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Sobre os patuscos liberais lusos

por Samuel de Paiva Pires, em 28.10.18

Se dúvidas tivesse (dissipadas já há muito tempo), o meu post anterior, partilhado por aí por um libertário indígena e comentado por mais uns ditos liberais e libertários portugueses que me presentearam com os mimos que a sua tribo habitualmente reserva para todos aqueles que não alinham na sua ortodoxia simplista e própria de seres intelectualmente grunhos, acaba por servir para comprovar, mais uma vez, que muitos dos putativos liberais cá do burgo só o são quanto à dimensão económica, não hesitando apoiar declarados fascistas e candidatos a ditadores, seguindo na esteira do pior de Friedrich Hayek, Milton Friedman e dos Chicago Boys que formularam as políticas económicas de Pinochet e o apoiaram, justificando-se Hayek com a possibilidade de transição democrática num país cuja economia entretanto prosperasse. Ou seja, validam, mais uma vez, algo que há muitos anos venho escrevendo: não são liberais clássicos. Um liberal clássico, nos dias hoje, como explicam Eric Voegelin e John Gray, é um conservador no sentido anglo-saxónico, um defensor da democracia liberal e dos valores a esta subjacentes, nunca poderá apoiar um aspirante a ditador. Aliás, esta possibilidade arrepiaria Adam Smith, Edmund Burke ou Karl Popper. Claro que, para perceberem do que estou a falar e as suas próprias contradições, os nossos patuscos ditos liberais e libertários precisavam de ler coisas que não se compadecem com a simplicidade panfletária a que estão habituados e que permeia as suas diatribes e concursos de ortodoxia. Aliás, fiquei bem esclarecido a respeito da ignorância e do fanatismo de que sofrem quando, excepcionalmente, acedi a explicar um post meu em que me referia a várias ideias bastante conhecidas de Hayek, Oakeshott, Ortega y Gasset, Bertrand Russell e Popper que o meu interlocutor e os seus compagnons de route na caixa de comentários desconheciam em absoluto, o que, em vez de os tornar mais intelectualmente humildes, apenas reforçou o seu fanatismo em torno do que diziam ser um pensamento próprio (de grunhos, claro). Não há como não continuar a dar razão a Alçada Baptista, para quem "Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas,” e por isto mesmo há que continuar a lutar, na senda de Fernando Pessoa, contra a ignorância, o fanatismo e a tirania.

publicado às 20:28

Santana-Lopes.jpg

 

A saída de cena de Passos Coelho abriu espaço no PSD para um eventual retorno da política ao centro da acção do partido, especialmente se for Santana Lopes o novo líder escolhido pelos sociais-democratas.

 

O anterior Primeiro-Ministro tem uma formação académica em economia e herdou uma situação política de crise em que as questões económicas e financeiras predominavam sobre quaisquer outras. Ademais, a sua ascensão à liderança do PSD e, posteriormente, do Governo, ficou marcada por uma atmosfera intelectual e política de acolhimento de um projecto político liberal que, em boa parte, passou dos blogs e de alguns meios académicos para o PSD. À semelhança de Passos Coelho, muitos dos que o rodearam e apoiaram neste projecto são formados em economia ou engenharia e as suas actividades profissionais passam, em larga medida, pelo ensino e investigação nestas áreas ou pelo meio empresarial.

 

Tal como Passos Coelho, muitos destes liberais acreditam ou acreditavam na narrativa alemã de imposição da austeridade como forma de expiar os pecados cometidos por governos anteriores e pelos próprios portugueses que teriam vivido acima das suas possibilidades e que, por isso, deveriam ser castigados. Escusando-me de abordar neste texto o confronto entre as duas narrativas durante a crise do euro e a errada receita da austeridade excessiva em que os merkelistas, passistas e muitos outros acreditavam, aos leitores interessados nesta temática recomendo a leitura deste artigo de Paul De Grauwe ou deste de Jay Shambaugh, em que fica patente que o caso grego é singular e o seu diagnóstico foi erradamente alargado a outros países.

 

Ao longo dos últimos anos, a receita da austeridade foi perdendo muitos adeptos em várias instituições internacionais e países - mesmo enquanto o Governo de Passos Coelho ainda estava no poder e acreditava em ir além da troika. Ademais, quando chegou ao fim o período e o plano do resgate financeiro a que Portugal foi sujeito, o Governo composto pelo PSD e CDS mostrou não ter qualquer outro plano norteador da sua acção.

 

Após as eleições legislativas de 2015, a solução encontrada por António Costa, a chamada geringonça, provocou uma alteração estrutural no sistema político português e remeteu Passos Coelho para a oposição. Ao longo dos dois últimos anos, a estratégia oposicionista de Passos Coelho passou essencialmente por anunciar, num tom catastrofista, que as políticas de António Costa e Mário Centeno irão levar-nos novamente a uma situação económica e financeira periclitante. Com excepção da dívida pública, os indicadores económicos têm contrariado as previsões de Passos Coelho. É certo que a conjuntura internacional continua a favorecer a nossa economia, embora devamos estar atentos à forma como o próximo governo de Merkel se irá posicionar e relacionar com Macron a respeito da reforma da União Europeia, bem como ao impacto que o Brexit terá no funcionamento futuro das instituições europeias. Mas também é certo que António Costa e Mário Centeno transmitem a imagem de que as finanças públicas estão sob controlo, apesar do aumento da dívida pública, e que as políticas do actual governo têm favorecido o crescimento económico. Claro que vários políticos e comentadores afectos ao PSD procuram reivindicar os bons resultados para o anterior Governo, mas independentemente do que for verdadeiro a este respeito, é o actual Governo que está no poder e, por isso, muito facilmente consegue reclamar para si os louros do recente crescimento económico. Ademais, se com o anterior Governo, de acordo com Luis Montenegro, a vida das pessoas não ficou melhor mas o país ficou muito melhor, com o actual Governo as pessoas sentem melhorias reais nas suas vidas, que se traduzem no aumento dos seus rendimentos. 

