Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
A crença no fim do mundo é tão velha quanto a própria civilização ocidental, embora não tenha apenas raízes ocidentais, estando presente desde sempre nas religiões, e tendo inclusivamente sido transposta para a política por via do Iluminismo que produziu versões secularizadas das religiões - as ideologias - , pelo que a política moderna, como aponta John Gray, não é senão apenas mais um capítulo da história da religião. Para quem queira compreender melhor o assunto, recomenda-se a leitura da obra de Gray A Morte da Utopia, pelo menos do primeiro capítulo, de que deixo umas breves passagens:
«A política moderna é um capítulo da história da religião. Os maiores levantamentos revolucionários que tanto moldaram a história dos últimos dois séculos foram episódios da história da fé - momentos de prolongada dissolução do cristianismo e da ascensão da moderna religião política. O mundo em que nos encontramos no início do novo milénio está cheio de detritos de projectos utópicos que, embora enquadrados em termos seculares que negavam a verdade da religião, foram, de facto, veículos de mitos religiosos.
O comunismo e o nazismo afirmavam que se baseavam na ciência - no caso do comunismo, na falsa ciência do materialismo histórico; no do nazismo, na salgalhada do «racismo científico». Estas afirmações eram fraudulentas mas o uso da pseudociência não travou o colapso do totalitarismo que culminou com a dissolução da URSS em Dezembro de 1991. Continuou nas teorias neoconservadoras que afirmavam que o mundo estava a convergir para um tipo único de governo e de sistema económico - a democracia universal, ou um mercado livre global. A despeito de ser apresentada com os arreios das ciências sociais, esta crença de que a humanidade estava à beira de uma nova era foi apenas a versão mais recente das crenças apocalípticas que remontam aos tempos mais antigos.
Jesus e os seus seguidores acreditavam que viviam num Tempo Final em que os males do mundo estavam para acabar. Doença e morte, fome, guerra e opressão, tudo deixaria de existir após uma batalha que abalaria o mundo e em que as forças do mal seriam completamente destruídas. Foi essa fé que inspirou os primeiros cristãos e, embora o Tempo Final tenha sido reinterpretado por pensadores cristãos posteriores como uma metáfora de uma mudança espiritual, a vida ocidental tem sido perseguida por visões de Apocalipse desde esses tempos recuados.
Durante a Idade Média, a Europa foi abalada por grandes movimentos inspirados pela crença de que a história ia acabar e nasceria um novo mundo. Esses cristãos medievais acreditavam que só Deus podia conduzir ao novo mundo, mas a fé no Tempo Final não se desvaneceu quando começou o declínio do cristianismo. Pelo contrário, enquanto o cristianismo vacilava, a esperança de um Tempo Final iminente tornou-se mais forte e mais militante. Revolucionários modernos como os jacobinos franceses e os bolcheviques russos detestavam a religião tradicional, mas a sua convicção de que os crimes e as loucuras do passado podiam ser ultrapassados numa transformação omniabrangente da vida humana foi uma reencarnação secular das crenças cristãs primitivas.
(...)
Não foram só os revolucionários que sustentaram versões secularizadas das crenças religiosas. Também os humanistas liberais, que vêem o progresso como uma lenta luta gradual, o fizeram. A crença de que o mundo vai acabar e a crença no progresso gradual parecem contrárias - uma à espera da destruição do mundo, a outra à espera do seu melhoramento -, mas, no fundo, não são tão diferentes como isso. Apregoem elas a mudança parcelada ou a transformação revolucionária, as teorias do progresso não são hipóteses científicas. São mitos que respondem à necessidade humana de sentido.
(...)
Seja onde for que esteja a acontecer, o renascimento da religião está misturado com conflitos políticos, incluindo uma luta que se intensifica por causa das reservas de recursos naturais da Terra, que estão a diminuir; mas não pode haver dúvida de que a religião é mais uma vez um poder por direito próprio. Com a morte da Utopia, a religião apocalíptica reemergiu, nua e sem adornos, como uma força na política mundial.
(...)
Na linguagem vulgar, «apocalíptico» significa um acontecimento catastrófico, mas, em termos bíblicos, deriva da palavra grega que significa revelar - um apocalipse é uma revelação em que os mistérios que estão escritos no céu são revelados no fim dos tempos, e, para o Eleito, isso não significa a catástrofe mas a salvação. Escatologia é a doutrina das últimas coisas e do fim do mundo (em grego, escathos significa «último», ou «mais distante»). Como já indiquei, inicialmente o cristianismo era um culto escatológico: Jesus e os primeiros discípulos acreditavam que o mundo estava destinado à imensa destruição, de modo que pudesse passar a existir um novo e perfeito.»
