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Na próxima Quinta-feira, 18 de Maio, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa organiza a II Conferência ISCSP de Estudos Políticos, Estratégicos e Internacionais, desta feita subordinada à temática “Guerra e Paz no século XXI. Os desafios e o futuro da Ordem Liberal Internacional”. Além das intervenções de ilustres docentes e investigadores nacionais, contaremos com uma conferência de encerramento proferida pelo Professor G. John Ikenberry intitulada "Does the Liberal International Order have a Future?".
A entrada no evento é gratuita, mas carece de inscrição obrigatória, disponível através deste link.
Acaba de ser publicado o meu mais recente artigo, que pode ser lido na íntegra aqui, cortesia da Society e da Springer. Aqui fica o abstract:
In the last decade, the European Union (EU), a bulwark of the liberal international order, has been subject to a high degree of turmoil resulting from various processes and crises and has witnessed the rise of national populism, of which Brexit was the main exponent. The leadership of the order was also impacted by the changes in the foreign policy of the United States of America (USA) effected by the Trump Administration. The USA, the United Kingdom (UK), and the EU are the leaders of the liberal zone of peace and if national populism structurally affects them the liberal international order could be seriously challenged. Among the various instances of national populism, Brexit remains a significant challenge to the EU and might greatly impact the liberal international order. By adopting an interpretivist methodology anchored in hermeneutics and in the methodological approach of emergent causation, this article seeks to understand how Brexit, as an internal challenge to the order, and the rise of China and other revisionist powers, as an external one, might influence the future of the liberal international order and great power competition. I argue that the news of the order’s death is greatly exaggerated, and that depending on British, German, and US variables, Brexit and the rise of China can either challenge or reinforce the liberal international order. Nevertheless, liberalism has a resilience no other political perspective has due to its innate ability for criticism and adaptation to change. Considering that the current liberal international order is a USA-led order, I argue that these are the two main variables concerning how Brexit might influence the liberal international order and how the order’s leading powers will adapt their strategies and foreign policies towards China and other revisionist powers.
O Expresso perguntou a 12 jovens os seus desejos para 2022. Aqui fica o meu;
Menos estadão, mais liberdade
Quando os políticos nos tentam fazer crer que a mera delegação de competências administrativas nos municípios equivale a um processo de descentralização, concluímos que o Estado-aparelho de poder hierarquista, centralizador e habituado a mandar de cima para baixo continua a subjugar-nos.
Falta cumprir-se, como escreveu Alexandre Herculano, “a administração do país pelo país (...) realização material, palpável, efetiva da liberdade na sua plenitude”.Sob pena de continuarmos enredados num debate em que se confunde deliberadamente descentralização com deslocalização e delegação de competências administrativas, torna-se desejável e necessário um sobressalto cívico que contribua para uma discussão esclarecida e conduza a um verdadeiro processo descentralizador, feito de baixo para cima. É preciso que se criem níveis intermédios de governação que tornem o sistema político mais representativo e participativo, concretizando o princípio da subsidiariedade e aproximando a decisão política das comunidades locais.
A plena liberdade poderá ser realizada pela descentralização política por via da regionalização, implicando necessariamente a reforma do actual sistema eleitoral de uma democracia sem povo, onde este é apenas chamado a ratificar as listas feitas à porta fechada pela partidocracia. Para romper com o excessivo domínio da vida pública pelos partidos, que, como também assinalava Herculano, carecem da centralização para preservar o poder, urge que a sociedade civil seja capaz de se mobilizar e de os pressionar.
O estadão a que chegámos não é nem tem de ser o fim da história.
Parte do PSD e do CDS está mentalmente presa em 2015. O PCP, em 1975. A IL ainda está entre 1944 e 1945, quando Friedrich Hayek publicou O Caminho para a Servidão e Karl Popper deu à estampa A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos. Bastaria avançarem até 1960 para, a respeito do comunismo, encontrarem o mesmo Hayek, em The Constitution of Liberty, 30 anos antes do término da Guerra Fria, a afirmar o seguinte: “If, fifteen years ago, doctrinaire socialism appeared as the main danger to liberty, today it would be tilting at windmills to direct one's argument against it.”
É certo que, a Portugal, muitos acontecimentos e movimentos políticos e ideológicos chegam sempre com algum atraso. Mas já era tempo de os liberais perceberem que a Guerra Fria acabou há 30 anos e que o maior sinal da vitória do liberalismo é aquilo a que Michael Doyle chama “zona de paz liberal” - uma actualização da teoria da paz democrática elaborada a partir de Kant -, uma área composta por cerca de 100 países onde o jogo político se faz num campo estabelecido pelo liberalismo, implementado em vagas sucessivas desde as Revoluções Atlânticas, apoiado e gerido no pós-II Guerra Mundial pelos que anteriormente criticavam o liberalismo (democratas cristãos e social-democratas) e que é a sua maior dádiva à humanidade: o regime político da democracia liberal.