 

Ora, como ensinava Maquiavel - e aqui limito-me ao papel de observador, não emitindo qualquer juízo de valor sobre o que se segue - em política é a verdade efectiva das coisas que importa, são as consequências que devem prevalecer na tomada de decisão (ou na terminologia de Max Weber, a ética da responsabilidade deve preponderar sobre a ética da convicção), e são os resultados reais que importam aos cidadãos. Porque, citando O Príncipe, "Nas acções de todos os homens, e mormente dos príncipes, em que não há um tribunal para onde reclamar, olha-se é ao resultado. Faça, pois, um príncipe por vencer e por manter o estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos serão louvados, porque o vulgo prende-se é com o que parece e com o desenlace das coisas." Daí que Maquiavel, segundo José Adelino Maltez, seja “acima de tudo, o teórico do «homem de sucesso», do vencedor efectivo e não daquele que apenas tem vitórias ditas morais.” Nesta perspectiva, é fácil perceber quem é o homem de sucesso na contenda entre António Costa e Passos Coelho.

 

Um dos principais erros em que Passos Coelho e muitos liberais portugueses incorrem é a crença na distinção de uma realidade objectiva e única, que se impõe às ideologias e à política e que, alegadamente, eles conseguem discernir. Não explorando sequer os complexos problemas filosóficos da realidade e da verdade, creio ser útil complementar os ensinamentos de Maquiavel com a distinção de Harold e Margaret Sprout, no domínio das relações internacionais e da análise de política externa, entre o psychological milieu (ou meio psicológico) e o operational milieu (ou meio operacional) dos decisores políticos. O primeiro é o meio conforme é percepcionado pelo decisor, influenciado pelas suas crenças e vieses cognitivos, sendo o meio mais importante na formulação de decisões, ao passo que o segundo é o meio conforme este realmente é, no qual as decisões são executadas. A existência de incongruências entre os dois meios pode levar a más decisões e péssimos resultados. Parece-me que a incongruência entre o meio percepcionado por Passos Coelho e o meio operacional explica o fracasso da estratégia oposicionista insistentemente praticada.

 

Centrando-se esta estratégia meramente nas questões económicas, Passos Coelho e os seus apoiantes acabaram por se ver reduzidos à crítica ao crescimento da dívida pública e tornaram-se incapazes de gizar uma estratégia de oposição que permitisse combater o Governo de António Costa em várias frentes e eixos de acção política. Esta incapacidade parece-me resultar dos seus parcos ou nulos conhecimentos e interesses relativamente a outras áreas do conhecimento além da economia. Na realidade, a maioria dos liberais portugueses pouco ou nada tem a dizer de interessante, com autoridade e além dos seus dogmas ideológicos e da doxa plasmada em artigos de jornal e conversas de café,  sobre o exercício do poder político (querem um Estado mínimo ou, alguns, mais extremistas, a dissolução do Estado) e sobre temas como, a título exemplificativo, a representação política e a reforma do sistema eleitoral, a administração da justiça, o mundo do trabalho e as relações laborais (acreditam que os empresários são vítimas dos trabalhadores e do Estado), as políticas sociais (são para substituir pela caridade), a educação ou a saúde (só deveriam ser prestadas por privados), ou a política externa portuguesa que tem de enfrentar os desafios colocados pela reforma de uma União Europeia confrontada com o Brexit.

 

Por tudo isto, estou em crer que o projecto liberal que teve na liderança de Passos Coelho o seu pináculo em termos de exercício do poder político continuará em declínio e que, se Santana Lopes ascender à liderança do PSD, a oposição deste partido ao Governo de António Costa será decisivamente norteada por critérios políticos e a sua acção política global marcada pela formulação de um projecto político alternativo para o país - algo que Passos Coelho manifestamente não tem.

 

(também publicado aqui.)

publicado às 21:33

Da má reputação do liberalismo clássico

por Samuel de Paiva Pires, em 15.03.15

Ao redigir o enquadramento teórico da minha tese de doutoramento, em particular a secção sobre o liberalismo, corrente filosófica que constitui, segundo John Gray, uma única tradição com diversos ramos que resultam de variações e redefinições das relações entre as suas principais características (a saber, o individualismo, o igualitarismo, o universalismo e o melhorismo), e tendo ainda em consideração, de acordo com o mesmo autor, que se trata de uma tradição que possui diferentes fontes históricas, sendo tributária, por exemplo, do estoicismo e do cristianismo, procurando validação ou justificação em filosofias muito diferentes, como as teorias jusnaturalistas ou utilitaristas e revestindo-se de diferentes características consoante as diversas culturas nacionais em que pode ser encontrado, não deixo de sorrir ao recordar aqueles que tantas vezes escrevem que “para o liberalismo é X” ou “para o liberalismo é Y”, quando na verdade falam apenas e só de uma determinada variante do liberalismo, pretendendo confundir o público em geral ao fazer passar por liberalismo clássico aquilo que muitas vezes não só não é defendido pelo liberalismo clássico, como é negado ou refutado por este. Não admira que por aí se leiam ou oiçam disparates como o de que Hayek defende a dissolução do Estado. Se a política deve a sua má reputação aos homens, o liberalismo clássico talvez deva a sua aos libertários contemporâneos. O problema, para muitos destes, talvez esteja, na verdade, no facto de um liberal clássico ser, contemporaneamente, como Eric Voegelin evidencia, um conservador. As coisas são o que são, como diria alguém.

