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Numa França encardida com nódoas indeléveis de colaboracionismo discute-se a Chefia do Estado.
Marine, na minha opinião, já ganhou. E já ganhou porque vai a votos numa 2ª volta com os votos exclusivos dos seus apoiantes/eleitores.
Macron representará uma manta de retalhos de votos que vai dos Gaulistas aos comunistas.
Atrevo-me a fazer uma analogia com as eleições legislativas portuguesas, em que o partido mais votado não governa porque uma geringonça composta por socialistas e partidos não democráticos como o PC ou a extrema-esquerda se junta para impedir que o mais votado cumpra o seu mandato.
Por mim, seja qual for o resultado, Marine Le Pen já ganhou, independentemente de não poder exercer o seu mandato mas representar o maior grupo de votantes.
Como no pós-guerra, os analistas, jornalistas e politólogos irão reverberar sobre as vantagens do miúdo que se apaixonou pela mãe.
Pode ser que percebam desta vez o complexo de Édipo à francesa.
Ontem assistimos a mais um episódio da recorrente novela de mediocridade política. O debate dos candidatos presidenciais Le Pen e Macron confirmou as nossas piores expectativas. O nível foi baixo. Discutiram multas de estacionamento, divergiram sobre o regime de comparticipação de armações para óculos graduados, fizeram acusações pessoais, usaram expressões como mentirosa ou estúpido, mas acima de tudo apagaram da nossa consciência política a profundidade filosófica de Rousseau, Montaigne ou Tocqueville. Citaram De Gaulle, Clemenceau - apenas faltou convocarem Dreyfuss. Enfim, foi um espectáculo que relativizou as minudências da campanha presidencial americana. A Europa já não pode olhar com desdém para a estatura política americana - esteve ao mesmo nível - e estou a ser simpático. Agora venha o diabo e escolha. E não fará grande diferença porque existe um pequeno detalhe que parece escapar aos entusiastas de duelos ideológicos cerrados, de combates apaixonados alicerçados na grande tradição. As eleições de domingo não são de perto nem de longe as mais determinantes para a França e, por arrasto, o resto do mundo. Será em Junho que a porca torce o rabo. Quando houver eleições para a assembleia nacional. Como tanta coisa francesa que os outros têm dificuldade em entender, a sua constituição é de natureza híbrida, combinando elementos do sistema presidencial norte-americano e factores de democracias parlamentares. O presidente francês nomeia o primeiro-ministro, mas este apenas pode ser despedido pela assembleia parlamentar. Enquanto o artigo 50 passa a fazer parte do léxico quotidiano dos britânicos, o artigo 49 dos franceses (que não tem nada a ver) faz parte do seu sistema há muito tempo - o primeiro-ministro francês pode tomar iniciativas legislativas, mas se as mesmas forem chumbadas em sede de assembleia parlamentar, cai o governo. A este processo chamamos de guilhotina. Perguntemos então, porquê tanto alarido em torno das presidenciais francesas? Em boa verdade, há muito em jogo. Em primeiro lugar, formalmente Macron não detém ou não passará a deter maioria parlamentar "líquida" (caso seja ele a ganhar, ou para os mesmos efeitos práticos Le Pen). Ou seja, sem deter um partido com história e presença, terá de negociar a solução com prospectivos colaboradores e mais que prováveis adversários. Quando um presidente não dispõe dessa maioria parlamentar (como decerto será o caso), assistiremos a um processo de "coabitação" que trucida o executivo em partes assimétricas. Tal já aconteceu de 1986 a 1988, de 1993 a 1995, e ainda de 1997 a 2002. No entanto, um presidente pode dissolver a assembleia parlamentar e convocar eleições, mas não me parece que tal seja a intenção de Macron caso venha a ser eleito presidente. Podemos então concluir, independentemente dos resultados de domingo, que os cenários de gestão presidencial, e implicitamente de governo, estarão fortemente inquinados. Os partidos de Macron e Le Pen apenas controlam 3 dos 577 assentos parlamentares e, face a essa condicionante, terão de pedalar muito nas semanas que se seguem para granjear o apoio para a causa maior de governação que a nação francesa exige e a Europa deseja. Vai ser interessante.
