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Sobre Marine Le Pen e a Web Summit, tenho apenas a dizer que, como democrata liberal e conservador, estou nos antípodas de qualquer pensamento de carácter totalitário, seja fascista ou comunista, mas como adepto da liberdade de expressão e de pensamento, creio que todas as opiniões, por mais estúpidas que sejam, devem poder manifestar-se na esfera pública de qualquer democracia liberal, desde que possam ser desafiadas e expostas as suas fragilidades e as que são expressamente intolerantes possam ser contrariadas pelo debate racional e, caso se esteja na iminência de se tornarem hegemónicas, possam então ser suprimidas para salvaguardar o espaço público demo-liberal. Estou apenas a glosar Karl Popper e o seu paradoxo da tolerância, que aqui deixo em tradução da minha autoria:
“Menos conhecido é o paradoxo da tolerância: A tolerância ilimitada tem de levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo àqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. — Nesta formulação, não quero dizer que, por exemplo, devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; enquanto as possamos contrariar por argumentos racionais e mantê-las sob controlo pela opinião pública, a supressão será certamente insensata. Mas devemos reivindicar o direito de as suprimir, se necessário até pela força; pois pode facilmente dar-se o caso de elas não estarem preparadas para discutir racionalmente connosco, começando por denunciar todos os argumentos; elas podem proibir os seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos utilizando os seus punhos ou pistolas. Devemos, portanto, reinvindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante. Devemos afirmar que qualquer movimento que pregue a intolerância se coloca à margem da lei, e devemos considerar o incitamento à intolerância e à perseguição como crime, da mesma forma que devemos considerar como crime o incitamento ao homicídio, ou ao sequestro, ou ao regresso do comércio de escravos.”
Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, vol. 2:
This, of course, is not the only argument against the idea of a rule of love. Loving a person means wishing to make him happy. (This, by the way, was Thomas Aquinas’ definition of love.) But of all political ideals, that of making people happy is perhaps the most dangerous one. It leads invariably to the attempt to impose our scale of ‘higher’ values upon others, in order to make them realize what seems to us of greatest importance for their happiness; in order, as it were, to save their souls. It leads to Utopianism and Romanticism. We all feel certain that everybody would be happy in the beautiful, the perfect community of our dreams. And no doubt, there would be heaven on earth if we could all love one another. But as I have said before (in chapter 9), the attempt to make heaven on earth invariably produces hell.
Já li as mais diversas apreciações sobre o novo jornal, bem como interpretações e reacções, à esquerda e à direita, à entrevista a Mário Machado. Registo que uns acusam o Observador de tentativa de branqueamento. Em resposta ao celeuma que se gerou, José Manuel Fernandes escreveu umas breves linhas em que afirma que procuraram apenas contar uma história de forma crua e objectiva.
Acontece que um jornal que pretende romper com a hipocrisia da suposta isenção jornalística em Portugal, assumindo um posicionamento político, não pode estranhar quando é criticado pela ideologia que subjaza às suas peças, procurando então escudar-se numa alegada objectividade e numa angelical ingenuidade de quem diz que só quer contar uma história. É que há ideologia aparente, latente e por omissão. Um jornal que pretende ter um determinado posicionamento político-ideológico na realidade portuguesa não é um jornal no sentido clássico que o termo toma entre nós, é uma organização política. Faz jornalismo, mas também faz política. Logo, por definição, tem de tomar opções. Os jornais ditos isentos também o fazem, mas num jornal que se diz ideologicamente comprometido estas opções devem ser ponderadas com muito maior cuidado - especialmente aquando da sua génese, que marcará o espírito do jornal e o que a sociedade pensará sobre ele.
Os editores do Observador tomaram opções, conscientes ou não das suas consequências. Em dois dias de existência fizeram duas peças sobre Mário Machado, sendo uma delas uma reportagem extensa que, independentemente do espírito que presidiu à sua elaboração, é lida por muita gente como sendo uma reportagem que o procura reabilitar.