publicado às 19:38

Tragam as pipocas

por Samuel de Paiva Pires, em 22.12.14

Carlos Abreu Amorim afirma que já não é liberal, as reacções entre alguns liberais e até pessoas de outros quadrantes político-ideológicos não se fizeram esperar, mas talvez o melhor mesmo seja ler este texto de Rui A. de onde se pode retirar uma ilação que não fica necessariamente patente no mesmo, mas que há já algum tempo venho afirmando: público e privado, Estado e mercado, são duas faces de uma mesma moeda, pelo que nem tudo o que é público é bom ou mau, tal como nem tudo o que é privado. Como diria Montaigne, bem e mal coexistem nas nossas vidas. O mundo - e a condição humana - é um bocadinho mais complicado e menos ingénuo do que o preto e branco e tudo ou nada que muitas almas ditas liberais tendem a ver. Por outras palavras, menos Rothbard e mais Hayek só faria bem a muita gente. 

publicado às 10:44

Subscrevo na íntegra

por Samuel de Paiva Pires, em 08.07.14

Pacheco Pereira:


"A ideologia confusa e híbrida que caracteriza os actuais dirigentes do PSD tem sido descrita como "liberal" ou "neoliberal". Tenho-me sempre manifestado contra esta classificação que dá demasiada dignidade ideológica a uma mescla de ideias e posições que nada têm de liberal. Se quisermos fazer a distinção sem sentido entre "liberalismo económico" e liberalismo político, rapidamente compreenderíamos que o "liberalismo económico", a que correntemente se chama "neoliberalismo", não é liberalismo. O liberalismo, com o seu amor pela liberdade, a sua valorização do indivíduo, a percepção da relação entre a propriedade e a liberdade, a pulsão pela privacidade e pelo direito de cada um definir os objectivos da sua vida, tem muito pouco a ver com a redução do homem ao "homo economicus", a ditadura estatal do fisco, a burocratização de toda a actividade social para aumentar o controlo do Estado, o desrespeito pelo primado da lei, o encosto aos mais fortes e culpabilização dos mais fracos."

publicado às 14:20

Uma direita ignorante

por Samuel de Paiva Pires, em 18.06.14

Uma direita dita liberal que teima em insistir que o liberalismo rejeita a tradição, sem conceptualizar a noção de tradição a que se refere - ficando implícito que é todo e qualquer tipo de tradição -, não é uma direita liberal. É uma direita dita liberal que não leu um dos seus autores supostamente predilectos, Friedrich Hayek, e, portanto, desconhece que a noção de tradição subjaz ao próprio mercado livre e está intrinsecamente ligada ao conceito de ordem espontânea. Se, efectivamente, o liberalismo rejeitasse toda e qualquer tradição, dado que o liberalismo é, ele próprio, uma tradição, que contém em si várias tradições, então o liberalismo rejeitar-se-ia a si próprio - em face disto, conservadores e esquerdistas só se podem rir de certos patuscos liberais. Em suma, estamos em presença de uma direita ignorante.

publicado às 10:36

Ainda que esteja assoberbado de trabalho, tenho sempre tempo para fazer notar que um bronco idiota é sempre um bronco idiota. Embora, de facto, não se possa esperar nada de um iliterato que mal sabe pensar e escreve com os pés. Como pedir que volte para a caverna de onde nunca deveria ter saído talvez seja pedir muito, então que ao menos continue a divertir-nos com a sua estupidez. 

publicado às 22:01

Porca miséria

por Samuel de Paiva Pires, em 17.06.14

Esta reportagem do Público tem provocado umas quantas reacções por aí. É um exercício que quase roça o caricatural e não deve ser confundido com o exercício sério de António Araújo. Mas quando leio a um dito liberal, em reacção à peça do Público, que "Um liberal, por tradição, deve rejeitar a tradição como argumento para o debate político, ou pelo menos relegar-lhe a importância que este merece: um estabilizador. A tradição não é necessariamente melhor ou pior. O seu único mérito foi sobreviver ao tempo, coisa que uma rocha também faz com especial primazia", percebo cada vez mais claramente a miséria intelectual que assola muitos dos liberais indígenas. Não se trata de mera opinião, mas de um erro clamoroso. Que se torna ainda mais grave quando, mais à frente, o mesmo autor refere que "Embora um liberal não partilhe do imaginário utilitarista de Stuart Mill ou não se identifique com Burke (...)."

