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(imagem tirada daqui)
Ontem tive a oportunidade de trazer à colação um assunto que do ponto de vista estritamente académico e científico me preocupa. Não sou politicamente correcto e gosto de fazer corresponder os conceitos às suas aplicações precisas, algo que, infelizmente, é cada vez mais difícil de conseguir. Alguns dizem que foi um acto de coragem, outros dizem que de estupidez. Como não presto reverência a nada nem ninguém a não ser à minha própria consciência, prefiro continuar a viver com essa em paz na minha busca pela verdade enquanto tento espicaçar os espíritos mais adormecidos para que questionem cada vez mais as certezas absolutas que por aí vão pairando.
Num auditório com cerca de um milhar de pessoas, perante o Professor Adriano Moreira, o ex-Presidente da República Mário Soares e Odete Santos, argumentei (tentei explicar, em vão, pois fui interrompido) que nunca houve fascismo em Portugal, ao que Odete Santos retorquiu com algo que não ouvi e que arrancou uma salva de palmas à plateia. A mesma plateia que não foi capaz de aplaudir como eu o fiz de pé o ex-Presidente da República quando em resposta à minha interpelação considerou que estando na academia, sendo nós estudantes de ciência política, temos que ter a noção que do ponto de vista dessa (e acrescento eu, do ponto de vistra estrito), não se pode dizer que o Estado Novo tenha sido fascista. Não deixa de ser irónico ter sido Mário Soares a compreender-me e fazer a minha defesa, para logo depois se divertir a colocar os dogmas de Odete Santos em cima da mesa, enquanto esta ia tentando mascarar as atrocidades cometidas pelo mundo fora em nome de uma ideologia - em minha opinião, um dos tipos de atitude mais indecente que se pode ter. Quando o pai da democracia em Portugal vai ao encontro daquilo que os mais intelectualmente honestos sabem, que mais será necessário dizer? Aqui fica, mais uma vez, um aplauso e um agradecimento pela corajosa atitude que também o ex-Presidente da República teve ontem em nome do rigor científico.
Por isto, aqui deixo parte do que escrevi há tempos no post "Fássistas!!!":
Agora, Salazar era tudo menos fascista, era um tradicionalista, conservador, integrista que pretendia manter a população calma, contrariamente à excitação que o fascismo advoga se provoque nas massas, e ainda que tenha utilizado instrumentos emprestados de regimes fascistas, como a censura e a repressão que, obviamente, porque sou um humanista, um liberal e politicamente incorrecto, me repugnam e repudio veementemente, foi o próprio Salazar quem reprimiu os que realmente eram fascistas, os nacionais-sindicalistas de Rolão Preto.
Basta atentar em dois breves parágrafos da obra de Paxton (Penguin Books, 2005) para perceber o que aqui escrevo:
The Estado Novo of Portugal differed from fascism even more profoundly than Franco’s Spain. Salazar was, in effect, the dictator of Portugal, but he preferred a passive public and a limited state where social power remained in the hands of the Church, the army, and the big landowners. Dr. Salazar actually suppressed an indigenous Portuguese fascist movement, National Syndicalism, accusing it of “exaltation” of youth, the cult of force through so-called direct action, the principle of superiority of state political power in social life, the propensity for organizing the masses behind a political leader” – not a bad description of fascism.” (p. 217)
Fascism may be defined as a form of political behavior marked by obsessive preoccupation with community decline, humiliation, or victim-hood and by compensatory cults of unity, energy, and purity, in which a mass-based party of committed nationalist militants, working in uneasy but effective collaboration with traditional elites, abandons democratic liberties and pursues with redemptive violence and without ethical or legal restraints goals of internal cleansing and external expansion. (p. 218)
(...)
