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Ontem escrevi no Facebook que gostei de ouvir Sócrates falar sobre política, especialmente quando iniciou essa parte da entrevista, porque se notou que percebe tanto de teoria política como eu de crochet. Hoje escrevo porquê.

 

Em primeiro lugar, porque Sócrates acha, com o intuito de defender a investidura do governo de António Costa, que em política só existe a legitimidade formal, constitucional, como se não existisse uma legitimidade material derivada do sentido de voto expresso nas urnas, que indicou claramente, à luz da tradição do nosso regime democrático, que seria a coligação Portugal à Frente a formar governo.

 

Em segundo lugar, para procurar refutar o argumento ancorado na tradição, o mestre pela Sciences Po aproveitou a ocasião para dar o exemplo de Robert Walpole, Primeiro-Ministro britânico entre 1721 e 1742, que teve de enfrentar uma Motion of No Confidence no parlamento e perdeu, demitindo-se, consequentemente, do cargo. Isto, para Sócrates, consubstancia uma tradição de não governar contra o parlamento. Ora, Sócrates esquece-se que não estamos no Reino Unido do século XVIII nem sequer no dos dias de hoje, mas na III República Portuguesa, na qual a tradição tem sido sempre a de que forma governo quem ganha as eleições, contando com a abstenção do ou dos partidos do arco da governação que estejam na oposição aquando da aprovação do Programa de Governo. E isto serve também para aqueles que, pateticamente, procuram argumentar dando o exemplo da Dinamarca e da série televisiva Borgen (a que nunca assisti). A este propósito, é particularmente útil a explicação de Miguel Morgado:

Um regime político depende sempre da experiência cívica dos seus cidadãos. No caso português temos uma tradição política democrática de 40 anos, de experiência cívica. As pessoas sabem, ou sabiam até António Costa perpetrar esta fraude, para que é que estavam a votar. No caso de outras experiências democráticas que muitas vezes se anunciam só há um país, em vinte e oito democracias, um país apenas onde o primeiro-ministro é proveniente de um partido que foi derrotado nas eleições: a Dinamarca. Os outros casos, que não são assim tantos, onde se fala de primeiros-ministros provenientes de partidos menos votados constituem coligações formais de Governo.

 

Em terceiro lugar, Sócrates repudiou a interferência da moral na política, qual Maquiavel de vão de escada. A interpretação mais corrente da contribuição de Maquiavel para a teoria política afirma que este operou a separação entre a moral e a política, quando, na verdade, parece-me bem mais verdadeira a interpretação de Isaiah Berlin, que em "The Originality of Machiavelli" afirma que o que Maquiavel alcança não é a separação entre a política e a moral, nem sequer a “emancipação da política em relação à ética ou à religião,” mas algo mais profundo, a “diferenciação entre dois ideais de vida incompatíveis e, portanto, duas moralidades.” Uma é a moralidade pagã cujos valores são “a coragem, vigor, força na adversidade, reconhecimento público, ordem, disciplina, felicidade, força, justiça, acima de tudo a afirmação de revindicações próprias e o conhecimento e poder necessários para assegurar a sua satisfação;” e a outra é a moralidade cristã, com os ideais da “caridade, misericórdia, sacrifício, amor a Deus, perdão aos inimigos, desprezo pelos bens deste mundo, fé na vida depois da morte, crença na salvação da alma individual como sendo de valor incomparável,” e, portanto, “superior, e até incomensurável em relação a qualquer outro objectivo terrestre, social ou político, ou qualquer consideração económica, militar ou estética.”(1)

 

Por último, na sequência das declarações do ponto anterior, Sócrates afirmou ainda que a moral é a relação de cada um com a sua consciência. É incrível que esta suprema idiotice subjectivista, que qualquer estudante de filosofia do secundário pode refutar facilmente, não tenha sequer sido questionada pelo entrevistador. Que Sócrates se vanglorie de ter obtido a melhor nota no seu mestrado só torna tudo isto ainda mais caricato. 

 

(1) Isaiah Berlin, The Proper Study of Mankind, ed. Henry Hardy e Roger Hausheer (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2000), 289.

publicado às 18:31

 

Rousseau, um génio, um dos maiores vultos do pensamento político, que provavelmente nem se terá apercebido da enorme influência simultaneamente positiva mas bem mais negativa que viria a ter. Costumo recomendar que se leia o Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, especialmente porque mostra um Rousseau bem mais pragmático do que no célebre Contrato Social. Aliás, é ele próprio quem desmonta muitas das premissas que mais tarde advoga e lhe são atribuídas especialmente no que concerne ao sagrado e intocável conceito de igualdade, como já há mais de um ano demonstrei neste texto - fica por saber se Rousseau padecia de esquizofrenia ou se foi apenas mais um caso de desonestidade intelectual.