 

Evidentemente, convinha averiguar o que liberais como Friedrich Hayek, Karl Popper, Edward Shils e Michael Polanyi pensavam sobre o conceito de tradição. Podem começar por aqui, ou por aqui, ou por aqui (o ensaio "Towards a Rational Theory of Tradition") ou ainda por aqui. E a respeito da não identificação do liberalismo com Burke, investigue-se o que pensava dele Adam Smith ou Hayek e as semelhanças entre este último e o parlamentar irlandês

 

Ademais, este recorrente exercício de "para um liberal é assim" e "para um liberal não pode ser assado", além de muito pouco liberal, já enjoa, e bastaria uma breve leitura de uma pequena obra de João Ricardo Catarino, O Liberalismo em Questão, para ficarem maravilhados com a pluralidade que caracteriza o liberalismo. Ou, para os que preferem estrangeiros, aquele também pequeno livro - é melhor recomendar obras pequenas e concisas - de John Gray, Liberalism. É que não há um liberalismo, mas vários. Conforme escreve José Adelino Maltez no tomo II da sua tese de doutoramento, Ensaio Sobre o Problema do Estado: 

 

"O liberalismo clássico desdobra-se em duas fundamentais vertentes: a do contrato social e a do conservadorismo evolucionista. O primeiro é radicalmente fundacionista, tende a ser utilitarista e cai na tentação da utopia; o segundo é consensualmente realista e marcadamente idealista. Ambos são normativistas e eticizantes, cada qual à sua maneira.

 

O problema talvez esteja no facto de haver um liberalismo que não sabe, nem quer saber, da economia, como o romantismo de Rousseau que, segundo Proudhon, «refere-se exclusivamente a direitos políticos: não reconhece os direitos económicos», ao passo que outros liberalismos, apenas pensam a economia, desdenhando da política."

 

Infelizmente, muitos liberais formados em economia continuam a protagonizar um certo analfabetismo intelectual. Os mesmos que, muitas vezes, clamam contra a ignorância sobre conceitos económicos básicos, pretendendo que quem não seja formado nessa magna ciência não emita opiniões sobre o funcionamento da economia. Também infelizmente, não aplicam um critério idêntico a eles próprios, pois que evitariam incorrer em disparates, acaso se coibissem de emitir opiniões sobre filosofia política, ciência política ou direito.

publicado às 12:54

Coincidências

por Samuel de Paiva Pires, em 13.04.14

Muitos dos que defendem a diminuição e/ou eliminação do salário mínimo porque, apesar de beneficiar determinados indivíduos, prejudica outros e, portanto, consubstancia os efeitos que não se vêem a que, por exemplo, Henry Hazlitt, inspirando-se em Bastiat, alude, são os mesmos que defenderam o colossal aumento de impostos que este governo levou a cabo, escudando-se o mais das vezes no falacioso argumento da "selecção natural" entre as empresas - falacioso neste caso, porque não foi a saudável competição entre empresas que ditou o fecho de umas e a sobrevivência de outras, mas sim o sufoco fiscal, extremamente penalizador para as PME's, que compõem a esmagadora maioria do tecido empresarial português -, esquecendo ou ignorando deliberadamente os efeitos mais que visíveis de tamanho aumento de impostos, nomeadamente a falência de milhares de empresas e o consequente aumento da taxa de desemprego. Deve ser isto que se entende por estrita racionalidade económica, como se não fossem princípios ideológicos e escolhas políticas a subjazer às suas posições. 

publicado às 13:04

Da série "marasmos mentais que dispenso"

por Samuel de Paiva Pires, em 09.04.14

Se olharmos para este mapa ou para este outro, ficamos a saber que em boa parte dos países onde o liberalismo, nas suas vertentes económica e política, foi ou é mais difundido e praticado, existe um salário mínimo nacional. Aprendemos também que nestes, em comparação com os restantes países do mundo onde encontramos igualmente tamanha afronta à racionalidade económica, o salário mínimo atinge os patamares mais elevados em termos de valor monetário. Importa também sublinhar que em vários países onde não existe um salário mínimo universal estabelecido por lei, como por exemplo a Islândia, Alemanha (situação que irá mudar em breve), Itália, Dinamarca, Áustria, Suécia, Finlândia, há lugar, porém, ao seu estabelecimento por via de negociações colectivas sectoriais, pelo que, na prática, também estes adoptaram, ainda que de forma parcial, a instituição do salário mínimo.

 

Por outro lado, temos entre os restantes países onde não existe, de todo, salário mínimo, alguns bastante simpáticos e altamente desenvolvidos: Guiné-Conacri, Quirguistão, Burundi, Coreia do Norte, Suriname, Djibouti e aquele que deveria ser o paraíso dos anarquistas, a Somália. Nestes não deverá existir desemprego, se a teoria económica estiver certa, isto é, se for verdadeira a hipótese simplista aventada por muitos liberais de que a inexistência de salário mínimo elimina ou reduz a um nível residual a taxa de desemprego. Consultem esta página ou o Google, pesquisem pelos nomes destes países e unemployment rate e retirem as vossas conclusões.

 

A estes acrescente-se outros que economicamente só se salvam por razões evidentes, nomeadamente os imensos recursos naturais cuja exploração constitui a maioria do PIB: os Emirados Árabes Unidos, Barein, Quatar, Brunei, Malásia. Países com economias pujantes mas regimes políticos onde não sei se muitos dos proponentes da ideia de acabar com o salário mínimo gostariam de viver. Repitam, por favor e se tiverem disponibilidade, o mesmo exercício a respeito da taxa de desemprego. Salva-se verdadeiramente apenas um outro, que é na verdade uma cidade-estado, Singapura.