Claro que a insurgência dos liberais portugueses contra a comemoração do 100.º aniversário do PCP se percebe facilmente, não só pelo supramencionado, mas também porque incorrem em dois erros do liberalismo assinalados por conservadores e comunitaristas, segundo William M. Curtis: o ahistoricism e a abstracção racionalista míope, i.e., a formulação racionalista e abstracta de esquemas de direitos e de teorias da justiça desligados das experiências morais e políticas dos indivíduos, que “são condicionadas e enraizadas nas tradições normativas historicamente desenvolvidas da nossa comunidade política”; e as pretensões universalistas, ignorando os particularismos de cada sociedade e pretendendo aplicar um padrão de direitos e uma concepção de justiça a todas as sociedades independentemente das suas particularidades históricas.
Por outras palavras, o PCP não é o Partido Comunista da União Soviética e a História de Portugal também não é a História da União Soviética ou da China maoista. O mesmo não é dizer que o PCP e o comunismo em Portugal, com episódios execráveis, odiosos e trágicos como o PREC e as FP25 são imunes a críticas - muito longe disso. Mas a IL, ao fazer constantemente do PCP e do BE os seus principais adversários, está não só a condenar-se a não ultrapassar a mesma relevância política destes, como a demonstrar que não percebe a importância de, num país com a nossa história de violência política - os brandos costumes não passam de um mito salazarento -, os comunistas respeitarem as regras do jogo demoliberal. Nada de novo, porém, num país onde a indigência intelectual é a imagem de marca do debate político.
Fátima Bonifácio realiza hoje um exercício que tem tanto de intelectualmente desonesto como de revelador. Diz-se uma conservadora liberal burkeana defensora do reformismo gradualista ao mesmo tempo que defende a perturbação da ordem social e política pelo Chega, um partido que, na tipologia de Jaime Nogueira Pinto, em A Direita e as Direitas, anda algures entre a direita revolucionária e a autoritária, esta última uma corrente da direita conservadora. Ainda seguindo JNP, dentro da família conservadora temos uma segunda corrente, a liberal, que é a das Revoluções Atlânticas que nos deram a democracia liberal, a do conservadorismo anglo-saxónico, onde se inclui Burke, e da democracia cristã. Esta corrente é a antítese da direita autoritária, onde pontificam populistas vários. A literatura recente sobre o populismo mostra que o aparecimento deste (seja de esquerda ou de direita) em democracias liberais consolidadas leva invariavelmente à erosão democrática e, no limite, à quebra da ordem demo-liberal que a historiadora defende. A mesma historiadora que não se inibe de aplaudir o Chega pela possibilidade de terraplanar a ordem política vigente. Tamanha confusão e incoerência só é passível de ser compreendida se levarmos em consideração a enésima vez em que alguém da direita protofascista aventa os fantasmas da alegada supremacia da esquerda a que a direita liberal andaria constantemente a tentar agradar. Boa parte da discussão espoletada pelo artigo dos 54 no Público não é intelectualmente séria, porquanto a direita protofascista é informada por percepções e vieses psicológicos que atestam uma tormenta permanente em relação a um papão esquerdista, seja ele do PS, do BE ou do PCP, o que justificaria todos os meios, inclusivamente entendimentos com extremismos à direita, para desalojar a esquerda do poder. É certo que a política não é só racional, tem muito de emoção. Mas assim sendo, ou bem que deixam a teoria política de lado para não incorrerem em contradições várias, ou assumem a filiação na direita revolucionária ou na autoritária para serem intelectualmente coerentes. Foi esta, no fundo, a clareza que defendemos, contra a amálgama patente no artigo de Fátima Bonifácio. De resto, para os que temem o papão, sugiro que, na hora de irem dormir, comecem a deixar uma luz de presença ligada.
É importante, em momentos como o presente, defender a democracia liberal. Integro, por isso, o conjunto de subscritores deste importante texto, difundido pelo Público.
A título estritamente pessoal, acrescento apenas o seguinte:
Tenho-vos visto, lido e ouvido.
Desde há uns tempos a esta parte que recuso participar deste teatro de egos protagonizado pela expressão da parca auto-estima daqueles que se escondem atrás de um avatar como miseráveis bullies. Biltres de cadeirão. Se do debate nasce a luz, do Facebook apenas se vislumbram as trevas, motivo pelo qual também me fascina, admito.
Por aqui, tenho assistido ao crescente acantonamento das posições políticas e ideológicas. Aquilo a que muitos preferem chamar debate ou confronto é, na verdade, um exercício de regurgitamento visceral por quem só quer ver o mundo a arder.
Eu sei muito bem quem vocês são e prefiro ver-vos de perto. É que, ao contrário das vossas tão firmes convicções de que são uma espécie de Übermensch, a vossa flacidez de carácter não me faz sombra, não me assusta. Chego até a sentir alguma pena do estado deplorável a que alguns de vós chegaram.
A vossa fascinação quasi-erótica por líderes facínoras e autocratas não é coisa recente e motiva parte da vossa retórica iliberal contra aquilo que vão apelidando como a “direita fofinha”, “direita cobarde”, “direita moderada”. Eu cá não tenho vergonha nem pejo de chamar as coisas pelos nomes e ajudo a desmistificar, a bem da necessária clareza: aquilo que vocês querem destruir é a democracia porque a solução que vocês preconizam é autoritária. O que vocês querem é, escudados pelos direitos, liberdades e garantias de que são titulares e que devem a pessoas verdadeiramente heróicas que há cerca de 40 anos lutaram pela liberdade e pela democracia em Portugal, instituir um regime autoritário. Fazem-no de forma dissimulada, escamoteando a vossa agenda e intenções. Desenganem-se, meus caros, afinal os cobardes são vocês. Não são a “direita musculada”, vocês não são nada. Não têm ideologia. São débeis. E ainda têm o dislate de apelidar os que defendem a pluralidade, a democracia, de “cobardes”? Ganhem vergonha. A vossa retórica gongórica só vos dá direito a emojis. O 25 de Abril não se fez ao som das teclas.