Não tomando posição na contenda que tem vindo a opor os que criticam o jornal e os que o defendem, lembro apenas uma célebre afirmação de Salazar: "Em política, o que parece é." Se a ideia era alcançar muitas visitas e visibilidade, conseguiram-no. Agora, não se admirem se não se conseguirem livrar da fama. Ainda para mais quando até o nome pode levar-nos facilmente a outro Observador, o Völkischer Beobachter, jornal oficial do partido de Hitler.
No meio disto tudo, o mais preocupante é que um jornal dito liberal, ideologia que os editores alegadamente professam e que em Portugal a ignorância de tanta gente tende a associar ao fascismo, vê-se, assim, associado ao neo-nazismo. Escudarem-se na ingenuidade angelical não adianta de nada. Talvez valesse a pena relerem as considerações de Karl Popper a respeito do paradoxo da tolerância:
"Unlimited tolerance must lead to the disappearance of tolerance. If we extend unlimited tolerance even to those who are intolerant, if we are not prepared to defend a tolerant society against the onslaught of the intolerant, then the tolerant will be destroyed, and tolerance with them. — In this formulation, I do not imply, for instance, that we should always suppress the utterance of intolerant philosophies; as long as we can counter them by rational argument and keep them in check by public opinion, suppression would certainly be unwise. But we should claim the right to suppress them if necessary even by force; for it may easily turn out that they are not prepared to meet us on the level of rational argument, but begin by denouncing all argument; they may forbid their followers to listen to rational argument, because it is deceptive, and teach them to answer arguments by the use of their fists or pistols. We should therefore claim, in the name of tolerance, the right not to tolerate the intolerant. We should claim that any movement preaching intolerance places itself outside the law, and we should consider incitement to intolerance and persecution as criminal, in the same way as we should consider incitement to murder, or to kidnapping, or to the revival of the slave trade, as criminal."
Popper esqueceu-de de ajuntar na sua magna teoria da democracia que, para lá da transição pacífica do poder, a mesma compreende a transmissão da estupidez. Camus dizia que a estupidez insiste sempre, e, olhando para o panorama autóctone e forâneo, o quadro é desolador. Transmissão pacífica da estupidez politicamente sancionada, talvez seja melhor dizer assim, não é caro Popper?
No seguimento deste post, onde dou conta de um determinado artigo de Karl Popper, deixo uma tradução feita por mim de parte do mesmo. Trata-se de "Towards a Rational Theory of Tradition", in Karl Popper, Conjectures and Refutations, Londres, Routledge, 2010, pp. 165-168:
«Uma teoria da tradição tem de ser uma teoria sociológica, porque a tradição é obviamente um fenómeno social. Menciono isto porque pretendo brevemente discutir convosco a tarefa das ciências sociais teoréticas. Esta tem sido frequentemente mal compreendida. De forma a explicar qual é, penso eu, a tarefa central das ciências sociais, gostaria de começar por descrever uma teoria que é defendida por muitos racionalistas – uma teoria que eu penso que implica exactamente o oposto do verdadeiro objectivo das ciências sociais. Chamarei a esta teoria a ‘teoria da conspiração da sociedade’. Esta teoria, que é mais primitiva que a maioria das formas de teísmo, é semelhante à teoria da sociedade de Homero. Homero concebeu o poder dos deuses de tal forma que tudo aquilo que acontecesse na planície de Tróia seria apenas um reflexo das várias conspirações no Olimpo. A teoria da conspiração da sociedade é apenas uma versão deste teísmo, de uma crença em deuses cujos caprichos e vontades regulam tudo. Deriva de se abandonar Deus e depois perguntar ‘Quem está no seu lugar?’ E o lugar dele é então preenchido por vários homens e grupos poderosos – sinistros grupos de pressão, que são culpados de terem planeado a grande depressão e todos os males de que sofremos.
A teoria da conspiração da sociedade é muito difundida, e contém muito pouca verdade nela. Só quando teóricos da conspiração chegam ao poder é que se torna algo como uma teoria responsável pelas coisas que realmente acontecem (um exemplo do que eu chamei “Efeito de Édipo”). Por exemplo, quando Hitler chegou ao poder, acreditando no mito conspirativo dos Sábios do Sião, tentou ultrapassar a conspiração destes com a sua própria contra-conspiração. Mas o interessante é que uma teoria da conspiração nunca – ou quase nunca – acontece da forma que se pretende.