 

Recorremos novamente a Isaiah Berlin (depois de Rousseau ainda falta Fichte, Hegel, Saint-Simon e Maistre, vão aguardando), e à obra Rousseau e outros cinco inimigos da liberdade (Gradiva, 2005) desta vez transcrevendo na íntegra as páginas 69 a 74. É um pouco longo mas vale bem a pena. Os destaques a negrito são, obviamente, meus. Este excerto vai dedicado a todos os liberais portugueses mas vai ainda com especial carinho para todos os comunistas, socialistas, nazis, fascistas, jacobinos, todos aqueles que não têm respeito pela liberdade dos outros, e ainda todos aqueles que se permitiram matar nem que fosse uma só pessoa em nome de uma ideologia qualquer - esperemos nunca cair nas garras de quejandos inimigos da liberdade:

 

(Sir Isaiah Berlin)

 

Partindo da liberdade ilimitada, chego ao despotismo ilimitado.
Shigalev, em Os Demónios de Dostoiévski.
(pág 49)

"Consequentemente, Rousseau desenvolve o conceito de vontade geral. Começa com a ideia inofensiva de um contrato, o que, no fim de contas, é um assunto semicomercial, simplesmente um tipo de compromisso a que se adere voluntariamente e, em última análise, igualmente revogável, um acto realizado por seres humanos que se reúnem e acordam praticar determinadas acções destinadas a conduzir à sua felicidade comum; mas, ainda assim, apenas um acordo de conveniência que, caso conduza à miséria comum, podem abandonar. É assim que começa; mas a partir da ideia de um contrato social como um acto absolutamente voluntário da parte de indivíduos que permanecem independentes e que buscam, cada um, o seu próprio bem, Rousseau avança gradualmente para a noção de uma vontade geral quase como a vontade personificada de uma vasta entidade superindividual, de algo chamado «o Estado», que não é já o leviatã esmagador de Hobbes, mas algo mais parecido com uma equipa, com uma Igreja, uma unidade na diversidade, algo maior do que nós, no qual mergulhamos a nossa personalidade apenas para voltarmos a descobri-la.

Há um momento místico em que Rousseau passa misteriosamente da ideia de um grupo de indivíduos com relações voluntárias e livres entre si, cada um buscando o seu próprio bem, para a ideia de submissão a algo que somos nós próprios e, contudo, é maior do que nós – o todo, a comunidade. Os passos que utiliza para o alcançar são singulares e vale a pena analisá-los brevemente.


Dizemos para nós próprios que desejamos determinadas coisas e se somos impedidos de as ter, não somos livres; e isso é o pior que nos pode acontecer. Dizemos então para nós próprios: «O que é que eu desejo?» Desejamos apenas a satisfação da nossa natureza. Se formos sensatos, se formos racionais, bem informados, perspicazes, descobriremos onde reside a nossa satisfação. A verdadeira satisfação de qualquer homem não pode colidir com a verdadeira satisfação de qualquer outro, pois se isso acontecesse, a natureza não seria harmoniosa e uma verdade colidiria com outra, o que é logicamente impossível. Poderei verificar que outros homens estão a tentar frustrar-me. Por que motivo o fazem? Se sei que estou certo, se sei que aquilo que busco é o verdadeiro bem, então as pessoas que se me opõem têm de estar erradas sobre o que quer que seja que elas próprias busquem. Sem dúvida que também elas julgam que estão a buscar o bem, afirmam a sua própria liberdade de obtê-lo, mas estão a procurá-lo no sítio errado. Por conseguinte, tenho o direito de as impedir. Em virtude de quê tenho eu o direito de fazê-lo? Não porque deseje algo que elas não desejem, não porque seja superior a elas, não porque seja mais forte, nem mesmo porque seja mais inteligente do que elas, uma vez que são seres humanos com almas imortais e, como tal, minhas iguais, e Rousseau acredita ardentemente na igualdade. É porque, se elas soubessem o que verdadeiramente desejam, buscariam o mesmo que eu. O facto de não o fazerem significa que não o sabem realmente – e é o «verdadeiramente» e o «realmente» que, como tantas vezes, são as palavras traiçoeiras.