Arrisco mais uma vez com palpites sobre o resultado final das eleições presidenciais francesas. O meu track-record recente é deplorável. Enganei-me com o Brexit e estampei-me com Hillary. Ou seja, não ofereço garantias do que quer que seja. No entanto, avanço com alguns cenários conceptuais, com um modelo operativo ideológico questionável. Assumindo a vitória final de Macron devemos levar em conta o seguinte. O Emanuel tem de cantar uma parte da cantiga pop. Afinal foi mais de 20% do eleitorado que escolheu Le Pen nesta primeira ronda, e nessa medida, como em semelhante medida de um choroso socialista Fillon, Macron terá de acomodar vontades e desejos que não os seus. Nesse terreno alegadamente amorfo de centralidades ideológicas, se Macron for de facto o próximo presidente, terá de incluir uma parte da agenda patriótica de Le Pen, outra parte socialista-tributária-penalizadora de Fillon, e agradar ao firmamento financeiro de onde provém, onde fez escola na banca de investimento. O pilar de desmontagem da globalização de que se serve Le Pen não é totalmente descabido. Afinal, foi em nome da eficiência produtiva que a mesma avançou e simultaneamente cavou o fosso largo de justiça económica e social, entre abastados e nem por isso. Nesta panóplia de considerações a ter em conta, Macron formará a sua presidência numa espécie de geringonça atípica, ou, traindo os intentos enunciados, e nesta ante-câmara de derradeira campanha política, assumindo sem pudor o espaço ocupado por Le Pen. Os socorristas Fillon ou Hamon, ao fazerem-se ao piso de Macron, servem duas causas; por um lado procuram derrotar Le Pen, e por outro lado entusiasmam-se com a possibilidade de serem recrutados politicamente. Em todo o caso, devemos levar em conta que as ocorrências francesas determinarão novas ordens. No plano doméstico da nação gaulesa, mas sobretudo ao nível da arqueologia da União Europeia (UE) que ainda vive a ilusão das grandes famílias políticas europeias. Embora se sirvam com saudosismo de grandes chavões de referência e figuras abstractas, a verdade é que muitos terão de mudar de chip rapidamente. Portugal, mas sobretudo os socialistas cá do burgo, em vésperas de comemoração democrática-revolucionária, terão de encontrar figuras de referência no algo decadente quadro socialista pan-europeu - os socialistas franceses não estão disponíveis, não servem para grandes ideários. Não esqueçamos que existem muitos que desejam a eutanásia da UE, o desfalecimento endémico do projecto. Encontramo-nos sem dúvida num momento chave da história da Europa. Mas tardamos em encontrar a porta certa neste labirinto de possibilidades.
A ver vamos quem ganha a corrida. Se o festival europeu da canção populista ou se a melodia da traição de Trump. Falamos de Democracia, naturalmente. Em qualquer um dos casos, os processos decorrem de prerrogativas firmadas em Constituições e materializam-se quer em processos eleitorais ou mecanismos de controlo. Afastemo-nos por alguns instantes da contaminação ideológica e concentremo-nos nas liberdades e garantias. Em França, Le Pen tem o direito inalienável de se propor como solvente do dilema existencial daquele país. Nos Estados Unidos (EUA), Trump, que já se senta na cadeira do poder, é agora obrigado a rever algumas premissas de sustentação. Na grande competição de legitimizações, os lideres efectivos ou prospectivos não se livram dos mecanismos de controlo. Nessa medida, os EUA levam a vantagem. Trump não pode abandonar o dólar americano e iniciar um Americexit. Está preso nessa federação consolidada e responde perante o FBI. Le Pen, por seu turno, pode rasgar sem dó ou piedade o Tratado de Lisboa, o Euro e fazer-se à vida soberana. Nos EUA, a soberania também se exprime na acção da agência federal de investigação que virará o prego caso seja necessário e à luz de evidências de traição que parecem estar a ganhar contornos inegáveis. A União Europeia (UE), com todos os seus salamaleques burocráticos e danças de comissão, pura e simplesmente nada pode fazer. Está de mãos atadas à cadeira da sua própria construção política fantasiosa. Parece-me ser mais um pecado mortal, para além de tantos outros, que a alegada "Constituição" da UE não tenha sequer pensado em mecanismos jurídicos de controlo recíproco. Se houver mão russa nas eleições francesas, os estados-membro da UE ficam a ver navios passar. Até ao momento registámos vontades eleitoriais unilaterais. Foram os britânicos que democraticamente decidiram alargar o canal e cortar o cordão que ligava o Reino Unido ao "continente" e iniciar o Brexit. Mas imaginemos por um instante, integrando no nosso espírito uma extrapolação radical, que a expulsão passa a ser necessidade de auto-preservação da UE. Suponhamos que, volvidos alguns meses, se vem a descobrir a mão invisível de Putin nas eleições em França e que o excelso acervo democrático transparente e idóneo da Europa é posto em causa. O que farão os magníficos Junckers e Dijsselbloems da UE? Será que chamam nomes indigestos aos gauleses? Será que lhes atiram à cara que são uns camemberts malcheirosos e uns míseros flauberistas? E será que ficam a ver Le Pen passar?
