é democrático apenas porque há eleições, como referia no Prós e Contras António Reis, Grão-Mestre do GOL. A democracia é muito mais do que apenas votar. E a este respeito remeto para os índices de qualidade da democracia e liberdade da Freedom House. Consta que as monarquias europeias são regimes mais democráticos que o nosso... Ninguém me vai dizer como alguém me disse há tempos que o Reino Unido é menos democrático que Portugal pois não? E já agora, porque é um argumento estatístico, 6 nos primeiros 10 e 12 nos primeiros 20 países mais desenvolvidos do mundo em termos do Índice de Desenvolvimento Humano são monarquias. O Tiago refere que o argumento de que serve para os outros serve para nós não é válido, com o que concordo até certa parte. Mas uma coisa é certa, é que o Tiago pretende é demonstrar que eticamente a República é um regime melhor que a Monarquia. E o que é facto é que tal como diziam uns professores numa conferência há tempos no ISCSP, não há uma ideal ou melhor forma de governo:
Em primeiro lugar, a noção de que não há uma melhor forma de governo, há formas de governo que se adequam às populações, às circunstâncias, à cultura, enfim, às especificidades antropológicas dos indivíduos, comunidades e sociedades. É por isso que agarrar em modelos ocidentais e copiá-los para todo o resto do mundo resulta nas asneiras que tem resultado. Em segundo lugar, a essencial distinção entre a forma e a substância do poder. A substância que se está a exportar para o todo mundo é a mesma. As formas pouco interessam, posto que a substância é a de que sempre existirão oligarquias, plutocracias, primado da tecnologia e da globalização, o Estado espectáculo e o marketing político como base de legitimação do poder político. Posto isto, as formas são simbólicas, porque na essência estamos todos a caminhar para o mesmo, para uma ordem internacional que a plutocracia mundial vai ditando.
Depois há ainda dois ou três argumentos normalmente utilizados pelos republicanos, a questão da hereditariedade na monarquia que é incompatível com o propagado conceito de igualdade. Há aqui um problema que é precisamente o que o Miguel Castelo-Branco refere:
Foi o Estado codificador, legislador, centralizador e confiscador dos direitos, liberdades e privilégios, o Estado do jacobinismo, que impôs o soberanismo radical, a ideia de um ente moral distinto dos homens que Samuel Pufendorf anunciara, de um indutor da "Vontade Geral" com que Rousseau resolveu o problema da pluralidade e a antecâmara do totalitarismo, ou seja, da apropriação dos indivíduos e da sociedade por uma ideia abstracta(Amendola)
Em nome de uma construção abstracta em torno destes conceitos já referidos agrilhoou-se completamente os cidadãos empurrando-nos para um depressivo abismo sem aparente alternativa. Em relação à legitmidade e à democracia creio que já estão explicados os erros conceptuais em que os republicanos normalmente incorrem e com que têm conseguido enganar todo um povo. Em relação à igualdade remeto para um detalhado post sobre essa falácia que, resumidamente, é uma construção teórica de Rousseau que ele próprio desmontou pois é incompatível com a noção de sociedade, só há verdadeiramente igualdade no estado de natureza; e quanto à hereditariedade e igualdade retomo ainda o que na altura escrevi em rescaldo ao programa do Prós e Contras:
Em relação ao argumento da hereditariedade, o professor Maltez deve ter assustado muita gente quando perguntou se queriam que começasse a apontar quantos no parlamento são netos, bisnetos, trisnetos de longas tradições dinásticas e hereditárias. É uma daquelas propagandas demagogas do republicanismo português, o iludir o povo com a igualdade e com o francesismo de que todos somos iguais, pelo que qualquer um pode ser chefe de estado. Acreditam mesmo nisto? É que na prática a teoria é outra, como diz o professor Maltez, já que não há coincidência entre a lei escrita e a prática da lei.