1 - Folgo em ver que, como o Miguel Botelho Moniz salientou, o Tiago Mota Saraiva parece já ter aprendido que comunismo e fascismo são duas faces da mesma moeda. Não perdeu, contudo, uma certa ignorância e/ou má-fé, na medida em que afirma que o liberalismo é igual ao fascismo. A isto, só se pode oferecer sugestões de leitura e uma grande dose de bom senso, coisa que não abunda entre comunistas. Talvez começar por um bom manual de Ciência Política e/ou História das Ideias Políticas seja uma boa ideia. Se depois quiser mais sugestões, o Tiago sabe onde me encontrar.
2 – Diz o Tiago que os meus posts (Patético; Patético (2); Patético (3); Patético (4)), não têm conteúdo. Referindo-me ao ponto anterior e ao título, mas que espécie de conteúdo é que pode ter algum texto destinado a debater com indivíduos irracionais que defendem a ideologia mais criminosa da História, que estes possam compreender e não deturpar e manipular como fazem a todo o momento? O meu tempo é demasiado precioso para me perder em debates espúrios, mas se o Tiago quiser, pode sempre começar por este meu texto, ou pelo que encontrará no fim deste post, da autoria de John Gray. Cada qual tem que procurar por si o conhecimento. Infelizmente, há quem não o procure, não exerça a dúvida, e se deixe apenas ficar pela doxa e pelo dogmatismo. Mas, novamente, se quiser sugestões de leitura, o Tiago sabe onde me encontrar.
3 – Já o João José Cardoso, à semelhança do Renato Teixeira, dispara completamente ao lado. Só realmente quem não me leia ou conheça (e obviamente ninguém tem obrigação de me ler – só se poupa a umas valentes secas se não o fizer), pode confundir-me com alguém de extrema-direita e/ou defensor de ditaduras. De resto, ler The Undiscovered Self, de Jung, talvez ajude a perceber porque ser comunista pode ser um sintoma de insanidade. A este respeito, num texto a que aludi no ponto anterior, classifiquei há cerca de 2 anos os comunistas em três grupos: estúpidos, ignorantes e tenebrosos. A vanguarda, que de estúpida ou ignorante costuma ter pouco, pautando-se mais pela má-fé e manipulação, recai no terceiro grupo: Por último, na primeira categoria, a das mentes tenebrosas, incluem-se todos aqueles para quem a verbosidade pseudo-científica do comunismo faz sentido, embora em parte possam ser ignorantes, caso desconheçam os postulados teóricos e práticos da ideologia que dizem defender; estúpidos, ao acreditarem que o comunismo faz sentido; ou então completamente tenebrosos e perigosos: sabem muito bem o que é o comunismo, conhecem os efeitos das suas várias experiências reais, e ao contrário dos da segunda categoria, acham que os fins justificam os meios, não hesitando em relativizar milhões de mortos, demonstrando um total desrespeito pela vida humana. São sanguinários em potência, que num sistema que lhes permitisse dar largas às suas crenças, não hesitariam em voltar a repetir e agravar o tipo de atitudes que caracterizaram a União Soviética ou o PREC. Consideram Cuba um país magnífico, têm Fidel Castro e Hugo Chávez como referências e chegam ao dislate de considerar a Coreia do Norte uma democracia. Não hesitariam em sacrificar milhões de pessoas para alcançar os supostos benefícios que o Apocalipse traria. Têm ainda por hábito as práticas do negacionismo e manipulação da História, tentando escamotear a realidade e moldá-la aos seus propósitos, tal como George Orwell ilustrou na famosa distopia intitulada 1984.
4 – Num comentário, diz o Renato que “O comunismo não é o que foram os regimes estalinistas. Essa confusão devia estar, há muito, esclarecida.” Este muito badalado argumento, além de banal é também inválido. O estalinismo é consequência directa do leninismo. E só quem não saiba o que Lenine ou Trotski pensaram ou fizeram pode esgrimir o argumento para enganar os mais desprevenidos de que “aquilo não foi comunismo.” Foi comunismo, sim, em todo o seu esplendor, com todas as consequências do utopismo do pensamento marxista, e levado a cabo por indivíduos que teorizaram e acreditavam na utilização do Terror para os fins do comunismo. Não é possível dirigir uma economia centralizada e um regime político anti-democrático sem utilizar a coerção, a força. Talvez se lessem Hayek, percebessem como funciona uma ordem de organização ou made order e por que é que, aplicado a um regime político, este tipo de ordem se torna totalitário e necessita da utilização da força e da violência para se manter. Para que não digam que vão daqui sem conteúdo, deixo umas passagens de A Morte da Utopia, de John Gray:
«O terror do tipo praticado por Lenine não pode ser explicado pelas tradições russas nem pelas condições que prevaleciam no tempo em que o regime bolchevista chegou ao poder. A guerra civil e a intervenção militar estrangeira criaram um ambiente em que a sobrevivência do novo regime estava ameaçada desde o início; mas o pior do terror que desencadeou foi dirigido contra a rebelião popular. O objectivo não era apenas ficar no poder. Era alterar e remodelar irreversivelmente a Rússia. A partir dos jacobinos, na França do fim do século XVIII, passando pela Comuna de Paris, o terror tem sido usado deste modo sempre que uma ditadura revolucionária se inclina para atingir metas utópicas. Os bolchevistas visavam tornar bem sucedido na Rússia um projecto iluminista que tinha falhado em França. Ao acreditarem que a Rússia tinha de ser construída segundo um modelo europeu, não eram originais. No que se distinguiam era na sua convicção de que tal exigia terror e nisso eram discípulos confessos dos jacobinos. Sejam quais forem os outros fins que possa ter servido – como a defesa do poder bolchevista contra a intervenção estrangeira e a rebelião popular -, o uso do terror por Lenine decorreu do seu empenho nesse projecto revolucionário.
