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No seguimento deste post, permitam-me salientar mais um exemplo de outro erro crasso de Zizek. Afirma o dito filósofo que os nazis eram tradicionalistas, que a sua revolução visava restaurar uma ordem tradicional. Limito-me a citar Leo Strauss, em "German Nihilism", onde, a dada altura, evidencia que no pós I Guerra Mundial existia um confronto entre os jovens alemães niilistas, muitos dos quais viriam a ser Nazis, e os progressistas, que, paradoxalmente, defendiam os ideais da civilização moderna:
"Thus it came to pass that the most ardent upholders of the principle of progress, of an essentially aggressive principle, were compelled to take a defensive stand; and, in the realm of the mind, taking a defensive stand looks like admitting defeat. The ideas of modem civilisation appeared to the young generation to be the old ideas; thus the adherents of the ideal of progress were in the awkward position that they had to resist, in the manner of conservateurs, what in the meantime has been called the wave of the future. They made the impression of being loaded with the heavy burden of a tradition hoary with age and somewhat dusty, whereas the young nihilists, not hampered by any tradition, had complete freedom of movement - and in the wars of the mind no less than in real wars, freedom of action spells victory."
De resto, recomenda-se fortemente, a Zizek e aos que, como ele, pensam que os Nazis eram tradicionalistas, a leitura do artigo na íntegra.
(Assinatura do Pacto Ribbentrop-Molotov)
1 – Medo? Ó João José, não se tenha em tão boa conta que isso faz-lhe mal.
2 – Em "What Is Political Philosophy?”1, publicado em 1957, Leo Straus critica um problema da Teoria Política moderna e das Ciências Sociais em geral, especialmente sentido na altura em que escreveu o artigo, que é o da ilusão da objectividade científica derivada do positivismo, que se caracteriza essencialmente pela ausência de juízos de valor, o que está intrinsecamente ligado não só ao processo de autonomização da disciplina académica da Ciência Política mas também ao espírito dos tempos modernos perpassado pelo nihilismo e relativismo moral e intelectual. Aliás, não admira que uma das mais famosas citações de Karl Popper seja a de que “A principal doença do nosso tempo é um relativismo intelectual e moral, o segundo sendo pelo menos em parte baseado no primeiro.”2 Strauss, e nisto foi acompanhado por Eric Voegelin, reabilitou a Teoria Política normativa, salientando que “A filosofia política será então a tentativa de substituir a opinião acerca da natureza das coisas políticas pelo conhecimento da natureza das coisas políticas. As coisas políticas estão pela sua natureza sujeitas a aprovação e desaprovação, a escolha e rejeição, a elogio e a culpabilização. É da sua essência não serem neutrais mas reclamarem a obediência dos homens, fidelidade, decisão ou julgamento. Não se pode entendê-las como são, como coisas políticas, se não for levada a sério a sua reclamação implícita ou explícita de serem julgadas em termos de bondade ou maldade, justiça ou injustiça, i.e., se não forem medidas por algum padrão de bondade ou justiça. Para julgar solidamente tem de se conhecer os verdadeiros padrões. Se a filosofia política deseja fazer justiça ao seu objecto de estudo, tem de se esforçar por alcançar o conhecimento genuíno destes padrões. A filosofia política é a tentativa de conhecer verdadeiramente tanto a natureza das coisas políticas como a ordem política certa ou boa.”3
Mais à frente, Strauss afirma que “O hábito de olhar para os fenómenos sociais ou humanos sem realizar juízos de valor tem uma influência corrosiva em quaisquer preferências. Quanto mais sérios somos enquanto cientistas sociais, mais completamente desenvolvemos dentro de nós um estado de indiferença a qualquer objectivo, de despropósito e deriva, um estado que pode ser chamado de niilismo. O cientista social não é imune a preferências; a sua actividade é uma luta constante contra as preferências que ele enquanto ser humano e cidadão tem e que ameaçam o seu distanciamento científico. Ele deriva o poder de contrariar estas influências perigosas através da sua dedicação a um e apenas um valor – a verdade.”4 Esta dedicação à verdade é feita a partir essencialmente de opiniões, cuja análise constitui a abordagem científica à política: “As assunções concernentes à natureza das coisas políticas, que estão implícitas em todo o conhecimento das coisas políticas, têm o carácter de opiniões. É só quando estas assunções são feitas tema de análise crítica e coerente que uma abordagem filosófica ou científica à política emerge.”5
