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Crisis state of mind

por Samuel de Paiva Pires, em 12.01.12

(Artigo publicado no n.º 5 do Lado Direito, jornal da Juventude Popular de Lisboa)

 

Solicitou-me a editora do nosso Lado Direito que redigisse um artigo em jeito de balanço do ano que se findou. Confesso que depois de ter lido, visto e ouvido tantos balanços a relembrar o ano de 2011 fiquei enfastiado. Por isto, e desde já rogo que me desculpes, Joana, em vez de procurar repetir aqui o que já todos sabem, optei por discorrer sobre aquilo que está na mente de todos desde há algum tempo a esta parte e que é definitivamente a palavra que marca o ano transacto: a crise.

 

Ora e porque em português nenhuma tradução do título supra me soava minimamente atraente e pomposa, apresento desde já as minhas desculpas aos caríssimos leitores por me atrever a dar um título em “estrangeiro”. Noutra língua poderia também ser Schaum der Tage, ou seja, espuma dos dias. Porque na verdade, a crise é, entre as suas várias dimensões, também e sobretudo um estado de espírito, que neste contexto da modernidade líquida (termo cunhado por Zygmunt Bauman), em que tudo é efémero e provisório, assume contornos que de uma forma generalizada roçam o cataclismo apocalíptico, coisa que tende a atrair facilmente a mente humana. Na espuma dos dias, praticamente não houve dia algum durante o ano de 2011 em que não surgissem notícias em Portugal, na Europa, nos Estados Unidos da América, a sugerir o iminente colapso da civilização ocidental. Civilização esta que ao conjunto do seu património histórico, cultural e espiritual alia ainda os mais altos níveis materiais de bem-estar e desenvolvimento humano de todo o mundo. Parecemos ter uma atracção inegável pelo apocalipse.

 

Acontece que apocalipse significa revelação, ou seja, não é algo necessariamente negativo, ao contrário do que o emprego habitual da palavra deixa adivinhar. Significa que, após uma revelação, após uma determinada alteração, como cantam os comunistas, “o sol brilhará para todos nós”. E não só isto se passa com a palavra apocalipse como também com aquela que está profundamente sedimentada nas mentes de milhões de pessoas e que tem conexões óbvias com o significado da primeira. Etimologicamente, crise provém do grego krísis e do latim crĭsis e significa momento de decisão, de transição. E na realidade, é essencialmente disto que se trata quando se fala em crise, especialmente quando é qualificada de sistémica. De forma simplista, uma crise tem três fases: pré-crise, escalada e resolução. E esta resolução, em sistemas complexos, faz-se por uma de duas vias ou capacidades, a homeoestase ou a homeorese. No caso da primeira, o sistema preserva-se, integrando as problemáticas com que se depara através de processos de aprendizagem simples, nunca realmente se alterando de sistema. No segundo caso, normalmente derivado da ineficácia da capacidade homeostática em responder a um problema, ocorre um processo de superação do paradigma sistémico vigente por via de um processo de aprendizagem complexa, mudando-se verdadeiramente de sistema. Neste sentido, parece-me que estamos actualmente a assistir a uma gigantesca e, de certa forma, dolorosa, reestruturação do sistema financeiro e económico internacional, com reflexos geopolíticos que se vão definindo de forma ténue.

 