Muitos de vós experimentaram os partidos à direita, à esquerda e acabaram de birra no canto da sala, porque “afinal não era bem aquilo” e encontram agora conforto na solução que sempre quiseram, o Chega. É curioso observar que vocês seriam as primeiras vitimas do sistema que tanto ensejam. Falta-vos consciência de classe e de condição. Falta-vos também perspectiva. É que eu conheço alguns de vós e sei, meus caros, que se odeiam mutuamente. Não há partido nem movimento que consiga dar resposta aos vossos anseios antagónicos. Vocês, juntos, têm apenas coerência no distanciamento radical de todas as estruturas, sistemas e métodos liberais e democráticos, motivo pelo qual se unem contra estes como meninos de coro com síndrome de Tourette. Não há ninguém que vos diga? Vocês não são especiais, são mesmo muito idiotas.
A democracia é-me cara mas também me lixa o juízo. Foi a democracia que permitiu que Hitler ascendesse ao poder na Alemanha, Bolsonaro no Brasil, Trump nos EUA, etc. Mas eu dependo da (e defendo a) democracia porque só com ela alcanço os meus objectivos. A História ensinou-me importantes lições e, ao contrário de vós, não vejo o mundo quando me olho ao espelho. Sei que devo o que tenho hoje como garantido à coragem dos meus antepassados e, se é certo que no quadro do combate político demoliberal, o lado que eu defendo nem sempre ganha, é igualmente seguro que um dia ganhará. Em democracia, não há uma verdade única e as minorias de hoje são as maiorias de amanhã. Mas o que vocês querem não é isso. O que vocês querem é forçar-nos a sucumbir àquilo que é a vossa mundividência, sempre temperada com doses q.b. de teorias conspiracionistas. JAMAIS.
Mas se o advento e eleição de partidos populistas nos ensinou algo é que, acima de tudo, a democracia é frágil e precisa de ser protegida. Temos problemas gravíssimos e é urgente reconhecer que algumas críticas tecidas por estes partidos estão correctas, mas não as soluções preconizadas. Em vez de deixarmos que a História se repita como tragédia ou farsa, o importante é trabalhar na resposta aos problemas reais e cada vez mais prementes, que em momento algum passará por regimes políticos autocráticos.
É que o conforto de uma cadeira e a capacidade de teclar tudo aquilo que vos passa pela cabeça, não é sinal de coragem, de músculo, é a definição não apenas de alienação mental mas da mais abjecta cobardia. Afinal, a direita cobarde é outra.
Assumam-se, seus protofascistas.
O novo livro do Professor José Adelino Maltez, Portugal pós-liberal, será lançado amanhã na Biblioteca da Academia Militar, em Lisboa, pelas 18:30. A apresentação estará a cargo de João Soares. O livro já pode ser adquirido através da Wook e para mais informações podem consultar a página no Facebook.
Quando, há uns dois meses, escrevi que iríamos assistir a mudanças sistémicas à escala global, não tomei partido quanto à direcção destas, isto é, não formulei nenhum juízo sobre se as mudanças seriam para melhor ou pior. Mais ou menos na mesma altura, começaram a manifestar-se na opinião pública aqueles que, pretendendo avançar as suas agendas ideológicas, logo vaticinaram velhinhos “amanhãs que cantam”. Muitos decretaram pela milésima vez a morte do liberalismo e do capitalismo e anunciaram um mundo novo marcado pela bondade e pela compreensão de que os nossos excessos das últimas décadas teriam necessariamente de dar lugar a um mundo mais harmonioso - uma manifestação da fé iluminista no progresso (seja lá este o que for). Outros, em posição diametralmente oposta, preferiram defender a globalização e a ortodoxia liberal, proclamando alguns deles, também pela milésima vez, o império da economia sobre a política, como se estas fossem mutuamente exclusivas.
Ora, o mais provável é que Richard Haass tenha razão, a crise acabará apenas por acelerar as tendências verificadas nos últimos anos. Os crentes nos diferentes progressismos parecem esquecer-se que a história não progride de forma linear e que há duas características da condição humana aparentemente imutáveis e frequentemente amalgamadas: a luta pelo poder e a estupidez.
Não é por acaso que o poder é o fenómeno central da Ciência Política, assim como na Teoria das Relações Internacionais, especialmente para realistas e neo-realistas, segundo os quais o poder é a moeda da política internacional e esta é sinónimo de power politics. Nem sequer o projecto de integração mais avançado no mundo escapa a isto, como temos vindo a aprender duramente desde 2008. Porém, em Portugal, não faltam defensores da narrativa espelhada na capa de uma revista holandesa, segundo a qual os países do norte da Europa são muito produtivos e frugais ao passo que os países do sul são pouco produtivos, gastadores e pedintes em relação aos do norte. Como já escrevi anteriormente, para estes, que no ano de 2020, tendo já passado pela crise do euro, ainda não conseguiram perceber que a União Económica e Monetária tem falhas estruturais conducentes a um funcionamento perverso que privilegia os países do norte e prejudica os do sul, dificilmente haverá salvação. Os seus vieses cognitivos e ideológicos, para além da ignorância da história do projecto de integração europeia, não lhes permitem vislumbrar e compreender a dimensão política, de luta pelo poder, no cerne do projecto do euro. Para outros, aqueles que acreditam num qualquer modelo de harmonia à escala global que descerá sobre todos nós em resultado da crise actual ou de outra qualquer, também não sei se haverá salvação, mas um estudo minimamente aturado da história da humanidade poderá ajudar a alcançar uma melhor compreensão da condição humana e da centralidade do poder nesta.
