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Depois de já ter referido o post de José Pacheco Pereira, recomendo ainda a leitura deste artigo de João Cardoso Rosas, que aqui deixo na íntegra:
«Acompanhei com distanciamento a polémica sobre as declarações de Isabel Jonet, no mês passado, acerca da necessidade do empobrecimento em Portugal.
Afinal de contas, ela tem feito um trabalho admirável no Banco Alimentar contra a Fome e todos devíamos estar-lhe gratos por isso. Uma pessoa que faz um trabalho de natureza prática não tem de ter um pensamento sofisticado sobre a pobreza e a desigualdade. Não devemos esperar que Isabel Jonet, depois de um dia de trabalho no Banco Alimentar, passe os serões a ler John Rawls ou Amartya Sen. Por isso, as críticas que então lhe foram dirigidas pareceram-me claramente excessivas e mesmo deslocadas. Agora, mudei de opinião.
Jonet dá esta semana mais uma entrevista, desta feita ao jornal i, onde declara: "Sou mais adepta da caridade do que da solidariedade social". De forma cuidadosa, admite que necessitamos tanto de uma coisa como da outra e até considera errada a diminuição dez algumas prestações sociais. Na verdade, se Jonet tivesse dito que precisamos tanto de caridade como de solidariedade, eu concordaria. Mas ela disse algo subtilmente diferente, ou seja, que a caridade é preferível à solidariedade. Isto é, que a benevolência individual trata melhor os problemas da pobreza e da injustiça do que a solidariedade socialmente organizada através do Estado.
Estas declarações - que Jonet dirá sempre que foram mal interpretadas, como se quem fala publicamente tivesse o monopólio da interpretação daquilo que diz - recordaram-me aquilo que se contava aqui há uns anos sobre as aulas do filósofo libertarista (ou neoliberal) Robert Nozick. Este escreveu uma famosa obra, intitulada "Anarquia, Estado e Utopia", na qual atacava a ideia de justiça social considerando que, na verdade, qualquer esquema solidário ou distributivo implicava interferir na propriedade e liberdade dos mais ricos, o que significava tratá-los instrumentalmente e isso era indefensável de um ponto de vista moral. Pois bem, enquanto ensinava estas teorias, Nozick faria correr entre os estudantes uma caixa-mealheiro onde estava escrito "Contribuições para a pobreza em África". A ideia era clara: a caridade substituía com vantagem a solidariedade.
Quando Isabel Jonet vem agora dizer que a caridade é preferível não podemos desligar-nos de um contexto político no qual o Governo pretende impor um corte devastador no Estado social, em especial nas prestações sociais. Ou seja, os discursos de Jonet e do Governo funcionam em tandem. Eles fazem cada um por si aquilo que Nozick fazia em simultâneo na sua sala de aula. Ao dizer que a caridade é preferível, Jonet está também a dizer, de forma sub-reptícia, que o Governo tem razão em cortar na solidariedade.»
Leitura complementar: O mito do viver acima das possibilidades; Marx a rir; Duas petições; Pobreza intelectual; Vamos brincar à caridadezinha; A indecorosa leveza da ideologia da caridadezinha; Raiva; Ainda Isabel Jonet.
Ou de como os aspirantes socialistas a conselheiros de príncipe não disfarçam a sua falta de verticalidade, mais uma vez muito bem assinalada pelo Rui A., cujo post aqui deixo na íntegra:
«Depois de ter passado longos meses a assegurar-nos que os eleitores portugueses saberiam reconhecer os sinais de excelência da governação socrática e as misérias e fragilidades da oposição, o eminente filósofo político português João Cardoso Rosas parece ter-se dado finalmente conta de que o PS perdeu as eleições e que José Sócrates já não preside aos destinos do país. Vai daí, deu hoje à estampa um artigocheio de bons conselhos ao Partido Socialista de António José Seguro, no qual define os princípios necessários à sua refundação ideológica. E que princípios são esses? Em primeiro lugar, diz-nos, o PS deverá romper “com terceiras-vias e outros artifícios retóricos que dominaram os partidos do socialismo democrático na Europa”, entre eles, obviamente, o Partido Socialista que nos governou com Guterres e, posteriormente, com José Sócrates. Depois, há-de defender a “austeridade”, em vez do habitual despesismo público, que era suposto produzir excelentes resultados económicos, graças ao célebre “efeito multiplicador”, conforme nos prometeram os últimos governos socialistas. Em seguida, “deve deixar de dar centralidade às causas da “nova esquerda” (aborto, casamento gay, divórcio sem culpa, etc.)”, que – veja-se lá! – “marcaram a governação de Sócrates”, como o próprio autor reconhece. Não satisfeito com isto, ainda sugere que os “fiéis de Sócrates” (sic) que ficaram na “primeira fila do Parlamento” vão para o diabo que os carregue, perdão, vão trabalhar para outro lado, chegando-se mesmo a interrogar se não haverá“nenhuma empresa que os contrate, nenhuma universidade que os queira?”. O autor não esclarece, porém, se o raciocínio se aplica igualmente aos que, mais humildes, se retiraram para as segundas e terceiras filas do hemiciclo. Sintetizando: o Partido Socialista deverá refundar-se fazendo o exacto contrário do que andou a fazer com Sócrates e os seus nos últimos anos. É o que se poderá chamar uma social-democracia para todas as ocasiões, caro professor.»
É o mínimo que se pode dizer do mais recente artigo de João Cardoso Rosas. Como escreve Ricardo Arroja, trata-se de socialismo puro e duro, em que o estado esmaga o indivíduo. Este muy humilde escriba gostaria apenas de colocar as seguintes questões:
1) Como é que o estado pode saber se o(s) herdeiro(s) contribuíram ou não para construir aquilo que herdam?
2) Que dados tem João Cardoso Rosas que lhe permitam validar a afirmação de que "Todos sabemos que a maior parte dos herdeiros gasta mal o dinheiro dos progenitores em vez de o tornar socialmente útil"?
3) O que é gastar dinheiro de forma socialmente útil e que critérios são utilizados para operacionalizar essa concepção?
4) Que dados lhe garantem que a afirmação implícita de que o estado torna o dinheiro socialmente útil é verdadeira?
5) Quem é João Cardoso Rosas ou o estado para dizer aos outros como devem gastar o seu dinheiro (inclusive o que herdam)?
6) Como é que o estado pode ter moralmente direito a algo que não criou?
7) O que é desbaratar dinheiro e que critérios são utilizados para operacionalizar essa concepção?
8) Como é que se garante que o estado não irá desbaratar esse dinheiro?
Bem sei que escrever um artigo jornalístico não é a mesma coisa que escrever um artigo científico/académico. Mas isso não é justificação para descer ao nível panfletário.