Não é segredo para ninguém, em particular para os que têm lido os meus artigos publicados nesta coluna, que considero a mentalidade racionalista construtivista e planeamentista e o crony capitalism (promiscuidade entre actores políticos e agentes económicos) como factores largamente responsáveis pela crise que vamos vivendo. Mas apesar de tudo, e porque um conservador é um optimista moderado (como afirma Roger Scruton), se colocarmos a nossa visão do mundo em perspectiva e relativizarmos um pouco os tempos em que vivemos, não há que entrar em desespero, ainda que perante a catadupa de notícias e acontecimentos que enformam o estado de espírito generalizado vigente. Se nos desprendermos da nossa tradicional visão eurocêntrica, percepcionaremos claramente que vivemos num mundo melhor que o de há escassos 100 anos. Basta pensar, por exemplo, que nas últimas décadas, por via da globalização, milhões de pessoas saíram da pobreza extrema. Não podemos negar que existem problemas, muito pelo contrário, e um espírito crítico é algo sempre saudável e muito necessário para uma sociedade vibrante e com uma cidadania que se pretende activa e participativa. Mas, como em tudo na vida, há coisas negativas mas também positivas. A natureza humana é imperfeita, pelo que é simplesmente utópico pensar que alcançaremos alguma vez um mundo perfeito e acabado. Como escreveu Camões, “todo o mundo é composto de mudança”. Temos é que saber encará-la. Crises sempre existiram e continuarão sempre a existir na humanidade. Neste momento de transição, em que 2011 ficará definitivamente marcado pela crise e por movimentos como os Indignados, Occupy Wall Street e a Primavera Árabe, e quando em Portugal enfrentamos provavelmente um dos anos mais difíceis das últimas duas décadas, permitam-me deixar esta mensagem contra os histerismos que nos fazem temer regressar quase à Idade da Pedra.

 

Quanto ao nosso país, é seguir o lema britânico “Keep Calm and Carry On”, para que, como escreveu Fernando Pessoa, ainda possamos cumprir Portugal. Não será fácil, mas se há algo verdadeiramente constante na nossa História são as permanentes crises económicas, sociais e políticas em frente das quais nos soubemos reinventar. Cabe-nos, reportando-me a Portugal na Balança da Europa de Almeida Garrett, “não nos iludir com aparências, não nos cegar com facilidades. Temos estorvos grandes que remover, obstáculos imensos que superar, grandes e perplexas e quase inextricáveis dificuldades que deslindar e desembaraçar. (…) Venceremos, mas não sem trabalho. Havemos de triunfar, mas não sem sacrifício”.

 

Finalizo expressando o meu desejo de que tenham um óptimo ano de 2012!

publicado às 00:44

Somerset Maugham – Servidão Humana

por Samuel de Paiva Pires, em 10.12.11

(Há uma primeira vez para tudo, até para me armar em crítico literário, pelo que aqui fica este artigo publicado no n.º 4 do Lado Direito, jornal da Juventude Popular de Lisboa)

 

 

Romance intemporal de um dos mais célebres escritores do século XX, Servidão Humana é um registo autobiográfico que relata a história de Philip Carey, alter ego de Maugham, focado particularmente na sua entrada na idade adulta e nos dilemas pessoais por que todos somos atingidos nessa fase da vida em que a nossa personalidade fica mais definitivamente formada.

          

Sem uma escrita floreada ou com demasiados recursos estilísticos, Maugham leva-nos directamente ao âmago da sua existência e aos dilemas que se consubstanciam na eterna necessidade de liberdade, virtude a que qualquer ser humano aspira. A subtil narração principia com o duro processo que leva a que Philip fique órfão com apenas 9 anos de idade, indo posteriormente viver com os tios na província. Após alguns anos, passados essencialmente na biblioteca do tio, vigário de Blackstable, e no colégio onde os colegas gozam com o seu pé deficiente, algo que o marcará para sempre, Philip lança-se ao mundo começando por ir estudar para Heidelberg durante uma temporada, passando por Paris, onde tenta singrar como pintor, e regressando a Londres, onde trabalha em diversos ofícios e estuda medicina.  

 

Levando-nos pelo seu próprio percurso intelectual, de onde há a salientar a aprendizagem dos clássicos e as reflexões sobre religião e filosofia, Maugham presenteia-nos com uma das mais poderosas histórias sobre o amor, não no sentido quase banal a que muita da literatura e cinematografia contemporâneas habituaram as sociedades modernas, mas num plano porventura mais verdadeiro, mais cru e mais doloroso, em que Philip se vê perdidamente apaixonado por Mildred, uma mulher que se pode dizer ser quase desprezível e desinteressante, da qual não se consegue libertar e pela qual contraria o seu eu mais racional incontáveis vezes. No fundo, ficamos perante o dilema que o filósofo Isaiah Berlin enunciou ao afirmar que existe em cada indivíduo uma dicotomia interior entre o seu carácter racional e os seus impulsos irracionais, ou seja, os seus desejos mais primários, que levam à busca do prazer imediato, pelo que ficará sempre a questão: conseguirá um ser humano alcançar um nível de consciência tal que lhe permita ser dono das suas próprias paixões, e não escravo delas?