 

De resto, não vale sequer a pena tecer considerações de teor político ou social a respeito do salário mínimo. O que nos vale são certos liberais indígenas que vêem o mundo apenas pelo prisma da - dizem eles - racionalidade económica e nos fazem o favor de iluminar o caminho para o progresso que o país tem de percorrer. Curiosamente, ou não, entre estes, muitos defendem o desmantelamente do Estado Social, a "caridadezinha", as investidas de Jonet contra os mais fracos, e santificam o mercado e o sector privado enquanto demonizam o público. Para mal dos nossos pecados, alguns até têm - ou, muito provavelmente, virão a ter - responsabilidades políticas e/ou públicas. Só não têm vergonha na cara.

publicado às 19:50

Pavloviano

por Samuel de Paiva Pires, em 22.03.14

Sempre que cito Pacheco Pereira logo reagem alguns grandes pensadores da ciência económica e outros que tais ditos liberais. Não é a primeira vez e não será, provavelmente, a última. Estão de tal forma treinados que, cedendo à sofreguidão, não só não conseguem deixar de escrever com os pés, como também continuam a revelar-se mestres no chamado pensar baixinho. Da minha parte, não subscrevendo o pensamento único que muitos querem impor procurando gritar mais alto e puxando de galões, prometo continuar a citar Pacheco Pereira onde e quando me aprouver. Sempre preferi pessoas inteligentes e livres a dogmas - religiosos ou seculares - como o liberalismo de pacotilha que vai infectando este cantinho à beira-mar plantado. Roubando descaradamente as palavras da Maria João Marques, são socialistas ao contrário. Bem vistas as coisas, estão bem uns para os outros. 

publicado às 17:30

Para a minha empregada um diamante é uma mera pedra

por Samuel de Paiva Pires, em 07.02.14

Certos ditos liberais prestam-se ao ridículo. Depois admiram-se que os apodem de ignorantes ou culturalmente analfabrutos.

Luís M. Jorge:

 

«O autor deste boneco é o tal Mi-ró. Ele disse que tinha demorado a vida inteira para pintar como uma criança…. Se tivesse falado antes com os meus filhos demorava… cinco minutos hihihihihi!!! A Carlota ainda ontem me pintou três Mirós na parede quando chegou das Doroteias… lol. Agora vou vendê-los à quermesse por quinze milhões d’euros e arrasar nos saldos no El Corte Inglés e comprar outro livro do papa Francisco para dar à minha sogra e ajudar os pobres. Deus no céu e eu na terra, qu’chiiiique!!!…»

publicado às 18:15

Parece que há quem não só nunca tenha lido Hayek como desconheça as contradições deste e o veja como um Papa infalível, pareça não ter lido grande coisa para além de meia dúzia de economistas e pseudo-filósofos e, pior, seja tolhido pelo dogmatismo e fanatismo redutores que fazem com que se classifique como socialismo qualquer tipo de políticas sociais, a safety net a que o próprio Hayek se refere e da qual usufruiu. O Estado Social é uma criação anti-socialista, originada por quem realisticamente percebia o que é o rastilho das revoluções e quem é que tende a ser tolhido pelo comunismo, mas para perceber isto é preciso realmente ler um bocadinho mais que meia dúzia de coisas. Talvez um dia certos liberais, especialmente os desprovidos de subtileza e intelecto para compreender o poder, percebam como é ideológica e politicamente suicida este tipo de dogmatismo. 

 

P.S.: Aqui fica o essencial sobre Bismarck.

publicado às 10:20

Da série "Às vezes era bom parar para pensar um bocadinho"

por Samuel de Paiva Pires, em 01.04.13

Gostava que certos indivíduos ditos de direita, especialmente os que se consideram liberais, que por definição devem suportar o constitucionalismo, a separação de poderes, os checks and balances, em primeiro lugar, me explicassem como é que se pode atacar um dos poucos freios constitucionais ao poder executivo por fazer precisamente aquilo para que foi desenhado, ainda para mais justificando os ataques em virtude de nos encontrarmos em estado de excepção (Carl Schmitt fartar-se-ia de rir), e em segundo lugar, elaborassem sobre a distinção entre direito e política que implicitamente assumem quando criticam o Tribunal Constitucional por fazer política, como se este pudesse ser uma espécie de elemento completamente neutro ou até apolítico do regime político.

publicado às 22:00

O maior inimigo do liberalismo são os supostos liberais

por Samuel de Paiva Pires, em 02.03.13

Os meus conhecidos e amigos liberais muito preocupados com o número de pessoas presente na manifestação parecem ter metido o individualismo metodológico e o individualismo político na gaveta. Simultaneamente, parecem também ter-se esquecido das naturais desconfianças da força dos números. Procuram dar ou retirar importância à manifestação consoante a quantidade, quando estamos em face de uma manifestação que tem a força da razão, e portanto importa mais a qualidade. O mesmo é dizer que a manifestação até poderia ter tido apenas uma pessoa, que esta não deixaria de ter razão em manifestar-se contra um governo incompetente, medíocre, mentiroso e teimoso, que nos está a empobrecer, a ter cada vez mais capacidade de intrusão nas nossas vidas e que se encontra completamente desprovido de autoridade moral e legitimidade. De resto, continuo a registar a inveja que certa direitalhada tem da capacidade de organização da esquerda. Como escrevi hoje, a hegemonia cultural e política desta é não só mérito seu, como demérito da direitalhada. Assim vão longe, meus caros, não tenham dúvidas.

publicado às 23:29

Vistas curtas

por Samuel de Paiva Pires, em 02.03.13

Há um argumento que vejo utilizado recorrentemente que me causa um certo espanto. Afirmam alguns que mandar a troika lixar-se seria condenar todo o país a uma desgraça, pretendendo passar a mensagem que só isso serviria para desqualificar qualquer tipo de manifestação, pelo que teremos de aceitar o que o governo tem feito. Desculpa-se a mediocridade e a incompetência deste governo, como se isto não pudesse ser de outra forma, mesmo sob uma intervenção externa.