Por outro lado, a crise actual permitiu também perceber - se dúvidas houvesse - que a fé iluminista nas capacidades da razão humana é assaz sobrevalorizada. Num mundo hiper-mediático, a estupidez tornou-se particularmente visível. Entre líderes mundiais, lideranças políticas domésticas e burocratas que decidem e implementam medidas abstrusas, opinion makers que se aliviam de disparates e cidadãos que nas redes sociais partilham teorias da conspiração e óbvias fake news, este tem sido um período particularmente prolixo. Haverá muito trabalho para aqueles que se queiram dedicar a documentar as diversas manifestações de estupidez a que temos assistido, como o Nuno Resende aqui fez ontem. Certamente poderão apoiar-se nos trabalhos desenvolvidos por Paul Tabori e Carlo M. Cipolla.
O primeiro engano: a dicotomia entre salvar vidas vs. salvar a economia. Como escreveu há dias Steve Horwitz, os custos económicos são custos humanos e todos os custos humanos têm custos económicos. Qualquer das opções (manter a actividade económica a decorrer normalmente e aumentar o grau de propagação do vírus e os seus efeitos a longo prazo vs. quarentena e distanciamento social com a consequente redução na actividade económica, mas com controlo do vírus e relançamento da actividade económica a curto e médio prazo) tem custos económicos. A política é a arte do possível, pelo que quanto à tomada de decisão sobre políticas públicas, não só a primeira opção é moralmente superior como é também a que, numa análise custo-benefício, provavelmente será menos dispendiosa, segundo dois estudos (este e este) referidos por Cass Sunstein. Como é óbvio, requer um forte pacote estatal de estímulo à economia, que no caso de países detentores de moeda própria é mais fácil e rapidamente implementável, o que me leva ao próximo ponto.
O segundo engano: a ideia de que os países do norte da Europa são muito produtivos e frugais ao passo que os países do sul são pouco produtivos, gastadores e pedintes em relação aos do norte com os “eurobonds” e/ou a impressão de dinheiro pelo BCE. Esta narrativa popular tem feito escola até entre muitos cidadãos de países do sul, sendo visível uma quantidade não-negligenciável dos seus adeptos, muitos deles defensores também da estratégia de salvar a economia em detrimento de vidas humanas aflorada no ponto anterior. Para estes, que no ano de 2020, tendo já passado pela crise do euro, ainda não conseguiram perceber que a União Económica e Monetária tem falhas estruturais conducentes a um funcionamento perverso que privilegia os países do norte e prejudica os do sul, dificilmente haverá salvação. Acresce que o actual choque é simétrico, afecta todos os países, ao contrário do choque assimétrico da crise do euro, típico de uma união monetária com as características que enunciei noutro post. O importante a reter é que percebem tanto de uniões monetárias e política internacional como eu percebo de crochê. Se o país dependesse deles enquanto governantes, morreria boa parte da população e outra grande parte ficaria debilitada, o SNS ficaria arruinado e a retoma económica seria uma miragem à distância de várias décadas.
Na origem destas posições parece-me estar a incapacidade de encarar e lidar com uma problemática que provoca imensas mudanças em tantos sectores das nossas vidas e terá consequências que ainda não conseguimos vislumbrar na sua totalidade e probabilidade, embora não sejam inimagináveis. Muitas empresas irão fechar e muitas deveriam fazê-lo o mais rapidamente possível para não se sobreendividarem e desperdiçarem recursos financeiros e humanos em actividades que não serão viáveis durante bastante tempo (estou a pensar especialmente no sector do turismo), muito provavelmente teremos de nacionalizar empresas de sectores estratégicos (ocorre-me desde logo a TAP), a taxa de desemprego vai disparar, tendo o subsídio de desemprego e as políticas sociais de amparar grande parte da população enquanto esta se reconverte para outros sectores de actividade, não sendo de colocar de lado a possibilidade de implementação de medidas como o Rendimento Básico Incondicional. Quem mais rapidamente se adaptar e transformar em face da mudança, mais depressa conseguirá ultrapassar os efeitos negativos desta.
Já Edmund Burke salientava que “Todos temos de obedecer à grande lei da mudança. É a mais poderosa lei da Natureza, e porventura o meio da sua conservação,” e que “Um estado sem os meios de alguma mudança encontra-se sem os meios da sua conservação”, um eco daqueles ensinamentos de Maquiavel a respeito da capacidade de adaptação do príncipe, de quem afirma ser “preciso que ele tenha um ânimo disposto a virar-se consoante os ventos da fortuna e a variação das coisas lhe mandam.” Como Diogo Pires Aurélio sublinha a propósito da obra do florentino, “O hábito (…) molda uma maneira de agir e, nessa medida, reduz a capacidade de improvisação e adaptação.” E como a política é “por definição uma actividade que se defronta irremediavelmente com a novidade, uma vez que a mudança dos tempos é inevitável: ou se é capaz de os mudar ou há um outro que os muda, ou se triunfa ou se perde.”