 

A dor de Philip é também aquela por que muitos passamos. A todo o momento queremos que ele se liberte, mas compreendemos exactamente o porquê de agir como age. Acaba até por haver uma certa universalidade no comportamento humano, uma idiossincrasia masculina, dado que a história de Philip nos relembra as palavras que Ramalho Ortigão utilizou para caracterizar o amor na sociedade portuguesa: «O impulso amoroso no coração lusitano, em vez de impelir a fantasia a voejar por instantes no país do azul, excita apenas o temperamento a marrar a fundo, espesso e resfolegante, nas trevas. (…) Na evolução patológica dos sentimentos o amor é o antraz maligno da nossa raça. Uma vez apaixonado, o português é um enfermo, é quase um irresponsável. Perde a faculdade de estar alegre e de estar atento. Torna-se estúpido e sombrio.»

 

Maugham não desilude e, apesar de ter confessado que a escrita de Servidão Humana serviu para se libertar de vários demónios pessoais, deixa-nos com um desfecho agradável. No fim, fica aquele vazio de sabermos que acabámos de ler um grande livro com uma intemporal reflexão sobre o comportamento humano. Relê-lo será sempre uma boa ideia.

publicado às 19:14

(Artigo publicado no n.º 4 do Lado Direito, jornal da Juventude Popular de Lisboa)

 

Liberalismo e conservadorismo são duas das mais importantes correntes da teoria política, cujos pontos em comum, pese embora algumas divergências, são de salientar. Para este propósito, nada melhor do que analisar Edmund Burke, o chamado pai do conservadorismo, e Friedrich Hayek, um dos mais importantes liberais do século XX, que em muito se inspirou em Burke. Aliás, mais do que catalogar os autores de acordo com categorias por nós atribuídas a posteriori, importa realmente estudar as ideias destes, já que os pontos coincidentes são muitos.

 

Burke e Hayek subscrevem a mesma filosofia política, havendo uma partilha de valores comuns. Embora existam diferenças entre alguns dos seus pontos de vista, partilham “visões similares quanto à natureza da sociedade, o papel da razão na conduta humana e as tarefas do governo, bem como, até certo ponto, quanto à natureza das regras morais e legais”1. As parcas diferenças parecem ficar a dever-se ao credo religioso, sendo Burke um seguidor do cristianismo e Hayek um agnóstico. 

 

De certa forma, Hayek tentou completar o pensamento de Burke com uma base científica, para além da espiritual, o que fica patente no entendimento hayekiano quanto à natureza da sociedade que, tal como o entendimento de Burke, deriva das ideias dos iluministas escoceses que contribuíram para desenvolver a doutrina Whig (partido político britânico de que Burke foi a figura maior). Para Adam Ferguson, David Hume e Adam Smith, a sociedade e as suas instituições são o resultado de um processo de crescimento cumulativo em que a ordem social é um produto da interacção entre instituições, hábitos, costumes, lei e forças sociais impessoais. Tanto Burke como Hayek possuíam uma visão idêntica, de que as instituições sociais são o produto de um complexo processo histórico, caracterizado pela experimentação, ou seja, por tentativa e erro. Para ambos, as condições para que uma sociedade floresça consubstanciam-se no necessário respeito e compreensão pelas forças que mantêm a ordem social, que não deve ser alvo de manipulação e controlo por parte de teorias que pretendam acabar com ela, sendo o desejo de apagar o que existe e desenhar a sociedade de novo apenas a demonstração de uma profunda ignorância quanto à natureza da realidade social. Esta mesma acepção inspira a forma como encaram o papel da razão, considerando que a civilização não é uma criação resultante de uma construção racional, mas o imprevisto e não intencionalmente pretendido resultado da interacção espontânea de várias mentes numa matriz de valores, crenças e tradições não racionais ou supra racionais, o que não significa que o liberalismo e conservadorismo sejam irracionais, mas apenas que não o são no sentido cartesiano, socialista, preferindo reconhecer limites ao poder da razão humana e considerando o “homem não como um ser altamente racional e inteligente mas sim muito irracional e falível, cujos erros individuais são corrigidos apenas no decurso do processo social”2.