(Sugestão musical para acompanhar a leitura deste texto)
Inspirado pelo meu post, o Filipe Faria escreveu um excelente texto, cuja leitura é indispensável, em que ele, como bom português à solta, observando directamente a realidade britânica contemporânea, onde o multiculturalismo coloca em risco as tradições culturais e políticas da Inglaterra, nos revela, entre várias ideias, esta: "Conhecendo bem a realidade de ambos os países, neste momento arrisco dizer que Portugal usufrui de uma maior liberdade de expressão."
Neste texto, o Filipe coloca em causa a defesa da democracia por Hayek, que se insere na tradição anglo-saxónica do liberalismo clássico, como forma de limitar o governo, consubstanciada na observação que faz do que se passa no Reino Unido. Mas Hayek estava alerta para os perigos advindos da miragem da justiça social (e do alargamento dos poderes do estado ao abrigo deste, como fiz notar no ponto 4 do meu post "Equívocos a respeito do liberalismo"), das coligações de interesses organizados que negoceiam com e sustentam os partidos políticos, e do positivismo legalista - que confunde a lei (Direito Natural) com legislação, em detrimento da primeira -, cujos efeitos combinados denomina por perversão democrática.
Assim como estão vários autores britânicos, como John Gray e Roger Scruton, que entre o liberalismo e o conservadorismo, com destaque para a inspiração em Hayek e Oakeshott, alertam para os perigos destas acepções modernas. Permitindo-me fazer corresponder a ordem espontânea de Hayek à civil association de Oakeshott, e a ordem de organização à enterprise association, e sabendo que os elementos dos dois tipos de ordem ou de associação se misturam na prática, podendo ser encontrados em vários estados, torna-se útil salientar que para Oakeshott a civil association não necessita de ser culturalmente homogénea mas apenas respeitar a lei acima da identidade cultural, ou seja, a comunidade deverá fundamentar-se no respeito a princípios abstractos e formais. Acontece que, segundo Gray, esta acepção kantiana é profundamente questionável e um calcanhar de Aquiles para o liberalismo e para o conservadorismo. A História recente mostra como é difícil que o estado sustente a sua autoridade apenas sob concepções de lei formais, abstractas e processuais, que assim se torna fragmentada e fraca. Esta ideia surgiu numa altura em que a identidade cultural era dada como garantida, quer por Kant quer pelos Founding Fathers americanos, sendo a identidade em causa a da Cristandade Europeia. Com o Iluminismo francês, a Revolução Francesa e a fragmentação desta identidade, tornou-se mais fraca a autoridade do estado com base em concepções abstractas (veja-se precisamente o caso do Reino Unido, com comunidades muçulmanas que desafiam constantemente o estado e rejeitam as normas tácitas de tolerância características dos britânicos, ou ainda o caso dos EUA, em que uma horda de minorias vai progressivamente tornando o estado cativo, tendo apenas o legalismo a uni-las)[1]. Roger Scruton assinala esta fraqueza e os seus reflexos práticos sob a denominação de falácia da agregação, em que dando o exemplo do Reino Unido evidencia como o multiculturalismo e o Estado Social se combinam de uma forma que é potencialmente destrutiva para a comunidade[2]. E também Hayek faz notar que a modernidade produziu um enquadramento que é altamente destrutivo das tradições intelectuais e morais europeias, que através do racionalismo construtivista e do relativismo produz morais inviáveis, ou seja, sistemas de pensamento moral incapazes de sustentar qualquer ordem social estável, que através de teorizações sociológicas contemporâneas e da corrupção da arquitectura e das artes (como Scruton e Gray demonstram) criam um clima cultural que é profundamente hostil à tradição e também à sua própria existência. Confrontamo-nos, assim, com uma cultura que tem ódio à sua própria identidade, tornando-se, em larga medida, efémera e provisória.[3]
Inspirados pelo Projecto Iluminista, os autores modernos e pós-modernos desenvolveram um caos moral, em que o abuso da razão, o objectivismo e o relativismo criaram um ambiente cultural, social e intelectual que é inimigo da tradição. Ao proporem ancorar a moralidade no racionalismo, o positivismo, o cientismo, o historicismo e o cepticismo conduziram naturalmente ao niilismo, construtivismo e planeamento social, e, consequentemente, ao utilitarismo e emotivismo. A rejeição de qualquer tipo de instituição ou código de comportamento que não seja racionalmente justificado parece ser uma característica distintiva da modernidade[4], o que talvez possa ajudar a explicar o que se passa no Reino Unido, já que os costumes britânicos são completamente postos em causa por este quadro.