Nos tempos relativamente estáveis das últimas décadas, se quiserem, de normalidade, com mudanças relativamente moderadas, a economia tomou precedência sobre a política. Mas não vivemos tempos normais e os quadros mentais da cartilha neo-liberal não servem para estes tempos. E saliento a palavra cartilha, porque os nossos aprendizes de neo-liberais deviam ler mais um dos pais do neo-liberalismo, Friedrich Hayek, de cujo Law, Legislation and Liberty deixo um excerto:
The basic principle of a free society, that the coercive powers of government are restricted to the enforcement of universal rules of just conduct, and cannot be used for the achievement of particular purposes, though essential to the normal working of such a society, may yet have to be temporarily suspended when the long-run preservation of that order is itself threatened. Though normally the individuals need be concerned only with their own concrete aims, and in pursuing them will best serve the common welfare, there may temporarily arise circumstances when the preservation of the overall order becomes the overruling common purpose, and when in consequence the spontaneous order, on a local or national scale, must for a time be converted into an organization. When an external enemy threatens, when rebellion or lawless violence has broken out, or a natural catastrophe requires quick action by whatever means can be secured, powers of compulsory organization, which normally nobody possesses, must be granted to somebody. Like an animal in flight from mortal danger society may in such situations have to suspend temporarily even vital functions on which in the long run its existence depends if it is to escape destruction.
Há 8 anos tive o privilégio de assistir a uma conferência de Sir Roger Scruton, em Lisboa, dedicada essencialmente à temática do Estado-nação como resposta às crises que vamos vivendo e em que o filósofo britânico não deixou de tecer críticas ao processo de integração europeia, um tema recorrente nas suas reflexões e a que dedicou parte de um dos livros que mais o deu a conhecer em Portugal, As Vantagens do Pessimismo. Diria até que se Nigel Farage, Boris Johnson e Dominic Cummings foram os principais artífices do Brexit na praxis política, Scruton terá sido quem mais fez por esta causa no plano das ideias, especialmente atendendo à sua apaixonada defesa de uma certa ideia de Inglaterra que tantas vezes lhe causou dissabores ao longo da sua tumultuosa carreira académica. Da conferência em Lisboa, guardo a memória não só do seu brilhantismo intelectual, mas da sua simpatia e genuíno gosto pelo debate de ideias, numa tarde em que se dispôs a partilhar as suas reflexões com uma dúzia de académicos portugueses, alguns dos quais, aliás, se têm dedicado a estudar o seu pensamento - como é, de resto, o meu caso, figurando Scruton como um dos autores conservadores cujas ideias sobre os conceitos de tradição, razão e mudança analisei na minha tese de doutoramento.
Tratando-se de um herdeiro de Burke e de Hegel, de um crítico do liberalismo mas que coincide parcialmente com autores como Hayek (outro herdeiro de Burke) no que à teoria social concerne, Scruton é um dos pensadores contemporâneos responsáveis por desconstruir o mito de que ser conservador é igual a ser-se imobilista. Só um incauto poderia ser surpreendido pela sua afirmação tipicamente burkeana, em How to be a Conservative, de que o “desejo de conservar é compatível com toda a forma de mudança, desde que a mudança também seja continuidade”. Dificilmente se pode concordar com tudo no seu pensamento - é, também, o meu caso -, ainda para mais tratando-se de um autor tão prolífico, mas é impossível lermos Scruton e não nos sentirmos desafiados e estimulados a reflectir sobre os mais diversos temas. A minha evolução intelectual é parcialmente devedora do seu trabalho, que me permitiu compreender melhor as falhas do liberalismo e as potencialidades do conservadorismo, quer na teoria quer na acção política. A sua morte, hoje, aos 75 anos, é uma notícia triste e representa uma perda inestimável para a reflexão política dos conservadores - bem como dos seus adversários, alguns dos quais analisados em Fools, Frauds and Firebrands, uma das suas obras mais polémicas e cuja primeira edição, em 1985, com o título Thinkers of the New Left, lhe valeu o repúdio de boa parte da academia britânica. Afinal, numa época de ortodoxias e dogmatismos vários, à esquerda e à direita, a sua moderação foi quase sempre vista como herética. Partiu prematuramente, mas o seu trabalho e as suas ideias continuarão a florescer e a resistir ao teste do tempo.
Nesta hora, e para terminar, permitam-me relembrar o que creio ser uma das passagens mais emblemáticas de How to be a Conservative e que resume a sua posição moderada a respeito do papel do Estado. Para Scruton, e em tradução livre da minha lavra, este
é, ou deve ser, tanto menos do que os socialistas requerem, e mais do que os liberais clássicos permitem. O Estado tem um objectivo, que é proteger a sociedade civil dos seus inimigos externos e das suas desordens internas. Não pode ser meramente o Estado ‘night watchman’ defendido por Robert Nozick, visto que a sociedade civil depende de relações que devem ser renovadas e, nas circunstâncias modernas, estas relações não podem ser renovadas sem a provisão colectiva do bem-estar. Por outro lado, o Estado não pode ser o fornecedor e regulador universal proposto pelos igualitários, visto que o valor e o compromisso emergem das associações autónomas, que florescem apenas se puderem crescer de baixo. Ademais, o Estado só pode redistribuir riqueza se a riqueza for criada e a riqueza é criada por aqueles que esperam ter uma parte dela.”