O que Rousseau pretende transmitir, de facto, é que todos os homens são potencialmente bons – ninguém pode ser totalmente mau. Se os homens deixassem a sua bondade natural brotar, desejariam apenas aquilo que é correcto; e o facto de não o desejarem só significa que não compreendem a sua própria natureza. Mas a natureza está lá, apesar de tudo isso. Para Rousseau, afirmar que aquilo que um homem deseja é mau, embora potencialmente deseje o que é bom, é como dizer que existe uma qualquer parte secreta dele próprio que constitui o seu eu «verdadeiro»; que se ele fosse ele próprio, se fosse como deveria ser, se fosse o seu verdadeiro eu, então procuraria obter o bom. A partir daí estamos a apenas um pequeno passo de afirmar que, num certo sentido, ele já busca esse bem, mas sem que o saiba. É verdade que se lhe perguntarmos o que deseja, ele poderá enunciar um qualquer fim perverso. Mas o homem verdadeiro no interior, a alma imortal, que se expressaria se ele deixasse que a natureza penetrasse o seu coração, se vivesse o tipo de vida correcto e se visse a si próprio como realmente é, o seu eu verdadeiro, busca algo diferente.

 

 

(Jean-Jacques Rousseau, imagem tirada daqui)


Eu sei aquilo que o eu verdadeiro de qualquer homem busca; porquanto tem de buscar o mesmo que o meu próprio eu verdadeiro, quando sei que aquilo que sou nesse momento é o meu próprio eu verdadeiro e não o meu outro eu ilusório. É esta ideia dos dois eus que, de facto, actua no pensamento de Rousseau. Quando impeço um homem de prosseguir fins perversos, mesmo quando o ponho na prisão para impedi-lo de prejudicar outros homens bons, mesmo que o execute como um criminoso dissoluto, faço-o apenas por razões utilitárias, para oferecer felicidade a outros; nem mesmo por razões punitivas, para o castigar pelo mal que pratica. Faço-o porque é aquilo que o seu próprio eu interior, melhor, mais real, teria feito se lhe fosse permitido exprimir-se. Instituo-me como a autoridade, não apenas sobre as minhas acções, mas sobre as suas. É esse o significado da célebre frase de Rousseau acerca do direito da sociedade de forçar os homens a serem livres.

Forçar um homem a ser livre é forçá-lo a comportar-se de uma forma racional. É livre o homem que obtém aquilo que deseja; aquilo que verdadeiramente deseja é um fim racional. Se não deseja um fim racional, não deseja verdadeiramente; se não deseja um fim racional, aquilo que deseja não é a verdadeira, mas a falsa liberdade. Forço-o a fazer certas coisas que o farão feliz. Ele ficar-me-á grato se alguma vez descobrir o seu próprio eu verdadeiro: é esse o âmago da sua famosa doutrina e não há um ditador no Ocidente que depois de Rousseau não tenha utilizado esse monstruoso paradoxo para justificar o seu comportamento. Os Jacobinos, Robespierre, Hitler, Mussolini, os Comunistas, utilizam todos esse mesmo método argumentativo, de afirmar que os homens não sabem o que verdadeiramente querem – e, assim, ao querê-lo por eles, ao desejá-lo em seu nome, damos-lhes o que num sentido oculto, sem que eles próprios saibam, desejam «realmente». Quando executamos um criminoso, quando submetemos seres humanos à nossa vontade, mesmo quando ordenamos inquisições, quando torturamos homens e os matamos, não estamos apenas a fazer algo que é bom para eles – embora mesmo isso seja já suficientemente dúbio - , estamos a fazer aquilo que eles verdadeiramente querem, mesmo que o neguem mil vezes. Se o negarem mesmo, é porque não sabem o que são, o que querem, como é o mundo. Por isso, eu falo em seu nome, no seu interesse. Esta é a tese central de Rousseau, que conduz à servidão genuína e, por esse caminho, a partir dessa deificação da ideia de liberdade absoluta, chegamos progressivamente à ideia de despotismo absoluto. Não há justificação para que aos seres humanos sejam oferecidas escolhas, alternativas, quando apenas uma é a correcta. É certo que têm de escolher, caso contrário não serão espontâneos, não serão livres, não serão seres humanos; mas se não escolherem a alternativa correcta, se optarem pela errada, é porque o seu verdadeiro eu não está a actuar. Eles não sabem qual é o seu eu verdadeiro, enquanto que nós, que somos sábios, que somos racionais, que somos o grande legislador benevolente – o conhecemos. Rousseau, que possuía instintos democráticos, inclinava-se não tanto para legisladores individuais como para assembleias, as quais, porém, estavam correctas apenas na medida em que deliberassem fazer aquilo que a razão no interior de todos os seus membros, o seu eu verdadeiro, genuinamente desejasse.