Portugal é um país de águas de bacalhau. Mas esse estado de alma acarreta consequências. Determina um anda e desanda, um dois passos avante e três à retaguarda. Assim tem sido e desse modo prosseguirá. Sobe uma força partidária ao poder, e logo desfaz à pancada o realizado pelo anterior. E assim sucessivamente e alternadamente. Por outras palavras, o Portugal político é uma imensa bancada central. E, embora possa parecer uma solução consensual e benigna, a verdade é que penaliza a possibilidade de um choque sistémico. A geringonça, no entanto, trai esse conceito mas não adianta grande coisa ao integrar no mesmo embutido um espectro alargado que se anula, que se descaracteriza. Ao diluirem o valor ideológico e a estância de princípios em nome da manutenção do poder, acabam por plantar no seu seio a toupeira do descalabro. O Partido Socialista ao querer ser tudo, é, ao mesmo tempo, comunista, neo-liberal, progressista e populista - mas cada vez mais menos socialista. O governo assume, sem margem para dúvida, um contrato a termo com o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português, embora não o admita, e ao invés do que dizem no PS, os socialistas terão de levar em conta a Direita, senão numa perspectiva doméstica, ao que tudo indica, no plano europeu. A grande questão que se coloca diz respeito ao seguinte: se Marine Le Pen for chamada ao Eliséu, acabou a União Europeia, não tenham dúvidas. A não ser que governos híbridos queiram replicar as suas condições de governabilidade e negoceiem cedências oportunas. Os alegados comentadores políticos e os sucedâneos de jornalistas tardam em perceber que estamos na presença de uma revolução sistémica, à la Kuhn. O modelo organizacional e político que estruturou o Ocidente nas últimas décadas, caminha, a passos largos, para um fim feio, caótico. Não foi um actor político externo a determinar o curso dos eventos que se encontra em dinâmica crescente. Foram as complicações endémicas do projecto económico e social que falharam. Referem todos a grande paz europeia resultante do carvão e do aço, mas a que preço e com que consequências? Portugal, que não conhece a experiência dos extremos, pode ceder à tentação de negociar geringonças à escala europeia, contribuindo ainda mais para uma cisão irreversível. Quero ver se as políticas da amiga Marine também serão chumbadas na Assembleia da República ou se ela será uma Penpal. Se reprovam Trump, devem admoestar aqui e agora a congénere francesa.
Estou a mudar. E não sou o único. Não deixei de acreditar. Mas as minhas convicções também não se encontram em territórios perfeitamente delineados. Dentro de dias farei anos, e se me confinasse a uma matriz definida estaria arrumado, seria um velho - mais velho do que o mero ano que irei adicionar à minha existência. Durante anos a fio fomos arremessados sem dó nem piedade de um sistema de valores políticos para o seguinte, de uma promessa grandiosa para um juramento ainda maior, e sem pudor, fomos aceitando essa modalidade de fé, essa religião política. Encontramo-nos agora num cruzamento, no confronto entre os medos, as expectativas, as convenções e preconceitos que se sedimentaram no nosso espírito e toldaram as nossas consciências. Somos adeptos de uma modalidade de descrença em particular. Por força da dependência crónica do juízo dos outros reduzimo-nos a unidades de conformidade, de passividade perante uma narrativa agora corroborada por eventos que alguns designarão de surpreendentes. No entanto, não existe nada de excêntrico na eleição de Trump. Os americanos esbanjaram tanto tempo para encarar a sua própria decepção. Não souberam repartir a tarefa de um modo gradual, faseado. Atingiram a velocidade de cruzeiro de uma máquina desgovernada, contrafeita. Pactuaram com os termos de identidade e residência em Washington dos demais actores da mesma epopeia de ascensão e apenas ascensão. Agora que a encomenda chega, o espanto parece ser a expressão facial mais corrente. Mas fomos nós que produzimos o estado da Nação, e seremos nós que iremos escrever os próximos capítulos europeus. Os discursos e a letra dos mesmos darão lugar a algo distinto, com grau de parentesco ou não. Somos simultaneamente responsáveis e testemunhas de um processo irreversível. Mas somos letárgicos, lentos. Sabemos sempre tarde demais como poderia ter sido, como desejaríamos que tivesse sido. A política assente na antecipação é uma natureza morta. Estamos sempre em dívida e estamos quase sempre atrasados. E como deixamos que outros tomem a dianteira, queixamo-nos de um modo injusto. Fomos nós que nos paralisamos em convenções e ideologias consideradas estanques e vitalícias.