Descanse em paz, Sir Roger Scruton.
Hoje escrevo no Observador sobre como o processo de crítica imanente é central nas democracias liberais e na competição entre estas e potências revisionistas não-democráticas, como a China e a Rússia, que visam subverter a ordem internacional liberal. Aqui fica uma passagem:
A superioridade, nas mais diversas áreas, das sociedades demo-liberais em relação às não-democráticas resulta em larga medida deste processo de crítica que opera através da liberdade de expressão, do debate público, da concorrência e da inovação, permitindo às sociedades corrigirem o seu rumo com base nas experiências passadas, mudando de forma gradual, reformista ou evolucionista, não de forma revolucionária, como frequentemente acontece em sociedades fechadas.
Para além disso, não percebo bem em que é que o "Marxismo cultural" é uma ameaça assim tão assustadora, ao ponto de em 2019 alguma direita achar que vive numa luta mortal contra o dito.
Nada disto é novo. Já no início do século XX Gramci tentou engendrar nos seus escritos "a longa marcha" do Marxismo "através das instituições". Mais tarde essa estratégia foi desenvolvida na Escola de Frankfurt de Marcuse e outros. Marcuse defendia "uma coligação de negros, estudantes, mulheres feministas e homossexuais", supostamente para destruir a civilização ocidental. Seguiram-se décadas, até hoje, em que as universidades do Ocidente foram ocupadas por departamentos de "culture studies" inspirados em Frankfurt.
Mas talvez fosse bom lembrar à direita mais stressada que as ideias sobre o avanço do Marxismo por via cultural partiram sempre da confissão de que o Marxismo, enquanto sistema económico, não era naturalmente aceite pelas pessoas. O argumento era o de que os proletários não aderiam à revolução porque as suas cabecinhas estavam formatadas pela ordem tradicional do capitalismo e da repressão sexual. Se os Marxistas acham que têm de mudar a cultura, é porque reconhecem a sua fragilidade original.
E, de facto, o que é que os "Marxistas culturais" conseguiram? Ao que se sabe o capitalismo ainda anda por aí. Com avanços e recuos, com méritos e erros, mas ainda assim a espalhar-se pelo mundo, galgando terreno ao Marxismo, que é mais forte na caserna académica do que no coração dos povos e no cérebro dos governantes.
Quanto às "marchas" e "coligações" de Gramci e Marcuse, o que mais há são estudantes, trabalhadores e minorias a querer casar, ter filhos e ganhar dinheiro honestamente. A ordem tradicional, baseada socialmente na família e economicamente no capitalismo, tem uma grande capacidade de conquistar e absorver as vanguardas dos "marxistas-culturais". E isso só prova a sua inultrapassável validade civilizacional.
Pessoas indignadas com o artigo do Adolfo Mesquita Nunes sobre o marxismo cultural e que vislumbram o declínio da civilização Ocidental já amanhã (um tema que é quase um fetiche de ocidentais diletantes) em resultado de exageros e delírios pós-modernistas (a acontecer, será pela demissão do Ocidente de líder da ordem internacional, pasme-se, graças à tal direita musculada de Trump, Bolsonaro, Farage, Orbán e afins, e pela ascensão de uma potência revisionista como a China, e estejam descansados que nessa altura vão poder preocupar-se com coisas sérias como o fim da democracia liberal e das liberdades que lhe são inerentes): levantem-se da cadeira, larguem a Internet, especialmente as vossas bolhas e câmaras de eco nas redes sociais, e vão ver que as teorias da conspiração que meteram na cabeça acabam por passar. Ou talvez não, porque já Karl Popper explicava a atracção de certas mentes por estas teorias, por serem incapazes de percepcionar a complexidade e o pluralismo da realidade social, especialmente de sociedades abertas, daí o seu pensamento de carácter maniqueísta ancorado em absolutos, que é, na verdade, contrário ao liberalismo, também ele tantas vezes proclamado morto, ainda que continue a ser a teoria mais adequada precisamente às sociedades Ocidentais, abertas e plurais, porque pautado pelo anti-dogmatismo que permeia o decálogo liberal de Bertrand Russell, porque se fundamenta na tradição, no racionalismo crítico e numa concepção evolucionista de mudança social e política, porque valoriza e respeita a existência de diferentes concepções de vida boa numa mesma sociedade, e porque, ao contrário do que muitos ditos liberais acreditam, assenta na moderação. Em todo o caso, com o tempo livre com que vão ficar por passarem menos tempo no Facebook, aproveitem e dêem uma vista de olhos neste livro, em que são abordados Raymond Aron, Isaiah Berlin, Norberto Bobbio e Michael Oakeshott enquanto expoentes da virtude da moderação - todos eles, como se sabe, perigosos marxistas culturais.