Nesta República os Presidentes da República continuarão a ser "históricos" dos dois partidos do centrão (até aposto que Durão e Guterres estarão já na calha para serem Presidentes da República), e basta circular entre os meandros do poder e da sociedade lisboeta (que concentra o poder político de Portugal), para perceber que são todos "gente de bem" e de longa tradição hereditária quanto à presença na teia relacional do poder que é o actual estadão. A meritocracia há muito que se perdeu, e os canais de acesso ao poder e de mobilidade social estão praticamente vedados e restritos a uns poucos, os das castas do regime, e bem ilustrativa disto é a afirmação de Luís Coimbra de que "estamos numa Europa sem europeus, porque já quase ninguém vota, e estamos numa democracia sem povo, porque o círculo do poder está fechado"
Posto tudo isto, e porque já me demorei mais do que pretendia, finalizo apenas dizendo ao caro Tiago que prefere a legitimidade à utilidade, que é precisamente esse tipo de pensamento, novamente uma abstração que nos tornou escravos, que nos aprisionou nas teias da mediocridade e da partidocracia e tem impedido que Portugal se assuma de uma vez por todas como herdeiro da sua História e se projecte para o futuro com um projecto de verdadeiro desenvolvimento nacional.
(também publicado no Centenário da República)
Não estivesse eu atafulhado em trabalhos, curiosamente, um sobre o reconhecimento da I República pela Inglaterra, e demorar-me-ia muito mais do que apenas esta breve nota a respeito do debate iniciado pelo Tiago Moreira Ramalho, que é de tomar em apreço pois é para isto mesmo que a blogosfera mais deveria servir, o debate de ideias. Sublimes como sempre, o Miguel e o Nuno deram já as suas respostas, e aconselho ainda a ler o João Gomes e os comentários do Leonidas, Rui Monteiro e Ricardo Gomes Silva aqui e ali.
Há dois conceitos que gostaria de esclarecer brevemente pois claramente carecem de uma operacionalização não efectuada pelo Tiago Moreira Ramalho ou por quaisquer outros republicanos neste debate (basta atentar no programa do Prós e Contras sobre o tema), nomeadamente os conceitos de legitimidade e democracia.
Recorrendo aos clássicos ensinamentos de Max Weber, pode-se dividir a legitimidade em três tipos, a legal/racional, a tradicional/história e a carismática. Actos eleitorais validam apenas a legitimidade legal, enquanto os Reis possuem pelo menos dois quando não mesmo os três tipos de legitmidade, a carismática porque de certa forma ligada a um elemento transcendente, a mais das vezes religioso (veja-se o caso da Rainha de Inglaterra), a tradicional porque repousa no Rei o peso da História da nação que representa, e a legal pois tal como refere o Miguel Castelo-Branco "De facto, na constituição histórica como no liberalismo, o Rei é imputável e responsável pelos seus actos, no exercício de funções ou fora delas. Um Rei que não cumpra as suas obrigações ou não se submeta às disposições constitucionais e à herança consuetudinária é substituído através de mecanismos de substituição (vide D. Afonso VI, v. Eduardo VIII). O filho do Rei será Rei se, e apenas se, aceitar a incumbência no respeito pela constituição".
Acresce o que há mais de um ano um amigo, na altura colaborador do Estado Sentido, escrevia sobre a evolução do conceito de legitimidade de Weber a Habermas:
Habermas aponta aqui que a legitimidade legal não se baseia apenas numa virtude de correção procedimental, mesmo que esse procedimento sofra o efeito de uma tradicionalização (aceitação generalizada da legitimidade democráticas através das eleições, como se o jogo acabasse aqui). Aponta então que essa legitimidade se deve basear numa moral procedimental, que conta com outros critérios democráticos que podem funcionar como filtros, e que, por isso, nunca aceitariam o nazismo alemão como uma ordem legítima, o que o pensamento weberiano perfeitamente permite.
Para Habermas, as medidas adoptadas por Hitler a partir de 1933 não seriam válidas, pois ainda que tenham sido aprovadas pela maioria, havia uma exclusão de participantes do discurso - a democracia transformava-se em ditadura da maioria.
Posto isto, creio que quanto à legitmidade estamos tratados, não só seria mais legítimo voltarmos a ter uma monarquia, como o facto da República nunca ter sido referendada e a própria Constituição o impedir demonstram em pleno a legitimidade de que o regime carece, que na actual III República apenas tem sido sustentada pelo anti-fascismo, isto é, a oposição ao Estado Novo, que começa também cada vez mais a não ser suficiente, ou não se oiçam tantas vozes dissidentes e divergentes, as mais audíveis sendo precisamente as dos monárquicos.