 

Até quem organiza esta manifestação, tal como as anteriores onde o slogan foi utilizado, sabe perfeitamente que este é demagógico e que não podemos simplesmente mandar lixar a troika. Mas não deixa de saber interpretar e canalizar um descontentamento generalizado que o sistema político se esforça por ignorar.

 

Muitos dos que criticam o slogan aproveitam também para gozar com os manifestantes, a esmagadora maioria pessoas desempregadas e/ou que se vêem financeiramente asfixiadas por uma enorme carga fiscal. O mais das vezes fazem-no porque a maioria das pessoas nas manifestações são de esquerda, e quem as organiza é também de esquerda. Têm, os tais críticos, uma visão redutora, dicotómica, das coisas. Opõem-se aos manifestantes por discordâncias ideológicas, não percebem que existe um solo comum de revolta quando o descontentamento faz-se sentir de uma forma generalizada e não respeita fronteiras ideológicas e classes sociais e profissionais. 

 

Ademais, para evitar um mal maior – a desgraça que aconteceria se mandássemos a troika embora – acabam a aceitar, e muitas vezes a defender, o mal menor, isto é, um governo que desde o início desrespeitou completamente a proporção entre o corte de despesas (2/3) e o aumento de receitas (1/3) preconizada no memorando de entendimento com a troika, que continua a alimentar uma gigantesca rede de interesses clientelares e a expropriar todos os portugueses do seu direito de propriedade sobre os frutos do seu trabalho para lá de um limite razoável e aceitável para que possa, por exemplo, financiar bancos falidos e instituições e empresas por onde circulam os amigalhaços.

 

Em resumo, perante aqueles que não deixam de tentar lutar contra quem, com requintes de sadismo e autismo, já para não falar na sofrível retórica amadora, nos vai condenando a um empobrecimento estrutural de proporções injustas, acabam a desculpar, a aceitar e, muitas vezes, a defender um governo incompetente que, como escreveu Alberto Gonçalves, tem "aura liberal, hábitos socialistas e processos napolitanos."

 

Estou a falar, como é óbvio, da direitalhada e de muitos liberais. São estes os principais responsáveis pela hegemonia da esquerda no debate público - não é tanto mérito desta como demérito daqueles. Não passamos disto, infelizmente. 

publicado às 16:40

Andamos todos enganados

por Samuel de Paiva Pires, em 30.11.12

Os liberais apontam o dedo aos socialistas, estes apontam o dedo aos primeiros, e os constitucionalistas (os verdadeiros e os putativos) gritam "isso é inconstitucional" a toda a hora quando se formos a ver bem, há muitas coisas que se fizeram nas últimas décadas que são inconstitucionais. O Dragão resume bem esta loucura, num texto que já li umas quantas vezes e que aqui deixo na íntegra:

 