Tendo sido sondado por várias pessoas a respeito de como adquirir o meu livro, e enquanto este não chega às livrarias, informo que, por ora, podem adquiri-lo directamente junto de mim, pela módica quantia de 18 euros, bastando para tal enviar-me uma mensagem ou e-mail (samuelppires@gmail.com). Posso entregá-lo pessoalmente em Lisboa ou na Covilhã ou enviar por correio (acrescendo os portes no valor de 4,73 euros). Saliento que já só tenho 25 exemplares, pelo que sugiro que se apressem se quiserem ser os orgulhosos proprietários de um exemplar da obra mais aborrecida do ano com dedicatória e autógrafo com a caligrafia esteticamente mais pavorosa que possam imaginar, defeitos compensados largamente pela beleza da capa, onde figura uma pintura do Nuno Castelo-Branco, dos prefácios dos Professores José Maltez e Cristina Montalvão Sarmento e do posfácio da Ana Rodrigues Bidarra.
No seguimento do meu post anterior, renovo o convite para estarem presentes numa das sessões de lançamento do meu livro, desta feita deixando a imagem do convite para a sessão a ter lugar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade da Beira Interior, no dia 11 de Dezembro, pelas 14h30, no anfiteatro 7.22, bem como a ligação para a respectiva página do evento no Facebook.
A minha tese de doutoramento, subordinada à temática "Tradição, Razão e Mudança", conceitos abordados à luz de ideias liberais, conservadoras e comunitaristas, será publicada nos próximos dias pela Edições Esgotadas e terá uma sessão de lançamento em Lisboa, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, a 5 de Dezembro, pelas 19h00, e outra na Covilhã, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade da Beira Interior, a 11 de Dezembro, pelas 14h30.
É com muito gosto que vos convido a estarem presentes, aproveitando a oportunidade para vos persuadir com as apresentações a cargo do Professor Doutor José Adelino Maltez, da Professora Doutora Cristina Montalvão Sarmento e da Dr.ª Ana Rodrigues Bidarra, autores, respectivamente, dos dois prefácios e do posfácio, bem como com a belíssima ilustração da capa da obra, onde figura um quadro do Dr. Nuno Castelo-Branco apropriadamente intitulado "O Fim do Ocidente".
Aqui ficam a imagem e a ligação para página da primeira sessão de lançamento. Em breve partilharei a imagem e a página da segunda sessão.
Se dúvidas tivesse (dissipadas já há muito tempo), o meu post anterior, partilhado por aí por um libertário indígena e comentado por mais uns ditos liberais e libertários portugueses que me presentearam com os mimos que a sua tribo habitualmente reserva para todos aqueles que não alinham na sua ortodoxia simplista e própria de seres intelectualmente grunhos, acaba por servir para comprovar, mais uma vez, que muitos dos putativos liberais cá do burgo só o são quanto à dimensão económica, não hesitando apoiar declarados fascistas e candidatos a ditadores, seguindo na esteira do pior de Friedrich Hayek, Milton Friedman e dos Chicago Boys que formularam as políticas económicas de Pinochet e o apoiaram, justificando-se Hayek com a possibilidade de transição democrática num país cuja economia entretanto prosperasse. Ou seja, validam, mais uma vez, algo que há muitos anos venho escrevendo: não são liberais clássicos. Um liberal clássico, nos dias hoje, como explicam Eric Voegelin e John Gray, é um conservador no sentido anglo-saxónico, um defensor da democracia liberal e dos valores a esta subjacentes, nunca poderá apoiar um aspirante a ditador. Aliás, esta possibilidade arrepiaria Adam Smith, Edmund Burke ou Karl Popper. Claro que, para perceberem do que estou a falar e as suas próprias contradições, os nossos patuscos ditos liberais e libertários precisavam de ler coisas que não se compadecem com a simplicidade panfletária a que estão habituados e que permeia as suas diatribes e concursos de ortodoxia. Aliás, fiquei bem esclarecido a respeito da ignorância e do fanatismo de que sofrem quando, excepcionalmente, acedi a explicar um post meu em que me referia a várias ideias bastante conhecidas de Hayek, Oakeshott, Ortega y Gasset, Bertrand Russell e Popper que o meu interlocutor e os seus compagnons de route na caixa de comentários desconheciam em absoluto, o que, em vez de os tornar mais intelectualmente humildes, apenas reforçou o seu fanatismo em torno do que diziam ser um pensamento próprio (de grunhos, claro). Não há como não continuar a dar razão a Alçada Baptista, para quem "Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas,” e por isto mesmo há que continuar a lutar, na senda de Fernando Pessoa, contra a ignorância, o fanatismo e a tirania.
Tenho lido críticas a uma certa direita trauliteira que não tem - nem remotamente - o nível intelectual e cultural de verdadeiras referências direitistas. De facto, do Observador às redes sociais, passando pelo CDS, a direita portuguesa tem-se tornado um espaço pouco recomendável, porque dominado por caceteiros, hiper-moralistas com telhados de vidro e que não passam de aprendizes de Maquiavel, muito economês, liberalismo de pacotilha e pouca ou nenhuma capacidade de pensamento e reflexão e de diálogo moderado e civilizado com outras perspectivas filosóficas, ideológicas e partidárias. Dir-me-ão que os jornais, os partidos e as redes sociais não são universidades ou think tanks, mas quer-me parecer que o grau de indigência intelectual não necessitava de ser tão elevado. Trata-se, tomando emprestada uma expressão, de uma direita analfabeta, uma direita que pouco ou nada lê, permeada por um dogmatismo impressionante para quem, como eu, subscreve o decálogo liberal de Bertrand Russell.