Quanto ao conceito de democracia, recorremos aqui aos ensinamentos de Larry Diamond e de Robert Dahl. Para começar, Larry Diamond distingue entre democracia eleitoral e democracia liberal, sendo que a democracia eleitoral pode frequentemente ser chamada de democracia iliberal. Creio que o nome diz tudo, mas brevemente significa que qualquer regime onde existam eleições é uma democracia eleitoral mas pode ser uma democracia iliberal, vejam-se os casos controversos de Venezuela, Angola e Rússia na actualidade. E o que é uma democracia liberal? É o tendencialmente desejável regime que se nos apresenta nos países Europeus, Estados Unidos, Canadá e Austrália, um regime que segundo Dahl responde completamente ou quase completamente perante todos os seus cidadãos. Nesse regime todos os seus cidadãos devem ter oportunidades iguais de:
1 - Formular as suas preferências;
2 - Explicar as suas preferências aos seus concidadãos e ao governo através de acções individuais ou colectivas;
3 - Ter as suas preferências consideradas de forma igual na conduta do governo, isto é, consideradas sem discriminação devido ao seu conteúdo ou fonte da preferência.
Estas são as três condições essenciais consideradas por Dahl para um regime ser democrático e dentro destas existem 8 critérios que são tradicionalmente considerados pelos estudos de democratização e política comparada como o "minimum procedural", os critérios mínimos para um regime ser democrático, que são:
1 - Liberdade de formar e juntar-se a organizações;
2 - Liberdade de expressão;
3 - Direito de voto;
4 - Eligibilidade para cargos públicos;
5 - Direito dos líderes políticos competirem por apoio;
6 - Fontes de informação alternativas;
7 - Eleições livres e justas;
8 - Instituições que façam as políticas do governo depender de votações e outras expressões de preferência.
(Nota: Consoante o tipo de estudo que se queira realizar adicionam-se outros critérios a estes, dos quais os mais comuns serão a liberdade de imprensa e o controlo dos militares pelo poder civil)
Posto isto, o argumento de que a República é mais democrática porque se vota em quem é o Chefe de Estado é uma total falácia, eu pelo menos prefiro uma verdadeira democracia liberal e útil à nação e ao desenvolvimento do país, com a legitimidade assegurada pelo que já acima referi, do que um regime que acha que é democrático apenas porque há eleições, como referia no Prós e Contras António Reis, Grão-Mestre do GOL. A democracia é muito mais do que apenas votar. E a este respeito remeto para os índices de qualidade da democracia e liberdade da Freedom House. Consta que as monarquias europeias são regimes mais democráticos que o nosso... Ninguém me vai dizer como alguém me disse há tempos que o Reino Unido é menos democrático que Portugal pois não? E já agora, porque é um argumento estatístico, 6 nos primeiros 10 e 12 nos primeiros 20 países mais desenvolvidos do mundo em termos do Índice de Desenvolvimento Humano são monarquias. O Tiago refere que o argumento de que serve para os outros serve para nós não é válido, com o que concordo até certa parte. Mas uma coisa é certa, é que o Tiago pretende é demonstrar que eticamente a República é um regime melhor que a Monarquia. E o que é facto é que tal como diziam uns professores numa conferência há tempos no ISCSP, não há uma ideal ou melhor forma de governo:
Em primeiro lugar, a noção de que não há uma melhor forma de governo, há formas de governo que se adequam às populações, às circunstâncias, à cultura, enfim, às especificidades antropológicas dos indivíduos, comunidades e sociedades. É por isso que agarrar em modelos ocidentais e copiá-los para todo o resto do mundo resulta nas asneiras que tem resultado. Em segundo lugar, a essencial distinção entre a forma e a substância do poder. A substância que se está a exportar para o todo mundo é a mesma. As formas pouco interessam, posto que a substância é a de que sempre existirão oligarquias, plutocracias, primado da tecnologia e da globalização, o Estado espectáculo e o marketing político como base de legitimação do poder político. Posto isto, as formas são simbólicas, porque na essência estamos todos a caminhar para o mesmo, para uma ordem internacional que a plutocracia mundial vai ditando.