Esta observação pode ser vista como uma pista quanto à verdadeira tarefa de uma teoria social. Hitler, disse eu, elaborou uma teoria da conspiração que falhou. Porque falhou? Não apenas porque outras pessoas conspiraram contra Hitler. Falhou, simplesmente, porque uma das coisas notáveis acerca da vida social é que nunca nada acontece exactamente como se pretende. As coisas acontecem sempre de forma um pouco diferente. Raramente produzimos na vida social precisamente o efeito que queremos produzir, e geralmente acontecem-nos coisas que não queremos no processo de barganha. Claro que agimos com determinados objectivos em mente; mas à parte destes objectivos (que podemos ou não realmente atingir) existem sempre consequências não pretendidas das nossas acções; e normalmente estas consequências não pretendidas não podem ser eliminadas. Explicar porque não podem ser eliminadas é a tarefa principal da teoria social.
(…)
Eu penso que as pessoas que se aproximam das ciências sociais com uma vulgar teoria da conspiração negam a elas próprias a possibilidade de alguma vez entenderem qual é a tarefa das ciências sociais, pois assumem que podemos explicar praticamente tudo numa sociedade perguntando quem o quis, quando a tarefa real das ciências sociais é explicar aquelas coisas que ninguém quer – como, por exemplo, a guerra, ou a depressão. (A revolução de Lenine, e especialmente a revolução de Hitler e a guerra de Hitler são, penso, excepções. Estas foram realmente conspirações. Mas foram consequências do facto de teóricos da conspiração terem chegado ao poder – que, de forma significativa, falharam na consumação das suas teorias).
A tarefa das ciências sociais é explicar como é que as consequências não pretendidas resultam das nossas intenções e acções, e que tipo de consequências resulta se as pessoas fizerem isto ou aquilo ou aqueloutro numa determinada situação social. E é, especialmente, a tarefa das ciências sociais analisar desta forma a existência e funcionamento de instituições (como as forças policiais ou companhias de seguros ou escolas ou governos) e colectivos sociais (como estados ou nações ou classes ou outros grupos sociais). O teórico da conspiração acreditará que as instituições podem ser entendidas completamente como resultado de um desenho consciente; e quanto aos colectivos, habitualmente confere-lhes uma espécie de personalidade de grupo, tratando-os como agentes conspirativos, como se fossem homens individuais. Opondo-se a esta visão, o teórico social deve reconhecer que a persistência de instituições e colectivos cria um problema a ser resolvido em termos de análise das acções sociais individuais e das suas consequências sociais não pretendidas (e muitas vezes não desejadas), assim como das pretendidas.»
Já por aqui deixei o que penso sobre as duas grandes tradições da democracia, nomeadamente, a tradição anglo-saxónica e a francesa. Hoje, aproveito para deixar uma breve passagem de um ensaio de John Gray, intitulado "George Soros and the Open Society", incluído na sua obra mais recente, Gray's Anatomy:
"During much of the last century it seemed that the capture of power by irrational systems of belief could occur only in dictatorial regimes. Nazi Germany and the Stalinist Soviet Union were closed societies whose ruling ideologies could not be exposed to critical scrutiny. Given the success of liberal democracy in defeating its rivals and spreading throughout much of the world it was easy to assume that it has a built-in rationality that gives it advantage over any kind of authoritarianism. Open societies were liberal democracies, almost by definition, and it seemed they would come into being wherever dictatorship had been overthrown.
Soros is clear that this was much too simple a view:
The collapse of a closed society does not automatically lead to an open society; it may lead to continuing collapse and disintegration that is followed by some kind of restoration or stabilization. Thus a simple dichotomy between open and closed society is inadequate ... Open society [is] threatened from both directions: too much liberty, anarchy, and failed states on the one hand; dogmatic ideologies and authoritarian or totalitarian regimes of all kinds on the other.