Por outro lado, esta discussão relembrou-me um texto que escrevi por altura dos motins em Inglaterra em Agosto de 2011, e de várias discussões que surgiram na blogosfera sobre estes, em que às tantas o Bruno Garschagen colocou uma hipótese que me parece particularmente útil recuperar, e que vai no sentido do pensamento de Scruton a que aludi acima: Os criminosos de Londres são filhos do Welfare State e do multiculturalismo? Não se encontrará aqui também parte da explicação para o que se passa em Inglaterra? E mais, daqui lanço o repto ao caríssimo Filipe, caso ache(s) por bem, de elaborar(es) sobre algo que conhece(s) muito bem (ao contrário de mim), a Escola de Frankfurt, que em larga medida se faz sentir na academia britânica, e de nos ajudar(es) a perceber se e de que forma as ideias desta não são também em grande parte responsáveis por este ambiente.
Só para finalizar, quanto a Hayek, este propôs uma reforma das instituições democráticas em Law, Legislation and Liberty. Para além de demonstrar a vacuidade do conceito de justiça social, para tentar recuperar e/ou evitar a confusão entre lei e legislação e os efeitos nefastos do positivismo legalista, propõe que os parlamentos sejam compostos por duas câmaras, em que uma trataria da lei (as regras de justa conduta da ordem espontânea, descobertas e em linha com a opinião pública), e outra da legislação (correspondente aos comandos específicos da ordem de organização, ou seja, à noção de vontade), o que seria complementado por um Tribunal Constitucional que teria como missão evitar a confusão entre lei e legislação, para que as duas assembleias não entrem em conflito relativamente às suas respectivas competências. Até que ponto isto será praticável, não sei. Mas fica a sugestão.
[1] John Gray, “Oakeshott as a liberal”, in John Gray, Gray’s Anatomy, Londres, Penguin Books, 2009, pp. 83-84.
[2] Roger Scruton, As Vantagens do Pessismismo, Lisboa, Quetzal, 2011, pp. 151-163.
[3] John Gray, “Hayek as a Conservative”, in John Gray, Gray’s Anatomy, op. cit., p. 131.
[4] Edward Feser, “Hayek on Tradition”, in Journal of Libertarian Studies, Vol. 17, No. 1, 2003, p. 17.
Aqui fica o meu artigo publicado no número 1 da popcom, a nova publicação do Gabinete de Estudos Gonçalo Begonha, da Juventude Popular.
(Locke, Burke, Montesquieu, Hayek)
O liberalismo clássico é uma tradição política que representou uma ruptura com o que se designa por Ancien Regime, materializada concretamente nas Revoluções Atlânticas – Inglesa (1688), Americana (1776) e Francesa (1789). Estas encontram-se na origem daquilo que hoje denominamos por democracia liberal. Na verdade, a democracia liberal e os diversos entendimentos quanto a esta, podem dividir-se em duas grandes correntes, tendo como diferença essencial a forma como encaram o conceito de liberdade, que se encontra no âmago do liberalismo e em torno do qual existem complexas teorizações. Esta distinção permite-nos considerar que, na realidade, não há apenas um liberalismo, mas vários, embora o liberalismo constitua uma única tradição política.[1]
Muitas razões há para que a escola realista continue a predominar na Teoria das Relações Internacionais. Talvez por ser a mais simples e, simultaneamente, a mais elegante, logo, com maior poder explicativo. Por estes dias, em que o mundo está expectante em relação ao que se seguirá no Egipto, reler A Morte da Utopia, de John Gray, é um exercício saudável e recomendável (Lisboa, Guerra e Paz, 2008):
«Precisa-se de um novo pensamento, mas este tem de renovar uma velha tradição. A prossecução da Utopia tem de ser substituída por uma tentativa de enfrentar a realidade. Não podemos voltar aos escritos dos pensadores realistas do passado com a esperança de que estes resolvam todos os nossos dilemas. A raiz do pensamento realista é a perspectiva de Marquiavel de que os governos existem e devem atingir todas as suas metas num mundo de conflito incessante que nunca esteja longe de um estado de guerra. Apesar da distância entre a Itália da Renascença e o presente, isto continua a ser verdade; mas as implicações da perspectiva de Maquiavel mudam de acordo com as circunstâncias e, mesmo no seu tempo, as teorias realistas de gerações recentes tinham graves defeitos. Todavia, é com o realismo, mais do que com qualquer outra escola, que podemos aprender a pensar acerca dos conflitos actuais.