Depois há ainda dois ou três argumentos normalmente utilizados pelos republicanos, a questão da hereditariedade na monarquia que é incompatível com o propagado conceito de igualdade. Há aqui um problema que é precisamente o que o Miguel Castelo-Branco refere:
Foi o Estado codificador, legislador, centralizador e confiscador dos direitos, liberdades e privilégios, o Estado do jacobinismo, que impôs o soberanismo radical, a ideia de um ente moral distinto dos homens que Samuel Pufendorf anunciara, de um indutor da "Vontade Geral" com que Rousseau resolveu o problema da pluralidade e a antecâmara do totalitarismo, ou seja, da apropriação dos indivíduos e da sociedade por uma ideia abstracta(Amendola)
Em nome de uma construção abstracta em torno destes conceitos já referidos agrilhoou-se completamente os cidadãos empurrando-nos para um depressivo abismo sem aparente alternativa. Em relação à legitmidade e à democracia creio que já estão explicados os erros conceptuais em que os republicanos normalmente incorrem e com que têm conseguido enganar todo um povo. Em relação à igualdade remeto para um detalhado post sobre essa falácia que, resumidamente, é uma construção teórica de Rousseau que ele próprio desmontou pois é incompatível com a noção de sociedade, só há verdadeiramente igualdade no estado de natureza; e quanto à hereditariedade e igualdade retomo ainda o que na altura escrevi em rescaldo ao programa do Prós e Contras:
Em relação ao argumento da hereditariedade, o professor Maltez deve ter assustado muita gente quando perguntou se queriam que começasse a apontar quantos no parlamento são netos, bisnetos, trisnetos de longas tradições dinásticas e hereditárias. É uma daquelas propagandas demagogas do republicanismo português, o iludir o povo com a igualdade e com o francesismo de que todos somos iguais, pelo que qualquer um pode ser chefe de estado. Acreditam mesmo nisto? É que na prática a teoria é outra, como diz o professor Maltez, já que não há coincidência entre a lei escrita e a prática da lei.
Nesta República os Presidentes da República continuarão a ser "históricos" dos dois partidos do centrão (até aposto que Durão e Guterres estarão já na calha para serem Presidentes da República), e basta circular entre os meandros do poder e da sociedade lisboeta (que concentra o poder político de Portugal), para perceber que são todos "gente de bem" e de longa tradição hereditária quanto à presença na teia relacional do poder que é o actual estadão. A meritocracia há muito que se perdeu, e os canais de acesso ao poder e de mobilidade social estão praticamente vedados e restritos a uns poucos, os das castas do regime, e bem ilustrativa disto é a afirmação de Luís Coimbra de que "estamos numa Europa sem europeus, porque já quase ninguém vota, e estamos numa democracia sem povo, porque o círculo do poder está fechado"
Posto tudo isto, e porque já me demorei mais do que pretendia, finalizo apenas dizendo ao caro Tiago que prefere a legitimidade à utilidade, que é precisamente esse tipo de pensamento, novamente uma abstração que nos tornou escravos, que nos aprisionou nas teias da mediocridade e da partidocracia e tem impedido que Portugal se assuma de uma vez por todas como herdeiro da sua História e se projecte para o futuro com um projecto de verdadeiro desenvolvimento nacional.
(também publicado no Centenário da República)
Mais uma vez, um dos meus bloguistas favoritos, O Corcunda, que pela erudição, classe, elegância e clareza na escrita se nos apresenta como uma das penas de maior qualidade em Portugal:
Destaco o axioma da igualdade, que na prática nada mais é do que aquilo que o próprio Corcunda diz, a filosofia da inveja, post que, tal como referi em debate hoje na faculdade e como por diversas vezes escrevi (aqui por exemplo), o conceito de igualdade é uma falácia tal como o próprio Rousseau demonstrou ao estatuir que o conceito de sociedade implica necessariamente desigualdade e, aliás, que a desigualdade é o motor da sociedade. É de facto uma pena que a própria Teoria Política se deixe enredar pelo politicamente correcto. Ai de quem não diga que é pela igualdade, pela democracia, pela república. Mesmo que na prática a teoria seja outra e que os mesmos acérrimos promotores desses alegados ideais sejam os mesmos que mais agravam a desigualdade e a oligarquia dos interesses instalados e prejudiciais do bem comum e do interesse nacional.