           

Este ponto de partida perpassa os edifícios teóricos burkeano e hayekiano no que à política e à economia diz respeito. Ambos são defensores do mercado livre e objectores à manipulação por parte do governo dos processos do mercado, dado que viola as regras e princípios do comércio livre, sendo, por isso, uma intervenção arbitrária corrosiva da liberdade e da justiça.

           

No que à já referida divergência concerne, se no entendimento de Burke a sociedade civil fundamenta-se no cristianismo e, logo, também o estado, instituição sagrada providenciada pela Vontade Divina, Hayek, por seu lado, sendo agnóstico, não partilhava da mesma acepção por temer a antropomorfização da Vontade Divina, em que uma particular vontade humana – ou várias – ficaria a dirigir o curso da vida social, inspirando esforços equivocados para controlar o processo social espontâneo através da direcção consciente.

           

Esta divergência, contudo, não constitui obstáculo a uma defesa da tradição e do mercado, que ambos realizam, inclusivamente em termos morais. Em Hayek encontramos a defesa da tradição, do costume e de uma moralidade baseada no senso comum, de índole prática, como aponta Roger Scruton. Este filósofo conservador britânico assinala que Hayek encara o mercado livre como sendo parte de uma ordem espontânea alargada, fundada na livre troca de bens, ideias e interesses – o jogo da cataláxia, na terminologia hayekiana. Este jogo acontece ao longo do tempo e para além dos vivos tem nos mortos e nos ainda por nascer os restantes jogadores, como Burke também havia afirmado, que se manifestam através das tradições, instituições e leis. A assertividade dos argumentos apresentados por Scruton quanto à compatibilidade entre a tradição, a moral e o mercado é por demais evidente: “Aqueles que acreditam que a ordem social exige restrições ao mercado estão certos. Mas numa verdadeira ordem espontânea as restrições já lá estão, sob a forma de costumes, leis e princípios morais. Se essas coisas boas decaem, então de forma alguma, de acordo com Hayek, pode a legislação substituí-las, pois elas surgem espontaneamente ou não surgem de todo, e a imposição de éditos legislativos para a “boa sociedade” destrói o que resta da sabedoria acumulada que torna tal sociedade possível. Não é, por isso, surpreendente que pensadores conservadores britânicos – notavelmente, Hume, Smith, Burke e Oakeshott – tendam a não ver qualquer tensão entre a defesa do mercado livre e uma visão tradicionalista da ordem social. Eles puseram a sua fé nos limites espontâneos que o consenso moral da comunidade coloca ao mercado. Talvez este consenso esteja agora a quebrar-se. Mas esta quebra resulta, em parte, da interferência estatal, e é certamente improvável que venha a ser reparada pela mesma”3.

           

Por tudo isto, nada como terminar subscrevendo José Adelino Maltez, quando este afirma que partilhamos de “uma concepção do mundo e da vida anti-construtivista, anti-revolucionária e anti-estadista, segundo a qual não é a história que faz o homem, mas o homem que faz a história, mesmo sem saber que história vai fazendo.”



1 - Linda C. Raeder, Linda C. Raeder, “The Liberalism/Conservatism Of Edmund Burke and F. A. Hayek: A Critical Comparison”, in Humanitas, Vol. X, N.º 1, 1997. Disponível em http://www.nhinet.org/raeder.htm.

2 - F. A. Hayek, “Individualism: True and False”, in Individualism and Economic Order, Chicago, The University of Chicago Press, 1996, pp. 8-9.