É em virtude desta ideia que Rousseau perdura como pensador político. A ideia causou tanto bem como mal. Bem no sentido de ter salientado o facto de que sem liberdade, sem espontaneidade, nenhuma sociedade merece ser conservada, que uma sociedade como a concebida pelos utilitaristas do século XVIII, na qual alguns especialistas organizavam o modo de vida de uma forma suave e sem fricções, de forma a dotar o maior número de pessoas com a maior felicidade possível, é repugnante para um ser humano, que prefere a liberdade desordenada, rebelde e espontânea, contanto que seja ele próprio a agir; prefere-o mesmo ao máximo de felicidade, se ela resultar de um sistema artificial, não pela sua própria vontade mas pela de algum especialista superior, algum gestor, alguma organizador da sociedade num padrão determinado.

O mal provocado por Rousseau consiste em ter iniciado a mitologia do eu verdadeiro, em nome da qual nos é permitido forçar as pessoas. Sem dúvida que todos os inquisidores e todas as grandes estruturas religiosas procuraram justificar os seus actos de coerção, que terão ulteriormente parecido, pelo menos a algumas pessoas, cruéis e injustos; mas, pelo menos, invocaram sanções sobrenaturais para eles. Pelo menos invocaram justificações que não era permitido à razão questionar. Mas Rousseau acreditava que tudo podia ser descoberto através apenas da razão humana sem entraves, através apenas da observação desimpedida da natureza, da natureza tridimensional real, da natureza apenas no sentido de objectos e espaço – seres humanos e animais e matéria inanimada. Sem o auxílio da autoridade sobrenatural, teve de recorrer ao monstruoso paradoxo no qual a liberdade acaba por se tornar uma espécie de escravidão, no qual desejar algo não é desejá-lo a não ser que o façamos de uma maneira particular, de uma maneira tal que possamos dizer a um homem: «Pode pensar que é livre, pode pensar que é feliz, pode pensar que quer isto ou aquilo, mas eu sei melhor aquilo que é, o que quer, o que o libertará», e assim por diante. Este é o paradoxo funesto de acordo com o qual um homem, ao perder a sua liberdade política, a sua liberdade económica, é libertado num sentido mais elevado, mais profundo, mais racional, mais natural, que apenas o ditador ou apenas o Estado, apenas a assembleia, apenas a autoridade suprema conhece, pelo que a liberdade mais ilimitada coincide com a autoridade mais rigorosa e limitadora.

Por esta grande perversão, Rousseau é mais responsável do que qualquer outro pensador que alguma vez tenha vivido. As suas consequências nos séculos XIX e XX não precisam de ser descritas – ainda permanecem connosco. Nesse sentido, não é minimamente paradoxal afirmar que Rousseau, que reivindica ter sido o amante mais ardente e apaixonado da liberdade humana que alguma vez viveu, que procurou libertar todas as grilhetas, os constrangimentos da educação, da sofisticação, da cultura, da convenção, da ciência, da arte, de tudo o que seja, porque todas essas coisas de algum modo o violavam, todas essas coisas de alguma forma limitavam a sua liberdade natural como homem –
Rousseau, apesar de tudo isso, foi um dos mais funestos e formidáveis inimigos da liberdade em toda a história do pensamento moderno."

publicado às 01:01

 

Como escreve o António de Almeida, nos tempos que correm, com a liberdade ameaçada, convém ler ou reler aqueles dois livros. E eu aproveito para iniciar uma nova série, precisamente "Em nome da liberdade". Para começar, aqui deixo algumas passagens de Isaiah Berlin a respeito de um dos pais do utilitarismo, Helvétius, retiradas de Rousseau e outros cinco inimigos da liberdade (Gradiva, 2005):

 

«As motivações humanas são totalmente irrelevantes. Não interessa absolutamente nada se os indivíduos contribuem para a felicidade porque são benévolos e a aprovam ou por qualquer motivo particular egoísta, inferior, mesquinho. Não importa se os indivíduos impedem a felicidade humana porque são maus ou viciosos ou porque são ignorantes ou ingénuos idealistas - o mal que provocam será idêntico em ambos os casos, e igualmente o bem.» (p. 37)

