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Um belo artigo de Esther Mucznik, que nos revela um cartaz repulsivo afixado numa escola portuguesa e termina com um parágrafo certeiro sobre o convite da RTP a José Sócrates:
«Exagero? Talvez, mas é com este encolher de ombros, em nome do “contraditório” (?!), do “Estado de direito e democrático” ou citando de peito cheio a famosa frase “Não concordo com o que diz, mas defenderei até à morte o seu direito de o dizer” que se defende a contratação do engenheiro Sócrates pela televisão pública portuguesa, sem se perceber que o que está em causa não é “o que ele diz”, mas a total imoralidade quer do convite, quer da sua aceitação. O ex-chefe do Governo de Portugal que durante seis anos nos conduziu de vitória em vitória até à situação actual, que fugiu para França e das responsabilidades que nunca reconheceu, e cujo único comentário que exprimiu a propósito do Memorando – que ele próprio assinou – foi que as dívidas não são para pagar, esse homem não merece um espaço de autopromoção numa televisão que é paga com o dinheiro dos contribuintes. No momento difícil que o país atravessa, esta contratação é escarnecer dos portugueses. Se não se percebe que ela nada tem a ver com a liberdade de expressão, é porque não se entende nada nem de ética, nem de princípios, e muito menos de liberdade.»
Albert Camus, O Mito de Sísifo:
«Para um homem afastado do eterno, a existência toda inteira não passa de uma imitação desmedida sob a máscara do absurdo. A criação, é a grande imitação.
Esses homens começam por saber, e depois todo o seu esforço consiste em percorrer, engrandecer e enriquecer a ilha sem futuro a que acabam de acostar. Mas primeiro é preciso saber. Porque a descoberta absurda coincide com uma paragem, onde se elaboram e legitimam as paixões futuras. Mesmo os homens sem Evangelho têm o seu Monte das Oliveiras. E também no deles não se deve adormecer. Para o homem absurdo já não se trata de explicar e de resolver, mas de sentir e de descrever. Tudo começa pela indiferença clarividente.»
A notícia da idosa encontrada morta em casa, após nove anos de silêncio, atordoou o país. Desgraçadamente, nem devia espantar muito. O abandono a que são votados os velhos e a enfastiada e emperrada burocracia a que estamos submetidos, os verdadeiros causadores desta descoberta terrível, levam a estes desfechos aberrantes. Não é a primeira vez que ouço falar de pessoas que morrem sozinhas e só tempos depois são descobertas. Mas nunca imaginei que alguém pudesse ficar tanto tempo ignorada para além da morte. O que choca mesmo é a indiferença e esquecimento total a que a idosa esteve votada, tirando uma vizinha ou uma outra pessoa mais escrupulosa.
Nesta nossa sociedade que despreza tudo o que é velho e "do passado" em detrimento do novo e "moderno", que cultiva a juventude esticada ao máximo e a devoção à saúde eterna, os velhos são um estorvo e não ficam bem entre a mobília. Algumas famílias tendem muitas vezes a esquecê-los, e noutros casos nem restam familiares próximos, tendo então de se entregar à sua sorte. Os poucos voluntários que propositadamente os visitam para aliviar a sua solidão não chegam. Muitos vivem no centro das cidades, em casas decrépitas, ou em subúrbios uniformizados e deprimentes, como a senhora deste caso. São apesar de tudo aqueles que vivem nas aldeias e pequenas vilas que recebem mais atenção dos que os rodeiam. Mas com o decréscimo da natalidade e o aumento da esperança de vida, a situação tende a piorar. No futuro haverá um batalhão de idosos a cuidar. Muitos dos que hoje desprezam os velhos muito provavelmente receberão a dobrar o mesmo tratamento. Só se deseja que daqui a uns anos não invente qualquer forma de "eutanásia involuntária" para impedir o colapso da segurança social que restar.
Espero contudo que esta notícia chocante possa servir para alertar para casos semelhantes e para a extrema solidão que acompanha tantos idosos deste país. Quem sabe se a mulher que nem depois de morta teve tratamento condigno possa afinal chamar a atenção pra a indignidade das pessoas mais velhas. E já que (quase) ninguém quis saber dela, ao menos que se recorde que era uma pessoa, e que tinha nome. Chamava-se Augusta Martinho.