3 - Roger Scruton, “Hayek and conservatism”, in Edward Feser (ed.), The Cambridge Companion to Hayek,Cambridge, Cambridge University Press, 2006, p. 219.

publicado às 19:06

O Paradoxo dos Indignados

por Samuel de Paiva Pires, em 17.11.11

(Artigo publicado no n.º 3 do Lado Direito, jornal da Juventude Popular de Lisboa)

 

O mês que passou viu as ruas de centenas de cidades em todo o mundo serem varridas por uma vaga de indignações e ocupações. Enquanto na Europa o efémero movimento já perdeu força, nos Estados Unidos da América os ocupantes de Wall Street continuam a aumentar os seus números. Motivados pelo livro panfletário Indignez-vous! da autoria do intelectual francês Stéphane Hessel e, certamente, pelo revanchismo patente em Inside Job, uma película cinematográfica à boa maneira de Hollywood, plena de pseudo-moralismo esquerdista, os “indignados”, a começar por Hessel, acertam no diagnóstico mas falham redondamente na cura, conforme Axel Kaiser e Russ Roberts evidenciam.

 

Os indignados acertam em cheio quando reclamam contra a relação promíscua entre o poder político e a banca. Tanto nos EUA como na Europa, assistimos nas últimas décadas a uma convergência de interesses entre políticos e banqueiros. Os políticos expandiram o aparelho estatal a coberto do Estado Social, prometendo benefícios e direitos como forma de ganhar eleições, e ao aperceberem-se que não seria aceitável aumentar (ainda mais) os impostos cobrados aos contribuintes, descobriram que a forma que tinham de continuar a financiar as suas clientelas eleitorais e partidárias era através de empréstimos, ficando em larga medida à mercê da banca. Na Zona Euro, acresce ainda uma outra perversão, a da moeda única. Esta incentivou os países conhecidos jocosamente como PIIGS a endividarem-se a juros baixos, que se justificavam em virtude dos investidores terem encarado os títulos de dívida destes tão seguros quanto os da Alemanha, crendo que esta e a França os resgatariam se algum deles entrasse em incumprimento. Com estes incentivos, não admira que os políticos dos países do sul da Europa tivessem aproveitado a oportunidade para prometer aos eleitores mais benefícios, assim conseguindo vitórias eleitorais e alargando redes clientelares onde a promiscuidade entre políticos, banqueiros e empresários é a regra. E tanto na Zona Euro como nos EUA, a actividade dos bancos centrais é também ela perversa, pois não só criam dinheiro a partir do nada e mantêm taxas de juro artificialmente baixas, como se prestam ainda à função de credor de último recurso, resgatando bancos privados mal geridos em vez de os deixarem falir, como defende o mercado livre e o capitalismo.

 

Mas os ocupantes de Wall Street e os seus camaradas europeus falham redondamente quando ao criticarem este panorama o denominam como capitalista, visto que na realidade aquilo a que assistimos é mais correctamente designado por crony capitalism, ou seja, uma perversão do capitalismo em que os privados se tornam próximos do poder político e fazem depender o seu sucesso dos favores que este lhes confere. O diagnóstico dos sintomas está correcto, mas a doença não é demasiado capitalismo mas sim pouco capitalismo. O capitalismo e o mercado livre fundamentam-se, como Kaiser assinala, na concorrência entre actores privados como os bancos e empresários, na ausência de agências de planeamento monetário centralizado, na falência de empresas que são geridas de forma irresponsável, numa moeda forte que assegure o poder de compra do dinheiro das pessoas, e na ausência de relações promíscuas entre o governo e as elites económicas. Ou seja, exactamente o oposto daquilo a que vimos assistindo um pouco por todo o Ocidente.

 

A solução dos indignados para um problema que é reflexo da expansão do aparelho estatal é mais estado, o que é perfeitamente ilógico: é o paradoxo dos indignados. Para Hessel, se os políticos e burocratas tiverem mais poder, o sistema será menos corrupto. A evidência histórica mostra precisamente o contrário, e não é por acaso que os países mais corruptos são aqueles onde o estado e os políticos têm mais peso na sociedade. Esta solução errada baseia-se em ideias que há muito vêm fazendo escola no pensamento político, tendo contribuído para alguns dos maiores desastres da humanidade, nomeadamente a combinação entre o colectivismo e o bem comum na perspectiva de Rousseau e a rejeição da liberdade individual que é o fundamento essencial da civilização ocidental.