In fact, Popper's taxonomy may need a more fundamental revision than Soros has yet realized. When closed societies collapse but fail to make the transition to openness the reason need not be that thet languish in anarchy or suffer a return to dictatorship. It may be that they adopt an illiberal form of democracy. Along with the liberal democratic tradition that goes back to Locke and the English civil war there is a tradition, originating in the French Revolution and formulated theoretically by Rousseau, which understands democracy as the expression of popular will. The elective theocracy that is emerging in much of post-Saddam Iraq is a democractic polity in the latter sense, as is the current regime in Iran; so is the Hamas government in Palestine.
To be sure, these regimes often lack freedom of information and expression and legal limitations on government power, which are essential features of democracy in the liberal tradition. In these respects, they are closed societies; but they are not dictatorships. It is often forgotten that democracy, defined chiefly by elections and the exercise of power in the name of the majority, can be as repressive of individual freedom and minority rights as dictatorship - sometimes more so."
É o título de um pequeníssimo livro de Karl Popper e John Condry, datado de 1993/94, no qual Popper alertava para os perigos da excessiva liberdade da televisão que levou à degenerescência no tipo de conteúdos fornecidos. Popper propunha, talvez utopicamente, que se criasse uma ordem que emitisse e retirasse licenças aos trabalhadores e produtores televisivos, que deveriam jurar uma espécie de código deontológico. Deixo aqui dois breves parágrafos de Popper, e um pequeno parágrafo do posfácio de Jean Baodouin. Depois de há uns tempos ter escrito um post indignado com certa degenerescência da televisão portuguesa, foi com agrado que li esta obra.
A proposta que aventei não tem apenas um carácter de urgência, corresponde também a uma necessidade absoluta do ponto de vista da democracia. Eis, resumidamente, a razão: a democracia consiste em submeter o poder político a um controle. É essa a sua característica essencial. Numa decmocracia não deveria existir nenhum poder político incontrolado. Ora, a televisão tornou-se hoje em dia um poder colossal; pode mesmo dizer-se que é potencialmente o mais importante de todos, como se tivesse substituído a voz de Deus. E será assim enquanto continuarmos a suportar os seus abusos. A televisão adquiriu um poder demasiado vasto no seio da democracia. Nenhuma democracia pode sobreviver se não se puser cobro a esta omnipotência. E é certo que se abusa deste poder hoje em dia, nomeadamente na Jugoslávia, mas esses abusos podem ocorrer em qualquer sítio. O uso que se faz da televisão na Rússia é igualmente abusivo. A televisão não existia no tempo de Hitler, ainda que a sua propaganda fosse organizada sistematicamente com um poderio quase comparável. Com ela, um novo Hitler disporia de um poder sem limites.
Não pode haver democracia se não submetermos a televisão a um controle, ou, para falar com mais precisão, a democracia não pode subsistir de uma forma duradoura enquanto o poder da televisão não for totalmente esclarecido. De facto, os próprios inimigos da democracia apenas possuem uma débil consciência desse poder. Quando tiverem compreendido verdadeiramente o que podem fazer com ele, utilizá-lo-ão de todas as formas, inclusivamente nas situações mais perigosas. Mas então será tarde de mais. É agora que devemos tomar consciência desse risco e submeter a televisão a um controle através dos meios que indiquei. (Karl Popper)
Se uma sociedade democrática tem necessidade de liberdade para neutralizar o poder devorador do Estado, também necessita da arma regulamentar para reduzir as más utilizações da liberdade. Popper sempre achou que a economia de mercado era a companheira mais ou menos insubstituível da democracia política. Porém, não aceita que ela generalize inconsideradamente as suas lógicas a todos os registos da vida social. Sobretudo quando, em nome da eficácia e da rendibilidade, submete as cadeias de televisão aos ditames cegos da concorrência, abrindo assim o caminho aos programas mais nefastos e mais deseducativos. Entre a hipótese obsoleta de um monopólio de Estado da radiotelevisão e o panorama actual da privatização e da concorrência selvagem talvez haja lugar para uma solução intermédia: a criação de uma ordem corporativa que emita licenças e possa, em qualquer momento retirá-las. Nem todo o poder ao Estado, nem todo o poder ao mercado. (Jean Baodouin)