Hollande 23% - 32% Costa. Serão almas génias?Já viram isto? Ok. Estou a brincar, mas isto não é caso para gargalhadas (já vamos à Venezuela e aos Magalhães). Por ora tratemos dos gauleses. Já sabemos que irá haver uma tentação clara para justificar a perigosa vitória de Le Pen, nas eleições regionais em França, invocando o clausulado securitário. Os Je suis Charlie e os Bataclans podem até servir para sustentar as "causas próximas", e até no plano cultural, no húmus da mentalidade, nas correntes filosóficas, poderíamos decifrar a profundidade conceptual que define o nacionalismo francês. Mas não vamos chamar o alemão Fichte nem Rousseau, e exigir explicações. Será no relógio contemporâneo que o fenómeno de ascensão da extrema-direita se move. Lembro-me do que disse o pai (octagenário) de um ex-amigo francês: "a selecção nacional de futebol de França está a ficar muito escura". Pois bem, é nesse plano da exclusão do legado histórico (e colonial) que se operam as modalidades de francês de primeira e marselhês de segunda. Hollande também tem a sua quota de responsabilidade. Em nome da justiça socialista cometeu excessos - por exemplo, e muito convenientemente, foi atrás do património alheio, radicalizou-se na sua falsa imodéstia ideológica, e demonstrou que não soube estar ao centro e se balançar no frágil palco da sociedade francesa. O que aconteceu em França nem carece de mais um empurrão de um terrorista islâmico. França está a viver o resultado de um investimento ideológico lançado pela geração Le Pen precedente. Tempos perigosos assolam a Europa, mas outro género de revoluções também denunciam a falência de uma outra Esquerda demagógica, de decepção. A Venezuela é a outra face da mesma aresta ideológica. A divisa do socialismo-extremo hiperinflacionou-se e rebentou a escala do bem comum, profundamente anti-capitalista, e destruidora de liberdades e garantias. O legado de Chávez de nada vale no mercado secundário de inspiração ideológica. Cuba também já está a dar o berro. Resta saber que fonte de inspiração ainda se mantém de pé para visionários locais. António Costa deve pensar nas sucessivas legislaturas e na efectiva possibilidade de estar a preparar o terreno para incursões radicais da Direita em Portugal. A ideologia é uma espécie de boomerang e balão de ar quente em simultâneo. Vai e volta com ainda maior pujança, ou simplesmente cai por terra. As decisões do comité-central do PCP e da coordenadora do BE podem produzir um efeito de ricochete ainda mais violento do que se possa imaginar. Basta não acertarem o passo. E tudo indica, já nesta antecâmara, que Jerónimo de Sousa não quer acertar a sua passada à música de António Costa. O que está acontecer em França é um exemplo-vivo das consternações que afligem a Europa. Não julguem por um instante que isso é lá com eles. Não é disso que se trata. Nem precisamos de ir a Munique e regressar com o troféu das garantias dadas. Lamento muito. É agora.
As medidas de austeridade impostas pela Alemanha aos países da periferia da União Europeia, serviram para exaltar os ânimos e apontar as baterias a Berlim e em particular à figura "odiada" de Merkel, mas devemos prestar atenção ao que se passa em França. É no país do Iluminismo de Rousseau e Montaigne que as distorções ideológicas começam a ganhar uma preocupante configuração. François Hollande, uma espécie de uber-socialista, demonstrou de um modo inequívoco os limites de processos de decisão política com fins punitivos. A tributação persecutória das fortunas dos ricos arrasa não apenas o modelo de mercado livre, mas condiciona as aspirações igualitárias de qualquer projecto socialista. Os efeitos sentidos são tiros saídos pela culatra, penalizando os alvos, mas também quem tem o dedo no gatilho preparado para disparar mais alguns cartuchos correctivos. Concomitantemente, e em dissonânica com interpretações moralistas de devaneios de outras paragens e de outros tempos (refiro-me a Clinton e ao caso Lewinsky), o affaire Hollande serve também para fazer desmoronar um acervo, quebrar tabus. Neste caso, quase que invertendo a ordem de valores e o sentido de Estado, Hollande apresenta-se como a dama ofendida e não o oposto. Esta revolução do foro íntimo, tornada pública nas últimas semanas, serviu também para soltar o animal contido em si. A viragem ideológica de Hollande em favor dos mercados e do liberalismo emite um sinal claro de desespero político, a declaração do "vale tudo", e, nessa medida, a França terá sido libertada para dar expressão a grande parte do seu espectro ideológico. O que se passa com a direita, ou extrema-direita, representa, de um modo claro e preocupante, a necessidade que a França