 

Torna-se, por tudo isto, perigoso que no debate público as ideias erradas dos indignados, subscritas por muitos intelectuais, criem raízes duradouras. Indignações fundamentadas em ideias erradas reflectem-se em soluções erradas, apenas agravando o problema. E é por isso que intelectuais, académicos e políticos com especial responsabilidade na criação e difusão de ideias devem esforçar-se para que o debate público não se torne, como em outras épocas, propício a que ideias potencialmente totalitárias se tornem dominantes.

publicado às 12:54

A União Europeia como um projecto socialista

por Samuel de Paiva Pires, em 06.10.11

(Artigo publicado no n.º 2 do Lado Direito, jornal da Juventude Popular de Lisboa)

 

Philipp Bagus, professor na Universidade Rey Juan Carlos de Madrid, escreveu recentemente um interessantíssimo livro que elucida de forma clara o caminho que a União Europeia tem percorrido, em particular no que diz respeito ao sistema monetário. Sugestivamente intitulado The Tragedy of the Euro, está disponível gratuitamente no site do Instituto Ludwig von Mises em http://mises.org/resources/6045/The-Tragedy-of-the-Euro.

 

Começando por contextualizar historicamente a introdução do Euro, Bagus perspectiva a União Europeia como sendo um projecto resultante de duas visões opostas. A primeira é a visão liberal, que preponderou no início do projecto europeu, tendo sido promovida por políticos liberais, conservadores e democratas-cristãos de países como Inglaterra, Alemanha e Holanda. A segunda é a perspectiva socialista, que tem nos franceses Jacques Delors e François Miterrand expoentes máximos. Enquanto os primeiros consideram a liberdade individual como o valor mais importante, defendem os direitos de propriedade, o mercado livre e uma Europa sem barreiras fronteiriças que assim permita a livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e ideias, e são extremamente cépticos em relação ao processo de transferência de soberania, centralização e concentração de poder numa entidade supra-estatal, os segundos, por seu lado, sonham precisamente com a reprodução a nível europeu do estado-nação, fundamentado no modelo do Estado Social e, portanto, operando a nível central os processos de redistribuição, regulação e harmonização da legislação de toda a Europa.

 

A visão socialista é a que tem preponderado desde a entrada do Euro em circulação, que se tornou um factor ao serviço da centralização de poder em Bruxelas, reforçando tendências como a realização de políticas de redistribuição de riqueza e regulamentação excessiva, ao mesmo tempo que fomentou o endividamento público financiado pelo BCE. Tendo falhado o projecto de uma constituição europeia, o Euro é hoje um dos últimos instrumentos ao serviço desta visão. Citando Philipp Bagus, “o Euro provoca o tipo de problemas que podem ser vistos como um pretexto para a centralização da parte dos políticos. De facto, a construção e instalação do Euro provocaram uma corrente de severas crises: os estados membros podem utilizar a impressora para financiar os seus défices; esta característica do Sistema Monetário Europeu invariavelmente leva a uma crise de dívida soberana. A crise, por sua vez, pode ser usada para centralizar o poder e políticas fiscais. A centralização das políticas fiscais pode então ser utilizada para harmonizar a taxação e acabar com a competição”.

 

Infelizmente, e embora eu seja um simpatizante dos objectivos primordiais da UE, norteados pela visão liberal, não é difícil observar que a UE encontra-se hoje dominada e liderada por partidários da visão socialista, sendo uma entidade que tende para um constante reforço do processo de centralização de poder, que aumenta o défice democrático – que, como o filósofo britânico Roger Scruton evidencia em As Vantagens do Pessimismo, não é uma deficiência a ser colmatada pela UE mas sim uma característica estrutural do funcionamento das instituições europeias – e que produz cada vez mais legislação que já ninguém pode entender no seu todo, regulamentando cada vez mais aspectos da vida dos indivíduos e acabando por realizar uma espécie de planificação económica através da via monetária que se tem revelado particularmente ruinosa, como a crise das dívidas soberanas tornou evidente.