 

«Uma coisa é clara: no tipo de universo descrito por Helvétius existe pouco ou nenhum espaço para a liberdade individual. No seu mundo, os indivíduos podem tornar-se felizes, mas a ideia de liberdade perde-se. Perde-se porque a liberdade para praticar o mal se perde, uma vez que todos os indivíduos são condicionados para praticarem apenas aquilo que é bom. Tornamo-nos uma espécie de animais treinados para perseguir apenas o que nos é útil. Nessa condição, a liberdade, se incluir qualquer permissão para agirmos livremente, a liberdade de fazer agora isto, depois aquilo, de podermos optar mesmo por nos destruirmos a nós próprios, se quisermos - esse tipo de liberdade será gradualmente eliminada por uma educação auspiciosa.» (p. 44)

 

 

(Sir Isaiah Berlin)

 

«Se os geómetras podem ser depóticos, porque não os filósofos? Se não desejamos livrar-nos das verdades da geometria, porquê livrar-nos da verdade dos filósofos? A natureza, e apenas ela, ensina aos filósofos os fins correctos dos homens. É verdade que a natureza fala sempre com muitas vozes diferentes. Ela disse a Espinosa que era um sistema lógico, mas a Leibniz que era uma aglomeração de almas. Disse a Diderot que o mundo era um mecanismo com cabos, roldanas e molas, enquanto que a Herder afirmou ser um todo orgânico vivo. A Montesquieu falou do infinito valor da diversidade; a Helvétius de uniformidade imutável. A Rousseau declarou ter sido corrompida pelas civilizações, as ciências e as artes; ao passo que a d'Alembert prometeu revelar os seus segredos. Condorcet e Paine perceberam que ela implanta direitos inalienáveis ao homem; a Bentham diz que isso é apenas «gritos sobre papel» - «disparates sobre andas». A Berkeley apresenta-se como a linguagem de Deus para o homem. A Holbach disse que Deus não existia e que as Igrejas eram conspirações. Pope, Shaftesbury e Rousseau vêem a natureza como uma harmonia maravilhosa. Hegel vê-a como um campo glorioso no qual grandes exércitos se reencontram na noite. Maistre vê-a como uma agonia de sangue, terror e auto-imolação.

O que é a natureza? O que significa ser «natural»? É uma boa questão. Leslie Stephen diz-nos que um viajante inglês do século XVIII, em Franla, comentou que era antinatural que os soldados se vestissem de azul, excepto, na verdade, a Artilharia ou a Blue Horse. É evidente que a natureza fala com muitas vozes diferentes e que se nos instruirmos através dela obteremos muitas lições antagónicas e não haverá qualquer solução definitiva nem sequer um seu esboço. Helvétius estava bastante seguro daquilo que a natureza lhe ensinava. Sabia que a natureza lhe dizia que a única coisa que o homem podia e deveria fazer era buscar o prazer e evitar a dor e sobre isto erigiu o sistema utilitário que, armado da melhor boa vontade, inspirado pelos motivos mais puros, dirigido como estava contra a injustiça, contra a ignorância, contra o poder arbitrário, contra todos os horrores de que o século XVIII ainda estava repleto, conduz directamente àquilo que é fundamentalmente um tipo de tirania tecnocrática. Substitui a tirania da ignorância, do medo, dos clérigos supersticiosos, dos soberanos arbitrários, de todos os papões combatidos pelo iluminismo do século XVIII por outra, uma tirania tecnológica, da razão, que é, contudo, igualmente contrária à liberdade, igualmente contrária à ideia de que uma das coisas mais valiosas na vida humana é a escolha pela escolha, não apenas do que é bom, mas a escolha enquanto tal. É contrária a isto e foi com essa formulação utilizada como justificação tanto para o Comunismo como para o Fascismo, para praticamente todos os decretos que procuraram limitar a liberdade humana e vivissectar a sociedade humana num todo único, contínuo e harmonioso, no qual se espera que os indivíduos sejam desprovidos de qualquer margem de iniciativa individual. É um sistema muito rígido e sólido; não há espaço para nos movermos no seu interior. Talvez consiga gerar felicidade; mas não é claro - não o era mesmo no século XVIII e seguramente não se tornou mais claro posteriormente - que a felicidade seja o único valor que o homem busca.» (pp. 46-48)

publicado às 16:02






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