«Há marasmos mentais que eu, de todo, dispenso. Certas palhas de rebanho, em espécie de psico-ração de comveniência, essas, então, repugnam-se. Por exemplo, aquela muito fresca e repetida: a saber, que foi o socialismo que nos trouxe até aqui, a esta bela bancarrota nova e reluzente. Suponho que se referem ao "socialismo prático", do estilo União Soviética,  (e não ao socialismo angélico que, como todos sabemos, paira, sublime e diáfono, incólume a chacinas e genocídios, à espera da encarnação perfeita num qualquer amanhã chilreante). Este socialismo angélico, de resto (e não esqueçam o que eu ia dizer), é irmão gémeo daquele liberalismo inefável que também flana e flui, em subtil destilaria celestial, aguardando o dia da perfeita e não menos chilreante aurora. Para os seus adeptos e catecúmenos, o liberalismo puro nunca existiu na prática ( e por isso ele é eternamente puro): o que tem pululado e tripudiado pelo mundo é perversões, natural e fatalmente socialistas, daquela imaculada e pulcra essência. Certos espíritos menos benevolentes até já se interrogam se não derivará tudo duma má relação de ambos com a realidade: enquanto o liberalismo não vislumbra quaisquer orifícios nesta, o socialismo  aproveita e viola-a de todas as maneiras possíveis e imaginárias.  Voltando agora onde eu ía, terá sido mesmo através duma dessas maneiras, nitidamente imaginária, que acordámos, um belo dia, nesta esplêndida bancarrota. 
Ora, foi público e notório que o país, nos últimos decénios, se entregou a desregramentos mais que típicos dos antigos paíse socialistas, como, por exemplo (e só para citar os mais emblemáticos): orgias gerais de crédito bancário; consumo desenfreado de gadjets, bugigangas e artigos de luxo; importação desaustinada de tudo e mais alguma coisa; abolição eufórica de fronteiras;  cornucópia de televisões, revistas e jornais em torrencial dilúvio de toda a casta de incitamentos publicitários à ganãncia e luxúria épicas e salvíficas; liberdade de expressão em barda; subsídio generoso a toda a espécie de minoria da moda internacional,; imigração selvagem; destruição metódica e excternamente patrocinada de todo o aparelho produtivo; desindustrialização ufana; multipartidarismo infestante; parlamentarismo incontinente; turismo obsessivo;, agrofobia histérica; financeirização transcendental; etc, etc. Em suma e síntese: como podemos constatar, a exacta réplica de todos os vícios e taras soviéticas (ou de quaisquer dos seus satélites de leste), não é? Ou mesmo de Cuba, da Albânia, da Coreia do Norte, da China Maoista, senão mesmo do Camboja de Phol Pot!... Ressalta à vista e entra pelos olhos a dentro. Especialmente, untado a vaselina, pelo mais cego de todos!... Porque, repito e trepito, como todos estamos cansados de saber, à data do colapso do paraíso terreal socialista, toda aquela gente, um pouco à semelhança do Império Romano lá das antiguidades, chafurdava em toda a variedade de orgias, sobretudo consumistas, opinorreicas e plutofaccientes. Até metia nojo!
Bonito; e segundo os entendidos, qual o principal factor para esta nossa queda ininterrupta no pecado socialista em larga escala?  É que temos uma constituição socialista, proclamam eles, esgazeados e com a coifa ao desalinho; assedia-nos um tabu legal e atávico  que nos inibe de abraçarmos os redentores hábitos capitalistas e nos constrange, tirânico, ao caminho da perdição. De guarda a este hediondo santuário do mal, patrulham demónios e ogres retintamente socialistas, desde o patriarca Soares até ao último guincho Sócrates, ou seja, desde o proto-socialismo até ao metro-socialismo. O mesmo Soares que, nas suas próprias palavras, guardou o "socialismo na gaveta" e tirou a democracia liberal e palramentarista do armário, onde ela estava escondida desde o 25 de Abril, cheia de medo dos comunistas e à espera que a descolonização passasse; e o mesmo Sócrates cujo paradigma inspirador era um marxista-leninista empedernido chamado Tony Blair, imagine-se. Conseguem imaginar? E já agora, imaginem também a mesma choldra mascarada de povo, entre eleiçados e eleiçores (representação, babam eles), que se entregou a todos os desregramentos, que converteu todas as leis e códigos legais numa nova espécie de papel higiénico regimental, que se marimbou para quaisquer regras milenares do civismo, vá lá, só mais um pequenino esforço, e tentem imaginar toda essa ciganagem cheia de inibições com a Constituição. A cultivar traumas e stresses...fobias angustiantes... O Código Penal não os inibe; as próprias leis da natureza não os inibem, o Diário da República funciona por conta, balcão, recreio e encomenda. Mas a Constituição inibe-os, coitadinhos. Revista e descafeinada, podada e recauchutada, ainda os inibe. Demove-os. Causa-lhes aquela disfunção eréctil mental em que vivem diante da realidade. Com a inteligenciazinha mirrada, a moral descartável e a coluna vertebral gasosa, assistindo, frustes e gelatinados, às contínuas violentações socialistas. A constituição é que não os deixa, é que os impede, é que os obriga a ficar assim, hirtos, meros portadores dum acessório inútil, triste, pendente.. Todavia, uma gaitita mágica, fadada misteriosamente, intimamente agregada ao futuro da nacinha.  Este só se endireitará quando eles endireitarem aquela. Mas  primeiro, detalhe crucial, condição sine qua qua, há que lhes tirar a Constituição da frente. Porque então, então sim, livres dessa maldicinha, a realidade vai ver e, sobretudo, eles vão conseguir ver e encarar a realidade.Sem complexos. E a economia vai trepar nos gráficos à medida e ao ritmo com que a sapiência protuberante for capaz de lhes trepar na barriga, à conquista do umbigo. E ninguém duvide: no mínimo, será vertiginoso!...
Só que até lá vamos penar. Vamos pagar. Vamos expurgar-nos e penitenciar-nos nesta procissão de flagelantes. Temos que mostrar ao mundo, aos mercados, às feiras, às praças e até aos lugares de hortaliça que estamos arrependidos, compungidos, sinceramente pesarosos de todos este tempo estéril em que nos entregámos, de corpo e alma, ao deboche socialista. Na esperança paciente e godótica do dia radioso e deslumbrante em que a inteligência solene dos nossos formidáveis gestores ganhe vigor vertical e deixe de apontar, murcha  e engelhada, ao olho do cu. Da Europa tanto quanto da tribo.»

publicado às 00:18

Recomendações para manter a higiene mental por estes dias

por Samuel de Paiva Pires, em 20.09.12

Ignorar comentários e posts de quem tem interesse directo na manutenção do estado de coisas governamental actual, nomeadamente o pessoal político, quer do PSD, quer do CDS, especialmente os que dizem ser liberais e até escrevem em blogs ditos liberais, não se coibindo de evidenciar à saciedade que percebem pouco ou nada para além de números - e já nem disto parecem perceber muito bem.

publicado às 20:42

O meu avô e a política

por Samuel de Paiva Pires, em 16.09.12

Nos últimos meses, o meu avô materno, com quem aprendi a tomar atenção à política desde tenra idade, com quem partilho longas horas de conversa sobre tudo e mais alguma coisa, e em cuja biblioteca me fui instruindo até começar a fazer a minha própria, deixou pura e simplesmente de falar comigo sobre política. O meu avô, que andou muito tempo envolvido em política a um nível micro em Lisboa, ainda no tempo do salazarismo, que conheceu Fernando Pessoa ainda em criança por intermédio de um tio amigo de Pessoa e que ficava a ouvir os debates entre eles - que lhe serviram até para brilhar na escola -, que conviveu com muitos artistas do teatro de revista, que levava os cartoons do Stuart Carvalhais, com quem tinha acesos debates, para o DN, na década de 50 do século passado, que pouco tempo antes do 25 de Abril de 1974 mudou-se para Ferreira do Zêzere, onde veio a tornar-se uma das personalidades mais conhecidas da vila, em grande parte pelo seu pensamento político e crítico, plasmado muitas vezes nos recortes e comentários que afixava no portão de casa, lidos e discutidos por muita gente, sendo assim um precursor do que hoje chamamos blogs, e tendo também sido convidado a integrar vários partidos (até o MPT, quando este quase ganhou as eleições para a Câmara Municipal no início dos anos 90), o que sempre recusou, perdeu a chama pela política que tanto me inspirou.   