O realismo é o único modo de pensar sobre questões de tirania e liberdade, de guerra e paz que pode afirmar verdadeiramente não se basear na fé e, apesar da sua reputação de amoralidade, o único que é eticamente sério. Esta é, sem dúvida, a razão pela qual é visto com suspeita. O realismo exige uma disciplina de pensamento que pode ser demasiado austera para uma cultura que preza o conforto psicológico acima de tudo, e é razoável perguntar se as sociedades liberais ocidentais são capazes do esforço moral que envolve pôr de lado as esperanças de transformação do mundo. As culturas que não foram moldadas pelo cristianismo e pelos seus substitutos seculares albergaram sempre uma tradição de pensamento realista, que, provavelmente, será tão forte no futuro como foi no passado. Na China, a Arte da Guerra, de Sun Tsu, é uma bíblia de estratégia realista e as filosofias taoísta e legalista contêm fortes correntes de pensamento realista, enquanto, na Índia, os escritos de Kautilya acerca da guerra e da diplomacia ocupam um lugar semelhante. Os escritos de Maquiavel foram um escândalo porque subverteram as reivindicações da moralidade cristã. Não tiveram a mesma força explosiva em culturas não cristãs, onde o pensamento realista ocorre mais facilmente. Nas democracias liberais pós-cristãs, foram as elites políticas e intelectuais, mais do que a maioria dos eleitores, que defenderam a guerra como instrumento para melhorar o mundo; mas a opinião pública ainda acha o pensamento realista desagradável. Poderá a tarefa de prevenir males perenes satisfazer uma geração desacostumada de sonhos irrealizáveis? Talvez esta prefira o romance de uma busca sem significado a enfrentar dificuldades que poderão acabar por nunca ser vencidas. Mas nem sempre foi assim e, tão-só há um par de gerações, o pensamento realista permitiu que os governos ocidentais prevalecessem em conflitos de longe mais perigosos do que qualquer dos que já tenham tido de enfrentar no século actual.» (pp. 256-257)
(...)
«Os realistas não aceitam que as relações internacionais consistam mais em problemas solúveis do que a vida humana em geral. Há situações em que, seja o que for que se faça, a acção contém erros - por exemplo, a situação que foi criada pela intervenção norte-americana no Iraque. Certamente, pode evitar-se a multiplicação dessas situações: podemos ter de provocar mortes em massa para derrotar Hitler, mas não precisamos de persistir na democratização do mundo pelo sangue. O realismo é uma «navalha de Occam» que funciona para minimizar escolhas radicais entre males. Não nos pode permitir fugir a essas escolhas, pois são próprias dos seres humanos.» (p. 258)
(...)
«Os realistas têm como adquiridos vários factos acerca do modo como o mundo funciona. Porém, por mais conversa fiada que possa haver acerca do fim da era westfaliana, os estados soberanos continuam a ser os actores centrais nos assuntos mundiais. Instituições transnacionais como a ONU são dispositivos de moderação das rivalidades entre potências soberanas e não formas embrionárias de governação global. Neste sentido, o mundo dos estados é um reino de anarquia e assim continuará. Claro que os estados aceitam muitas restrições, incluindo as que são impostas pelos tratados internacionais, como a Convenção de Genebra, que estabelecem normas de comportamento civilizado, e, em certa medida, o comércio mutuamente benéfico e as tradições sociais podem substituir o conflito destrutivo pela concorrência e a cooperação. Mas essas convenções e práticas são frágeis e, a longo prazo, a guerra é tão vulgar como a paz.
Os realistas deviam rejeitar visões teleológicas da história. A crença de que a humanidade está a caminhar para uma situação em que já não haverá conflito sobre a natureza do governo é não só ilusória mas também perigosa. Basear políticas no pressuposto de que um processo misterioso de evolução está a levar a humanidade para uma terra prometida conduz a um estado mental que não está preparado para o conflito intratável.» (pp. 259-260)
John Gray, "A Conservative Disposition", in Gray's Anatomy, pp. 149-151:
Whereas opinions may legitimately differ as to the best mode of provision, the duty of government to set and inspect national standards in schooling is beyond reasonable doubt. It may be true that, when British culture was far more homogeneous in its traditions and ways of life, curricular choice could be safely left to the tacit understandings of headteachers and staff. With the advent of mass immigration and other species of cultural diversity, a national curriculum, or something like it, is a manifest necessity. Current proposals are far from being the best that can be conceived in that, as Sheila Lawlor has shown, they give insufficient priority to a core curriculum comprising English, mathematics and science. It is the inculcation of such skills of numeracy, literacy (in the English language), and scientific thinking that is the proper aim of any national curriculum.