Não que a esquerda seja necessariamente melhor. Com efeito, continuamos a ter, como assinala José Adelino Maltez, "A direita e a esquerda mais estúpidas do mundo", que "são como aquelas claques da futebolítica que afectaram socrateiros e continuam a infestar certos coelheiros, segundo os quais quem não é por mim é contra mim, porque quem não é por estes é a favor dos outros. Eu continuo a seguir a velha máxima de Unamuno: o essencial do homem ocidental é ser do contra. Para poder ser qualquer coisinha..."
Na verdade, a direita que habitualmente critica a esquerda por esta se alcandorar a uma certa superioridade moral, mimetiza esta atitude, o seu modo de pensar e comportamentos. Ambas reflectem aquilo a que me referi como a política do dogmatismo e a política da utopia, ambas alicerçadas no que Oakeshott chamava de política racionalista ou política do livro, da cartilha ideológica. Afinal, como também há tempos escrevi, é muito fácil ser libertário ou comunista: "Não por acaso, para o esquerdista, o Estado é o principal instrumento a utilizar e o mercado é o principal inimigo a abater, enquanto para o libertário é precisamente o contrário. Um pensador conservador pensa a partir do real, das circunstâncias práticas, sem deixar de criticar a sociedade em que vive, encontrando no Estado e no mercado diferentes esferas da vida humana, ambas necessárias a uma sociedade livre e próspera; um pensador esquerdista ou um libertário pensam a partir de um qualquer ideal e clamam contra tudo o que não se conforma a esse ideal. O racionalismo dogmático ou construtivista do esquerdista ou do libertário que defendem um valor acima de todos os outros em qualquer tempo e lugar, independentemente das circunstâncias práticas, consubstancia a política dos mentalmente preguiçosos."
Talvez valha a pena relembrar uma célebre passagem de Alçada Baptista, para quem "Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas.”
Ao que eu acrescento que conservadores não dogmáticos, que entendam a dimensão pluralista e flexível da reflexão e da praxis política a que alude Kekes, também já reparei que há muito poucos. Há muito poucas pessoas, em Portugal, que, atentando especificamente no domínio do político, compreendam o que Oakeshott transmitiu, em "On Being Conservative", ao considerar que a disposição conservadora não implica necessariamente quaisquer crenças religiosas, morais ou de outros domínios “acerca do universo, do mundo em geral ou da conduta humana em geral.” O que está implícito na disposição conservadora em política são “determinadas crenças acerca da actividade governativa e dos instrumentos do governo,” que nada "têm a ver com uma lei natural ou uma ordem providencial, nada têm a ver com a moral ou a religião; é a observação da nossa actual forma de viver combinada com a crença (que do nosso ponto de vista pode ser considerada apenas como uma hipótese) que governar é uma actividade específica e limitada, nomeadamente a provisão e a custódia de regras gerais de conduta, que são entendidas não como planos para impor actividades substantivas, mas como instrumentos que permitem às pessoas prosseguir as actividades que escolham com o mínimo de frustração, e portanto sobre a qual é adequado ser conservador."
Tendo eu passado por uma escola, o ISCSP, onde, citando Adriano Moreira, aprendi "a olhar em frente e para cima", tendo como referências mestres como José Adelino Maltez e Jaime Nogueira Pinto, tendo ao longo da última década lido e reflectido sobre diversos autores, como Hayek, Popper, Oakeshott e Kekes, ou seja, como alguém que privilegia o mundo intelectual sobre o político ou partidário, torna-se particularmente penoso não só constatar tudo o que acima escrevi, mas também continuar a compactuar com este estado de coisas através da minha condição de militante do CDS. Por tudo isto, solicitei hoje a minha desfiliação. Porque mais importante ainda do que ser do contra, é ser livre, e porque como escreveu Ortega y Gasset, "A obra intelectual aspira, com frequência em vão, a aclarar um pouco as coisas, enquanto que a do político, pelo contrário, costuma consistir em confundi-las mais do que já estavam. Ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser um imbecil: ambas são, com efeito, formas da hemiplegia moral."
Aqui fica o artigo sobre o declínio das democracias, da autoria de Gustavo Sampaio, publicado na edição de 29/03/2018 do Jornal Económico, para o qual contribuí com alguns comentários.
Jan-Werner Mueller, "Can Liberalism Save Itself?":
Needless to say, technocratic rhetoric provides an excellent opening for populists, because it invites the very questions that populists are wont to ask: Where are the citizens in all this? How can there be a democracy without choices? This is how technocracy and populism can start to reinforce one another. They can seem like opposites – the intellectual versus the emotional, the rational versus the irrational. And yet each is ultimately a form of anti-pluralism.
The technocratic assertion that there is only one rational solution to a problem means that anyone who disagrees with that solution is irrational, just as the populist claim that there is only one authentic popular will means that anyone who disagrees must be a traitor to the people. Lost in the fateful technocratic-populist interplay is everything one might think of as crucial to democracy: competing arguments, an exchange of ideas, compromise. In the absence of democratic discourse, politics becomes a contest between only two options. And those committed to either side share the view that there are never any alternatives.