Ora, na sociedade portuguesa criou-se o mito de que qualquer coisa que mexa à direita é automaticamente fascista. Seria o mesmo que eu ser intelectualmente desonesto e achar que tudo aquilo que mexe à esquerda é comunista, que é precisamente o outro totalitarismo do século XX que a par com o fascismo e nazismo vitimou milhões de pessoas, ideologias essas completamente incompatíveis com a prática da democracia liberal, da qual sou acérrimo defensor e simultaneamente crítico para com as imperfeições desta. E como há tempos me disse um professor meu, o espírito lusitano não é compatível nem com a prática do fascismo nem com a prática do comunismo real. Tentem implementar um regime assente em qualquer uma dessas ideologias e logo verão a reacção dos portugueses.
(...)
É pena que muita gente só consiga ver o mundo a preto e branco, um mundo em que aqueles que não se enquadram nos rótulos vigentes causam confusão nessas pessoas, um mundo em que os que são acérrimos defensores da liberdade de expressão e preferem caminhar no seu próprio caminho individual são vistos com desconfiança, um mundo em que há uma crescente falta de correspondência entre o conteúdo dos conceitos e os contextos em que são aplicados, para além de uma total falta de autenticidade e honestidade intelectual.
E porque é que eu me presto a preocupar-me sequer com este tipo de coisas? Porque tenho a clara sensação que Orwell está presente entre nós. Aqui e agora o duplopensar e a novilíngua são uma realidade que nos está claramente a levar no caminho da escravidão e servidão. É que tal como disse ontem na minha breve interpelação e a que o Professor Adriano Moreira anuiu com a cabeça, a sociedade portuguesa tem-se tornado escrava dos que se dizem combatentes contra o fascimo, que assim se sentem legitimados perantes os outros para levar a cabo os seus intentos, mesmo que esses sejam de uma perigosidade atroz para a democracia, não permitindo aos jovens agir verdadeiramente em prol do futuro do país. De salientar que a respeito do futuro do país, é imperativo definir verdadeiramente o tal novo conceito estratégico para o país de que o Professor Adriano Moreira tem vindo a falar ultimamente, especialmente se não queremos tornar-nos um estado exíguo.
As palavras, as ideias, o discurso, nada disso é neutro. A análise e desconstrução do discurso é importantíssima para perceber de onde é emanada a legitimidade num regime político. Mas num regime político cuja legitimidade tem erros de vício na sua base, é especialmente dever da academia e de todos aqueles que se dizem amantes da liberdade (que se o são então são liberais, e não comunistas ou socialistas), não se vergarem perante quem nos quer levar no caminho da servidão. Pena que muitos prefiram torcer a quebrar, até porque sabem que se forem "anti-fascistas" caem nas boas graças e prebendas do regime. Basta ter ouvido ontem um aluno de ciência política a dizer que não interessa se houve fascismo ou não porque isso é apenas uma questão de semântica, para perceber que este não entende nada do que supostamente anda (ou deveria andar) a estudar. Relembrando algumas das aulas de Ciência Política que tive, é elementar que a invenção da democracia foi feita no sentido de deixarmos de ter um dono. Para sairmos da oikos para a polis. Logo, só há democracia na polis, só há política em democracia, e a democracia não pode ter donos, a democracia é de todos e de ninguém em particular. Finalizo, portanto, com algo que escrevi há tempos a respeito dos donos da democracia no nosso país:
Estamos cada vez mais reféns dos que se dizem "democratas" quando na prática o são muito menos do que muitos daqueles que acusam de ser "fássistas", "comunas" (sim porque a maior parte dos que se dizem comunistas nem sequer leram qualquer dos seus alegados "ídolos" e só têm uma visão distorcida da história, não sabendo por isso que a prática real do comunismo é incompatível com o conceito de democracia), "neo-liberais" ou outros quejandos epítetos. Isto é demasiado perigoso, é o que tem permitido que a democracia electiva, iliberal e/ou de cariz autoritário tenha vindo a conquistar diversos países, veja-se o caso da democracia populista venezuelana.
E sendo assim, concluo apenas com uma frase do Henrique Burnay:
Falar em nome da defesa da Democracia porque dá jeito é o que põe em causa a Democracia. Mas, claro, nada disto é para levar a sério.