There are clear implications for the issue of multiculturalism in this conclusion. Cultural minorities, such as the British Muslims, have an undeniable entitlement to government funding for their schools, if only on grounds of equity given the current practice in regard to Catholics and Jews. Along with every other school ought to receive such subsidy only if it conforms to a streamlined national curriculum by teaching the basic skills to all of its pupils, both male and female. In Britain, it is taken for granted (even if the realities often fail to match this expectation) that opportunities for men and women, whether as children at school or later in life, be the same. The form of life that is inherited today, with all of its many variations, confers upon men and women the same responsibilities and opportunities. With regard to schooling, it follows from this that conservative governments cannot endorse, by subsidy or otherwise, schools that deny this equality of opportunity to the sexes. This is but one of the important limits on cultural diversity that any government which is committed to the protection of civil society is bound to impose.
It expresses a deeper and less fashionable truth. Cultural minorities, whether indigenous or immigrant in origin, cannot expect public subsidy for aspects of their ways of life which flout the central norms of liberal civil society. They are entitled to protection from forms of discrimination which deny them full participation in the common life. They cannot justifyably claim privileges or immunities of the sort enshrined in policies of affirmative action and of group rights, which effectively shield them from the healthy pressures of the larger society. Although it is to be hoped that cultural minorities in Britain will retain many aspects of their traditions, including traditions of hard work and family stability in which many recent immigrants excel over the indigenous population, civil peace in the kingdom depends on their integration into the civil society that enables them to live in freedom. The lessons of states which have allowed unrestricted immigration of incompatible minorities or which have inherited profound ethnic divisions, are sobering and indeed ominous for liberals who indulge the dangerous fantasy that civil peace can be maintained solely by obedience to common rules. History and the news of the day suggest otherwise: that pluralism must be bound by the norms and the common culture of civil society. Pluralism must have such limits, or else Beirut will be the likely fate.
The American experience, in which the courts (now virtually the only effective agents of policy-making in America) have been hijacked by ethnic and other special interests, illustrates vividly the dangers of pluralist societies that only legalism holds together. It intimates the hard truth that a multiracial society, if it is to be peaceful and free, cannot also be radically multicultural. In particular, entry into civil society in Britain presupposes subscription to its norms, among which toleration, voluntary association and equality before the law are uppermost in importance. It must be made plain by any conservative government that cultural diversity cannot mean the subordination of women in state-funded schools, or (as in the Rushdie case) toleration of threats which in endanger freedom of expression. The common culture to which people aspire is that culture of liberty which animates a civil society. This common culture may be reinforced by laws and policies which resist pluralism when pluralism threatens the norms of civil society itself. A civil society such as in Britain is entitled to assert its identity against those - be they recent immigrants or long-established indigenous groups - who challenge its central, defining practices of toleration and compromise. It is, indeed, these practices that set the limit to pluralism in Britain today.
The pursuit of a delusive organic community distracts frm the humbler but indispensable task of filling out that thinner common culture of respect for civil society that presently enables people to coexist in peace. Building up that common culture, in turn, effectively enfranchises all people as active citizens in a polity to which everyone can profess allegiance. A conservative policy, rightly conceived, is not one which seeks to renew old traditions by deliberate contrivance; it is one which nurtures the common traditions that are currently shared, while respecting the variety of practices whereby they are held in common.
Já por aqui deixei o que penso sobre as duas grandes tradições da democracia, nomeadamente, a tradição anglo-saxónica e a francesa. Hoje, aproveito para deixar uma breve passagem de um ensaio de John Gray, intitulado "George Soros and the Open Society", incluído na sua obra mais recente, Gray's Anatomy:
"During much of the last century it seemed that the capture of power by irrational systems of belief could occur only in dictatorial regimes. Nazi Germany and the Stalinist Soviet Union were closed societies whose ruling ideologies could not be exposed to critical scrutiny. Given the success of liberal democracy in defeating its rivals and spreading throughout much of the world it was easy to assume that it has a built-in rationality that gives it advantage over any kind of authoritarianism. Open societies were liberal democracies, almost by definition, and it seemed they would come into being wherever dictatorship had been overthrown.
Soros is clear that this was much too simple a view:
The collapse of a closed society does not automatically lead to an open society; it may lead to continuing collapse and disintegration that is followed by some kind of restoration or stabilization. Thus a simple dichotomy between open and closed society is inadequate ... Open society [is] threatened from both directions: too much liberty, anarchy, and failed states on the one hand; dogmatic ideologies and authoritarian or totalitarian regimes of all kinds on the other.