Importa ainda salientar que “O pensamento político é, como tal, indiferente à distinção entre opinião e conhecimento; mas a filosofia política é o esforço consciente, coerente e implacável de substituir as opiniões acerca dos fundamentos políticos pelo conhecimento em relação a estes. O conhecimento político pode não ser mais, e pode nem pretender ser mais, que a exposição ou defesa de uma convicção firme ou de um mito revigorante; mas é essencial que a filosofia política seja posta em movimento, e mantida em movimento, pela inquietante consciência da diferença fundamental entre convicção, crença, e conhecimento. Um pensador político que não é um filósofo está principalmente interessado em ou ligado a uma ordem ou política específica; o filósofo político está principalmente interessado em ou ligado à verdade.”6
Isto significa que eu, enquanto aspirante a cientista e/ou filósofo político, não posso, obviamente, negar as deficiências do liberalismo. Aliás, uma das pessoas com quem mais gosto de conversar é debater é o Corcunda, que por aqui tem exposto várias das suas críticas ao liberalismo. Só assumindo socraticamente a própria ignorância e hayekianamente a noção dos limites do conhecimento, posso esperar contribuir de alguma forma para a filosofia política, tendo plena consciência das deficiências do meu próprio pensamento político. Se o não fizer, corro o risco de me tornar dogmático e um mero propagandista. É precisamente isto que acontece aos comunistas, como o João José Cardoso, o Renato Teixeira ou o Tiago Mota Saraiva. Além de assumirem o dogmatismo, não estão minimamente preocupados com a verdade, e por isso manipulam a seu bel-prazer factos históricos e verdades filosóficas e económicas. Ademais, sendo herdeiros do Iluminismo racionalista, do jacobinismo, do marxismo-leninismo, trotskismo ou maoismo, alicerçam-se ainda no relativismo moral e intelectual que a Escola de Frankfurt em larga medida fundamentou, para se fazerem valer perante outras ideologias e políticas. Quando se deparam com alguém, como é o meu caso, que não só não vira a cara a um combate, como cultiva o polemismo, como ainda há pouco tempo o Miguel Castelo-Branco fazia notar, ficam desconcertados. Sendo o meu único dever para com a verdade, não tenho medo de qualquer grupo político ou ideologia, não tenho medo de usar as palavras e fazer juízos de valor, não sou politicamente correcto e não me vergo ao relativismo e niilismo que caracterizam, entre outros, os comunistas.
Isto implica, também, algo que os comunistas não conseguem entender: a crítica não significa intolerância. Aliás, a capacidade de criticarmos é uma das coisas que nos torna distintamente humanos. O facto de eu tolerar comunistas não quer dizer que não os possa criticar, assim como a qualquer outro grupo ou movimento com o qual não esteja em acordo e que entenda por bem criticar. Já o contrário, numa sociedade comunista e, portanto totalitária, não acontece, visto que, seguindo os ensinamentos de Marx, Lenine e Trotski, os camaradas começam por eliminar toda e qualquer oposição. Não existe tolerância, não existe crítica, logo não há forma de o sistema corrigir erros. Já agora, se os camaradas tiverem tempo, talvez lhes seja útil a breve leitura do tratamento do Paradoxo da Tolerância por Karl Popper.7
A negação dos horrores do comunismo, que é prática comum, mostra não só como os comunistas não estão preocupados com a verdade, como a sua falta de autenticidade. É que os seus autores de referência assumiram explicitamente a violência e o terror como factores centrais da revolução e do estado comunista e provavelmente até teriam vergonha dos comunistas actuais que, julgando que nós não lemos os clássicos comunistas ou que nos esquecemos do que os regimes comunistas fizeram e fazem, se disfarçam de pacifistas. É a chamada cobardia e falta de verticalidade a que, como o Nuno Castelo-Branco aludiu, pelo menos alguns comunistas escapam – mas não certamente a esmagadora maioria.