 

A tristeza de ver o país no estado em que está abateu-se sobre ele de uma maneira que eu julgava impensável. O meu avô trabalhou uma vida inteira (nunca para o estado), até mesmo depois de se reformar e tem uma reforma com a qual eu não conseguiria viver - e eu nem levo uma vida que se possa sequer considerar minimamente luxuosa (não tenho casa própria, não tenho carro e sou cada vez mais frugal nos gastos, que se resumem a roupa, comida, livros, despesas domésticas e actividades de lazer como ir jantar fora, assistir a um concerto ou beber um copo com os amigos).

 

Esta semana contei-lhe que ia fazer algo que até há bem pouco tempo eu julgaria impensável: participar numa manifestação. O meu avô alegrou-se um pouco e disse-me estar satisfeito por eu ter tomado esta decisão. Hoje, depois de chegar a casa, por volta das 20h, não me tendo juntado aos manifestantes que decidiram seguir para S. Bento, liguei-lhe, julgando que ele estaria a acompanhar pela televisão o que estava a acontecer. Mas não estava. Há muito que deixou de ver televisão com frequência, preferindo a companhia dos livros nas longas noites em que quase não dorme. Voltou a dizer-me que está triste com o nosso actual momento colectivo e que cora de vergonha quando pensa nos governantes que temos, tendo-se tornado intolerante a ouvir quase todos os políticos. Tinha-se até esquecido da manifestação. Foi então que decidi provocá-lo. Disse-lhe para ligar a televisão, pois estava a perder uma das maiores manifestações de sempre no país. Disse-lhe o que aqui publiquei quando ainda estava na manifestação. Disse-lhe que quando eu ainda estava a sair da Praça José Fontana, já a frente da manifestação tinha chegado à Praça de Espanha. A voz dele mudou completamente. Estava feliz por ver o país sair estrondosamente do torpor em que se deixou cair. Continuou a seguir a situação. Um pouco mais tarde, foi ele que me ligou, quando estava a assistir aos comentários dos Professores José Adelino Maltez, Viriato Soromenho Marques e Carlos Amaral Dias na RTP1. Ficámos alguns minutos a falar sobre política, meses depois da nossa última conversa sobre política. 

 

Só por isto, para mim já valeu a pena ir à manifestação. Mas não só por isto, hoje sinto vergonha de partilhar o mesmo espaço ideológico e político com alguns dos bloggers d'O Insurgente, do Blasfémias e o Miguel Castelo-Branco, blogs que leio assiduamente como mais nenhuns outros, desde que me lembro de ler blogs. Nos primeiros dois, entre muita ignorância do que está para lá da economia, com especial destaque para o mais recente spin doctor ao serviço do governo, João Miranda, contradições evidentes com posições defendidas num passado recente e os devaneios de wishful thinking de Helena Matos, fica patente uma total incapacidade de perceber o que está a acontecer na sociedade portuguesa. Repetindo o que escrevia vida das pessoas não se faz de números e modelos macroeconómicos. Há um solo comum que é a pátria onde a revolta supera ideologias, partidos e estratos sociais. Ou não faria sentido sermos uma nação e um país. Já quanto ao Miguel, também defensor do passismo, não consigo perceber o que pode levar alguém a dizer que as imagens na televisão mostraram que não estariam presentes mais de 10 mil pessoas - e, já agora, depois de ver alguns comentários do Miguel a respeito de quem vai divertir-se para o Bairro Alto, sempre aproveito para dizer que fui a um jantar de despedida de uma amiga que, tal como eu, emigrará nos próximos dias, embora o jantar não tenha sido em nenhum restaurante do Bairro Alto, até porque na sua maioria não são conhecidos por serem baratos.

 

Aprendi com o meu avô e com o Professor Maltez a casar a honra com a inteligência. Sou daqueles que prefere quebrar a torcer, e, como costuma dizer o Professor Maltez, viver como pensa em vez de pensar como vive. Para mim, os princípios não são sacrificáveis em função da situação política. Ser liberal é muito mais do que aquilo a que muitos ditos liberais reduzem o liberalismo. Ser liberal é, também, preferir estar sozinho, especialmente quando o ambiente que nos rodeia nos asfixia a consciência. E é por tudo isto que o liberalismo tem em muitos ditos liberais os seus principais inimigos. Tomara que esta situação pudesse ser superada. Talvez se começassem mesmo pelos comentários desta noite que também animaram o meu avô.

 

Leitura complementar: Um rebelde é um homem que diz nãoProvavelmente, nunca mais um governo consegue unir o país assim; Os maiores inimigos do liberalismo em Portugal são...Interpretações de quem não sabe do que fala 

publicado às 07:30

Os maiores inimigos do liberalismo em Portugal são...

por Samuel de Paiva Pires, em 15.09.12

... muitos dos liberais.

publicado às 21:24






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