In fact, Popper's taxonomy may need a more fundamental revision than Soros has yet realized. When closed societies collapse but fail to make the transition to openness the reason need not be that thet languish in anarchy or suffer a return to dictatorship. It may be that they adopt an illiberal form of democracy. Along with the liberal democratic tradition that goes back to Locke and the English civil war there is a tradition, originating in the French Revolution and formulated theoretically by Rousseau, which understands democracy as the expression of popular will. The elective theocracy that is emerging in much of post-Saddam Iraq is a democractic polity in the latter sense, as is the current regime in Iran; so is the Hamas government in Palestine.
To be sure, these regimes often lack freedom of information and expression and legal limitations on government power, which are essential features of democracy in the liberal tradition. In these respects, they are closed societies; but they are not dictatorships. It is often forgotten that democracy, defined chiefly by elections and the exercise of power in the name of the majority, can be as repressive of individual freedom and minority rights as dictatorship - sometimes more so."
Retirado da introdução, que podem encontrar aqui:
Contemporary humanism is a religion that lacks the insight into human frailty of traditional faiths. In envisioning the universe as the work of a divine person Western monotheism has always been anthropocentric, but it has preserved a sense of mystery, the insight that the nature of things is finally unknowable. In contrast secular rationalists have promoted a type of solipsism. Like the Tlonists of Borges’s fable, examined in Chapter 5, they think the real world and their intellectual constructions are — or can be made to be — identical. Hence the ornate theories of justice devised by credulous philosophers, the elaborate systems of incentives designed by bien-pensant economists and the recondite schemes for taxing emissions advanced by Greens — just the latest of many attempts to reorder human life by the use of reason.
Humankind is not a collective agent that can decide its destiny. If humans are different from other animals it is chiefly in being governed by myths, which are not creations of the will but creatures of the imagination. Emerging unbidden from subterranean regions, they rule the lives of those they possess. Many of the worst crimes of the last century were the work of people possessed by what they believed to be reason. Science is believed to confer a superior rationality on its initiates, but science cannot make us into a rational animal of the kind imagined by humanist philosophers. Humans can anthropomorphize anything, except themselves.
A little realism would surely be useful. Accepting that we are flawed and our problems not fully soluble need not be paralysing; it could make us more flexible and resourceful. But no realist will try to convert the world. The myth-free civilization of secular rationalism is itself the stuff of myth. Myths are fictions, which cannot be true or false; but fictions can be more or less truthful depending on how they capture human experience. No traditional myth is as untruthful as the modern myth of progress. All prevailing philosophies embody the fiction that human life can be altered at will. Better aim for the impossible, they say, than submit to fate. Invariably, the result is a cult of human self-assertion that soon ends in farce.
Aqui deixo três parágrafos de um paper que estou a finalizar.
Só através da liberdade económica que uma sociedade liberal assegura, em que através do desenvolvimento das actividades económicas os indivíduos ganham a capacidade de poder decidir sobre as suas vidas, é que pode haver liberdade política. Na realidade, a liberdade individual assenta nestes dois tipos de liberdade que se influenciam mutuamente, como assinala Hayek ao afirmar que “the subsequent elaboration of a consistent argument in favor of economic freedom was the outcome of a free growth of economic activity which had been undesigned and unforeseen by-product of political freedom”[1].
A propriedade privada é, assim, um elemento fundamental para alcançar a liberdade individual, tal como Locke já havia teorizado, e como Gray assinala ao considerá-la como “an institutional vehicle for decentralized decision-making” em estreita ligação com a capacidade de um indivíduo dispor de si próprio, das suas capacidades e talentos. Isto só acontece, em termos económicos, num sistema de mercado, em que a coordenação sobre as actividades económicas não é coerciva, e num sistema político liberal, em que o Governo seja limitado, assegure o rule of law, e respeite as liberdades individuais – o que não significa que seja um Estado mínimo, como é geralmente confundido, e não defendido pela maior parte dos autores liberais[2].
Esta fórmula liberal do Governo limitado, não corresponde necessariamente a um regime democrático, até porque a democracia de matriz rousseauniana, baseada no bem comum, vontade geral e soberania popular, pode ser ilimitada, tirânica e totalitária, enquanto, por outro lado, é verificável empiricamente que a democracia de matriz anglo-saxónica obedece efectivamente aos preceitos do Governo limitado. Estes preceitos são o respeito pelas liberdades individuais, o constitucionalismo, o rule of law, e a limitação e difusão do poder, através de checks and balances que constranjam e diminuam o exercício arbitrário do poder. Estes checks and balances podem ser de diversos tipos, e incluem, por exemplo, a separação de poderes, o bicamaralismo ou o federalismo. Em resumo, a condição sine qua non para se considerar um Estado liberal é, segundo Gray, “that governmental power and authority be limited by a system of constitutional rules and practices in which individual liberty and the equality of persons under the rule of law are respected”[3].