Este dogmatismo é característico não da filosofia política mas da religião, cujos traços se fazem sentir nas ideologias. Aliás, como John Gray8 demonstra, as ideologias não são mais do que meros sucedâneos da religião. Claro que algumas ideologias e teorias são mais dogmáticas que outras, sendo passíveis, ou não, de ser submetidas a teste científico. O marxismo, sendo historicista, “atribui à história um sentido predeterminado que não é susceptível de alteração pelos indivíduos.”9 Ora, segundo Popper, dado que não é possível conhecer o futuro, o marxismo não é uma teoria científica mas meramente uma profecia, não susceptível de ser submetida a teste, já que o teste ocorrerá sempre no presente, não podendo refutar uma teoria que anuncia a sua concretização no futuro.10 É simplesmente uma crença. E como escreveu Michael Polanyi, “Uma crença funciona sempre aos olhos do crente.”11
Para além deste carácter místico e nada sólido do ponto de vista filosófico e científico, o comunismo costuma cair ainda num erro típico, a falácia do straw man, de que o texto do João José é um óptimo exemplo. No mar da sua ignorância ou má-fé e da falta de conhecimentos de filosofia política, surge um chorrilho de presunções erradas sobre a minha pessoa – a presunção coscuvilheira é coisa muito em voga na blogosfera e nas redes sociais, infelizmente – e de ligações erradas – novamente – entre liberalismo e fascismo, às quais não posso obviamente responder, por serem desprovidas de qualquer sentido. Porém, em relação a uma delas, que não tem a ver com a minha pessoa, mas com uma classificação do CDS feita pelo João José, partamos da mera rejeição da dicotomia esquerda-direita, não chegando a ir tão longe quanto a rejeição oakeshottiana dos ismos e, na verdade, o João José até pode ter razão em dizer que o CDS é de extrema-direita (para ele, o PS já é de direita, ou estou enganado?). Eu, por outro lado, como a esmagadora maioria das pessoas, quando ouço falar em extrema-direita vem-me à mente, em Portugal, o PNR. Mas, na realidade, este reflexo automático é fruto do senso comum, que está errado, visto que o nacional-socialismo, ou nazismo, é um movimento de extrema-esquerda, tal como o comunismo. São as duas faces da mesma moeda, e este é um debate que não se pode ter como se não tivesse já sido feito e a tese cabalmente provada à saciedade. Hayek, Popper, Aron, Arendt, Berlin, Jung e Gray são apenas alguns dos nomes cuja leitura fortemente recomendo aos camaradas comunistas.
3 – Podemos continuar este debate até quando quiserem. Não só não me canso, como sendo uma pessoa imbuída do espírito de serviço público, tenho todo o gosto em continuar a servir-vos algum bom senso e conhecimento. Ontem foi Gray, hoje Strauss. A continuarmos assim, pelo menos um filósofo por dia, não sabem o bem que vos fazia.
(Nota: as traduções das citações são da minha responsabilidade)
1 - Leo Strauss, "What is Political Philosophy?", in What is Political Philosophy?, Chicago, The University of Chicago Press, pp. 9-55.
2 - Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, Vol. 2: Hegel and Marx, Londres, Routledge, 2009, p. 419.
3 - Leo Strauss, op. cit., pp. 11-12.
4 - Ibid., p.18
5 - Ibid., p. 16
6 - Ibid., p. 12
7 - Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, Vol. 1: The Spell of Plato, Londres, Routledge, 2009, p. 293.
8 - John Gray, A Morte da Utopia, Lisboa, Guerra e Paz, 2008.
9 - João Carlos Espada, “Karl Popper: A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos”, in João Carlos Espada e João Cardoso Rosas (orgs.), Pensamento Político Contemporâneo: Uma Introdução, Lisboa, Bertrand, 2004, p. 24.
10 - Ibid., pp. 24-25.
11 - Michael Polanyi, Science, Faith and Society, Londres,Oxford University Press, 1946, p. 47.