tem em assumir um estatuto maior, o que contrasta com indicadores que revelam falta de saúde económica. Em suma, enquanto as atenções estavam viradas aos afazeres germânicos, a França foi dando expressão a um Europa decalcada de outros tempos, perigosa. O mix entre assuntos de Estado, traições passionais, economias débeis e ideologia, pode resultar num fenómeno muito mais fracturante do que possamos imaginar. Não me refiro ao comportamento excêntrico de uma Hungria ou aos resultados parcelares da direita austríaca; refiro-me a um dos bastiões da democracia comunitária, um dos parceiros que acordou o entendimento com a Alemanha, precisamente para integrar as externalidades de uma Europa devastada pela segunda grande guerra. Neste caso, embora a situação seja por enquanto doméstica, serve de prenúncio de males maiores que podem afligir a Europa. Até ao momento o cavalo de batalha tem estado no campo económico e financeiro, mas quando os argumentos se tornam intensamente ideológicos, a coisa muda de figura, mesmo que as figuras políticas sejam as mesmas de sempre. Esse é o bottomline; não podermos confiar na tabela. Os que pareciam ser socialistas, afinal são outra coisa. Os que são de direita, porventura descairão para as extremas, e os que estão ao centro em coligações, podem, de um modo conveniente, servir-se à vontade desse imenso buffet, dessa extensa mesa de opções políticas e ideológicas.
Há iconoclastias que alguns, pressurosamente, tendem a proscrever, sem sequer se darem ao trabalho de reflectir, com alguma calma, sobre as diversas variantes que as ditas temáticas iconoclastas, desrespeitadoras das convenções reinantes, oferecem amiúde. A ascensão da extrema-direita em alguns países europeus é, a este propósito, um exemplo paradigmático da tolice atrás sugerida. Arruma-se tudo num cantinho higienicamente depurado, ofertando ao grande público um conjunto de análises assépticas, supostamente isentas dos vícios antidemocráticos abundantemente existentes nos agrupamentos políticos etiquetados com o labéu da extrema-direita neofascista. Que fique desde já claro, para que não sobre qualquer desdouro na minha reputação, que não me revejo na globalidade das propostas aventadas pelos movimentos políticos enxertados nesta família política. Todavia, faltaria à verdade se dissesse que, nos movimentos políticos em questão, não há nada de aproveitável. Fixemo-nos no exemplo mais saliente, e, porventura, o mais polémico, constituído pela Front National, liderada por Marine Le Pen. Esqueçamos, também, por momentos, as diatribes "pétainistas" reminiscentes dos tempos de Vichy ou as arcabuzadas políticas anti-imigração, alarvemente preconizadas pelos dirigentes deste partido. Deixando, portanto, tudo isto de lado, detenhamo-nos, com afinco, na abordagem feita pela FN às principais questões da actualidade política europeia. Para quem acredita, como é patentemente o meu caso, que a política europeia padece de múltiplas disfunções, criadas, em grande parte, pelo centralismo excessivo cupulado em Bruxelas, é quase uma redundância sublinhar o acerto das posições políticas defendidas pelo séquito de Le Pen. Desde a inserção no euro até à devolução de certas prerrogativas e competências pertencentes à eurocracia, a assertividade da FN não tem, como muitos estupidamente têm escrito e bradado aos sete ventos, falhado o alvo. E é aqui, no terreno minado da Europa política, que é forçoso dar guarida a vozes alternativas que recordem o básico: que o Estado-Nação, não obstante o planismo globalizador teorizado por certas notabilidades ignorantes, ainda é uma realidade, e que o centralismo autoritário, corporizado numa Bruxelas gorda e autista, é um remédio que só aditará desgraça ao mal já existente. É por isso que as vozes dissonantes são, em determinadas circunstâncias, o único meio à disposição do povoléu para forçar as elites governantes a uma mudança. Não será, com certeza, com uma Le Pen ou um Geert Wilders, que a Europa alterará a senda de inanição a que vem sendo sujeita pelas suas elites dirigentes. Não será, também, com uma direita que recusa dialogar e que vive enfronhada num passado militaresco fascizante, que a Europa florescerá. A solução é de outra ordem, e radica, fundamentalmente, na credibilidade e no reconhecimento de que a história não morreu. É nisto que está a salvação de uma realidade política que não deixou, por obra e graça de meia dúzia de espantalhos merdiaticamente construídos, de existir. Provavelmente, não serão os bandoleiros do extremismo político da direita a resolver o problema, mas será, decerto, com a contribuição dos mesmos que, para o bem e para o mal, a Europa deslanchará da crise.