 

Até na intolerância por muitos demonstrada, que reduz o debate a europeístas vs. eurocépticos, como se muitos dos alegados eurocépticos não fossem também europeístas, embora não partidários desta visão socialista da UE, e na linguagem utilizada, por exemplo, ainda recentemente, por Durão Barroso quando propôs que todos amássemos incondicionalmente a UE, observamos cada vez mais reminiscências de uma mentalidade socialista que pretende reproduzir o nefasto nacionalismo a nível europeu, cujas experiências históricas passadas parecem ainda não ter servido de lição a quem nos lidera. Permitam-me ironicamente adaptar aqui uma célebre – pelos piores motivos – expressão de um ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, para finalizar afirmando que há mais vida para lá do europeísmo socialista. Bagus está sem dúvida cheio de razão quando nos diz que “está longe da verdade que o fim do Euro signifique o fim da Europa ou da ideia Europeia; significaria apenas o fim da versão socialista desta”.

publicado às 16:34

A narrativa política europeia encontra no seu cerne, desde há décadas, o propalado Estado Social. As raízes deste datam de um dos grandes teóricos políticos da era vitoriana, Jeremy Bentham, pai do utilitarismo. Embora este fosse um defensor do laissez-faire e de um estado pouco intervencionista, o seu princípio utilitarista da “felicidade do maior número” inspirou muitos dos políticos britânicos do século XIX, contribuindo directamente para a justificação de uma crescente intervenção do estado na sociedade, acompanhada por uma expansão das suas competências administrativas.

 

No centro da Europa, Otto von Bismarck, feroz opositor do socialismo, aplicou programas de apoio social na Prússia e na Saxónia, e após a unificação alemã (em 1871) criou os alicerces do moderno conceito de Estado Social ao introduzir um sistema de segurança social com pensões de invalidez, doença e reforma e acesso a cuidados médicos providenciados pelo estado. O Chanceler alemão pretendia garantir a coesão social e impedir que eventuais descontentes pudessem ser ideologicamente tolhidos pelo socialismo de cariz mais radical, mas o mundo não se livrou de ver aplicados regimes políticos assentes no socialismo – fascismo, nazismo e comunismo – aquilo a que Friedrich A. Hayek chamou de “hot socialism”, por oposição ao “cold socialism” do Estado Social.

 

Após a II Guerra Mundial e no rescaldo da Grande Depressão, o Relatório Beveridge de 1942 propôs um amplo modelo de Estado Social que se tornou politicamente consensual, sendo perspectivado como uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo, inspirando, portanto, a social-democracia. O princípio chave deste modelo é o conceito de justiça social que permitiu, por um lado, novas reivindicações por parte dos cidadãos em relação ao governo, mas por outro, permitiu também a este alargar discricionariamente os seus poderes em nome da justiça social.

 

Que o conceito de justiça social seja desprovido de sentido e se fundamente em pouco mais que a redistribuição de rendimentos para atingir propósitos políticos, é algo que não impediu que este se tornasse o mais eficaz argumento na discussão política contemporânea, servindo os propósitos de justificação de qualquer medida e rapidamente enfraquecendo a eventual oposição a esta. Acontece que, conforme Hayek assinala, ao contrário do socialismo original, o conceito de Estado Social não tem um significado preciso, e prova disto mesmo são os modelos diversificados aplicados em vários estados – assim como o debate de surdos ferido de morte pela demagogia, para o qual, em Portugal, o Partido Socialista liderado por José Sócrates contribuiu de forma determinante.