[1] Cfr. F. A. Hayek, The Road to Serfdom: text and documents – The Definitive Edition, Bruce Caldwell (ed.), Chicago, The University of Chicago Press, 2007, p. 69.
[2] Cfr. John Gray, Liberalism, 2.ª Edição, Minneapolis, The University of Minnesota Press, 1995, p 70.
[3] Cfr. Idem, ibidem, p. 72.
O sempre controverso John Gray, conclui brilhantemente uma pequena obra de introdução ao liberalismo, publicada já há alguns anos, intitulada simplesmente Liberalism - a conclusão é a que o autor incluiu na edição de 1994:
"The world-historical transformations of the past decade afford no support for the Whiggish philosophy of history that the liberal variant of the Enlightenment project incorporates and depends upon. The Soviet collapse and the Chinese project of market reform do not, as contemporary classical liberal thinkers and I myself once supposed, augur the global spread of Western-style civil societies: the exemplify the global reach of market institutions - a very different matter. It may be that market institutions are functionally indispensable in any well-functioning market economy; there is nothing to show that the institutions of a liberal civil society are similarly indispensable. The rebirth, in the Eighties, of a species of classical or fundamentalist liberalism, has proved to be transitory, an epiphenomenom of political victories that were themselves ephemeral. Far from being a precursor of the universal triumph of Western liberal ideas and institutions, the events unfolding from the Soviet collapse are likely to appear, in a somewhat longer historical perspective than that adopted by Francis Fukuyama, to be the prelude to an epoch of Western decline. The ruin of Soviet Marxism was, after all, the failure of a universalist Western ideology, of a a species of the Enlightenment project; it was not the end, but the resumption of history, in forms as little likely to be liberal as they are to be ever again Marxist. I see no reason t alter the statement I made in October 1989: "If it comes to pass, the fall o Soviet totalitarianism is most likely to occur as an incident in the decline of the Occidental cultures that gave it birth, as they are shaken the Malthusian, ethnic and fundamentalist conflicts which - far more than any European ideology - seem set to dominate the coming century.
In this new historical context of early postmodernity, in which the Soviet collapse is only the most dramatic and incontrovertible evidence of the foundering of the Enlightenment project throughout the world, the liberal problematic recurs in a form that resembles in many ways that which it assumed in the early modern period in which Hobbes theorized. The task of postliberal political thought is to seek terms of peaceful coexistence among different cultural forms without the benefit - dubious as it proved to be - of the universalist perspective and the conception of rational choice that Hobbes was able to deploy as an early Enlightenment thinker. In the postmodern age, liberal cultures and liberal states must renounce any claim to universal authority, and learn to live in harmony with other, non-liberal cultures and polities. Finding institutions which can harbour cultural diversity in peace, both in the relations between states and within states, is the pluralist challenge to postliberal thought. It is in th development of a postliberal political theory that addresses this challenge that the best hope lies for salvaging and renewing what remains of value in liberal thought and practice."
John Gray (A Morte da Utopia, Guerra e Paz, 2008, p. 143):
Durante a década de Blair em funções, o governo britânico mudou de carácter. Todas as administrações visam apresentar uma imagem positiva de si mesmas e algumas,
pelo caminho, afastaram-se da verdade. No que Blair foi único foi em considerar a manipulação da opinião pública um propósito prioritário do governo. O resultado foi que, enquanto no passado eram uma característica intermitente do governo, sob a sua liderança as mentiras se tornaram parte integrante do funcionamento deste.E apesar de ter em casa imensos livros por ler, andava à procura de algo do género do recentemente lido "O Mundo Pós-Americano" de Fareed Zakaria, algo recente e que me despertasse a curiosidade, quando encontrei "A Morte da Utopia" (em inglês, Black Mass) do reputado professor da LSE, John Gray.
Na contracapa: «A história do século passado não é um conto de progresso secular, como os bem-pensantes da direita e da esquerda gostam de pensar. As tomadas de poder pelos bolcheviques e pelos nazis foram tanto levantamentos baseados na fé como a insurreição teocrática do aiatola Khomeini no Irão. A própria ideia de revolução como acontecimento transformador na história deve-se à religião. Os movimentos revolucionários modernos são uma continuação da religião por outros meios»
Ah e é verdade, bem Cristina, compreendo os argumentos mas, não posso deixar de ter a mesma percepção ou senso comum sobre a solidariedade entre as mulheres, e parece-me que pelo menos o Mike também concorda :p)