 

Certo é que, também de acordo com Hayek, nas sociedades industriais contemporâneas, não há razão, dados os níveis de riqueza alcançados, para não garantir um mínimo de segurança económica a todos os cidadãos, sem que tal coloque em causa a liberdade individual, até porque ao estado compete assegurar a manutenção da regras gerais de conduta e funcionamento da ordem alargada da sociedade, deixando aos indivíduos uma larga esfera de liberdade individual, mas também providenciar bens e serviços que o mercado não produz ou não pode produzir adequadamente. O problema surge quando o estado não se confina a si próprio e, legitimando e disfarçando as suas intenções sob o manto da justiça social, acaba por utilizar os seus poderes coercivos (por exemplo, a capacidade de cobrar impostos), para atingir propósitos políticos não consensuais na sociedade, reclamando ainda direitos sobre determinadas áreas da vida desta, e criando uma miríade de instituições que actuem nestas áreas. Este alargar das competências do governo fundado na distribuição de recursos e rendimentos, para além de distorcer o funcionamento da economia de mercado, levou ao enorme crescimento de um aparelho para-governamental que consiste em associações comerciais, sindicatos e organizações profissionais que tentam captar favores governamentais em troca do seu apoio político.

 

Foi desta forma que durante a segunda metade do século XX assistimos a um aumento exponencial de clientelas políticas e dependentes do estado e à captura deste por grupos de interesses organizados, degenerando o modelo do Estado Social em algo que vai muito para lá dos seus alegados propósitos de bem-estar social (saúde, educação, segurança social). Mais grave ainda, os defensores do intervencionismo estatal – sejam comunistas, socialistas ou social-democratas – não compreendem que foi precisamente o Estado Social que acabou por quebrar muitos dos vínculos tradicionais entre os indivíduos, tornando-os mais isolados e mais egoístas (num sentido pejorativo), e deixando-os à mercê de máquinas burocráticas que assumem crescentemente características de organizações ou sociedades de pendor totalitário.

 

Se queremos manter os propósitos do Estado Social, este necessita de uma refundação urgente que o resgate dos seus efeitos verdadeiramente anti-sociais e lhe dê sustentabilidade financeira. Não é financeira nem moralmente viável continuar a aumentar impostos para sustentar um modelo social degenerado. E o facto de, em Portugal, termos levado o endividamento externo (e toda a dívida estatal significa impostos futuros) a níveis que estão muito para lá do aceitável é mais que suficiente para nos fazer pensar nisto, porquanto está indelevelmente colocado em causa o princípio da solidariedade inter-geracional. Chegamos ao actual estado de coisas com a nossa liberdade cada vez mais reduzida, obrigados à submissão para que nos seja possível sobreviver, enquanto a União Europeia vai navegando à vista nesta crise das dívidas soberanas que arrisca fragmentar ou aprofundar o processo de integração europeia.

 

Entretanto, considerando o acordo com a Troika FMI/BCE/CE, temos uma apertada margem temporal para operar uma verdadeira reforma estrutural que diminua o peso do estado na economia e na sociedade, o que passa por extinguir milhares de organismos, institutos, fundações e privatizar ou também fechar muitas das empresas do sector empresarial estatal. Nesta matéria, o Orçamento Geral do Estado para 2012 será a prova de fogo do actual governo PSD-CDS. Simultaneamente, precisamos também de pensar o nosso lugar no Mundo. O vector europeísta da nossa política externa está cada vez mais esgotado e esta, que sempre serviu para que procurássemos no exterior recursos para nos desenvolvermos internamente, precisa de se virar para onde estes existem e onde, ainda por cima, os seus detentores nos são histórica e culturalmente próximos. O Atlântico sempre foi o principal vector desta, até 1974. Talvez esteja na altura de recuperar esta orientação para que, como escreveu Fernando Pessoa, possamos cumprir Portugal. 

 

(Artigo originalmente publicado no primeiro número do Lado Direito, jornal da Concelhia de Lisboa da JP, conforme aqui referido.)

publicado às 09:12

Lado Direito

por Samuel de Paiva Pires, em 08.09.11

O primeiro número do Lado Direito, jornal da Concelhia de Lisboa da JP, já está disponível. Para além das entrevistas a Miguel Pires da Silva (Presidente da JP) e à nossa Raquel Paradella Lopes (Presidente da Concelhia de Lisboa da JP), podem encontrar também um artigo do Michael Seufert onde revela o seu percurso na JP, bem como vários artigos de opinião, entre os quais um da minha autoria intitulado "Do anti-social Estado Social à necessidade de cumprir Portugal". Podem aceder aqui ao Lado Direito.

publicado às 01:00






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