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A direita, a esquerda e a minha liberdade

por Samuel de Paiva Pires, em 02.06.18

Tenho lido críticas a uma certa direita trauliteira que não tem - nem remotamente - o nível intelectual e cultural de verdadeiras referências direitistas. De facto, do Observador às redes sociais, passando pelo CDS, a direita portuguesa tem-se tornado um espaço pouco recomendável, porque dominado por caceteiros, hiper-moralistas com telhados de vidro e que não passam de aprendizes de Maquiavel, muito economês, liberalismo de pacotilha e pouca ou nenhuma capacidade de pensamento e reflexão e de diálogo moderado e civilizado com outras perspectivas filosóficas, ideológicas e partidárias. Dir-me-ão que os jornais, os partidos e as redes sociais não são universidades ou think tanks, mas quer-me parecer que o grau de indigência intelectual não necessitava de ser tão elevado. Trata-se, tomando emprestada uma expressão, de uma direita analfabeta, uma direita que pouco ou nada lê, permeada por um dogmatismo impressionante para quem, como eu, subscreve o decálogo liberal de Bertrand Russell

 

Não que a esquerda seja necessariamente melhor. Com efeito, continuamos a ter, como assinala José Adelino Maltez, "A direita e a esquerda mais estúpidas do mundo", que "são como aquelas claques da futebolítica que afectaram socrateiros e continuam a infestar certos coelheiros, segundo os quais quem não é por mim é contra mim, porque quem não é por estes é a favor dos outros. Eu continuo a seguir a velha máxima de Unamuno: o essencial do homem ocidental é ser do contra. Para poder ser qualquer coisinha..."

 

Na verdade, a direita que habitualmente critica a esquerda por esta se alcandorar a uma certa superioridade moral, mimetiza esta atitude, o seu modo de pensar e comportamentos. Ambas reflectem aquilo a que me referi como a política do dogmatismo e a política da utopia, ambas alicerçadas no que Oakeshott chamava de política racionalista ou política do livro, da cartilha ideológica. Afinal, como também há tempos escrevi, é muito fácil ser libertário ou comunista: "Não por acaso, para o esquerdista, o Estado é o principal instrumento a utilizar e o mercado é o principal inimigo a abater, enquanto para o libertário é precisamente o contrário. Um pensador conservador pensa a partir do real, das circunstâncias práticas, sem deixar de criticar a sociedade em que vive, encontrando no Estado e no mercado diferentes esferas da vida humana, ambas necessárias a uma sociedade livre e próspera; um pensador esquerdista ou um libertário pensam a partir de um qualquer ideal e clamam contra tudo o que não se conforma a esse ideal. O racionalismo dogmático ou construtivista do esquerdista ou do libertário que defendem um valor acima de todos os outros em qualquer tempo e lugar, independentemente das circunstâncias práticas, consubstancia a política dos mentalmente preguiçosos."

 

Talvez valha a pena relembrar uma célebre passagem de Alçada Baptista, para quem "Em Portugal, a liberdade é muito difícil, sobretudo porque não temos liberais. Temos libertinos, demagogos ou ultramontanos de todas as cores, mas pessoas que compreendam a dimensão profunda da liberdade já reparei que há muito poucas.”

 

Ao que eu acrescento que conservadores não dogmáticos, que entendam a dimensão pluralista e flexível da reflexão e da praxis política a que alude Kekes, também já reparei que há muito poucos. Há muito poucas pessoas, em Portugal, que, atentando especificamente no domínio do político, compreendam o que Oakeshott transmitiu, em "On Being Conservative", ao considerar que a disposição conservadora não implica necessariamente quaisquer crenças religiosas, morais ou de outros domínios “acerca do universo, do mundo em geral ou da conduta humana em geral.” O que está implícito na disposição conservadora em política são “determinadas crenças acerca da actividade governativa e dos instrumentos do governo,” que nada "têm a ver com uma lei natural ou uma ordem providencial, nada têm a ver com a moral ou a religião; é a observação da nossa actual forma de viver combinada com a crença (que do nosso ponto de vista pode ser considerada apenas como uma hipótese) que governar é uma actividade específica e limitada, nomeadamente a provisão e a custódia de regras gerais de conduta, que são entendidas não como planos para impor actividades substantivas, mas como instrumentos que permitem às pessoas prosseguir as actividades que escolham com o mínimo de frustração, e portanto sobre a qual é adequado ser conservador."

 

Tendo eu passado por uma escola, o ISCSP, onde, citando Adriano Moreira, aprendi "a olhar em frente e para cima", tendo como referências mestres como José Adelino Maltez e Jaime Nogueira Pinto, tendo ao longo da última década lido e reflectido sobre diversos autores, como Hayek, Popper, Oakeshott e Kekes, ou seja, como alguém que privilegia o mundo intelectual sobre o político ou partidário, torna-se particularmente penoso não só constatar tudo o que acima escrevi, mas também continuar a compactuar com este estado de coisas através da minha condição de militante do CDS. Por tudo isto, solicitei hoje a minha desfiliação. Porque mais importante ainda do que ser do contra, é ser livre, e porque como escreveu Ortega y Gasset, "A obra intelectual aspira, com frequência em vão, a aclarar um pouco as coisas, enquanto que a do político, pelo contrário, costuma consistir em confundi-las mais do que já estavam. Ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser um imbecil: ambas são, com efeito, formas da hemiplegia moral."

publicado às 18:49

Breves notas sobre a eutanásia

por Samuel de Paiva Pires, em 23.05.18

Impressionam-me sempre, ainda que não me surpreendam (afinal, o fenómeno encontra-se há muito diagnosticado pela teoria política, especialmente por autores conservadores), os discursos de cartilha ideológica e/ou religiosa, como tende a ser o da oposição à eutanásia, especialmente quando procuram fundamentar a utilização da coerção estatal para diminuir a esfera de liberdade individual naquilo que tem de mais íntimo e primordial, o podermos dispor sobre a nossa própria vida e, consequentemente, sobre a nossa morte. Compreendo que seja fácil e confortável debitar argumentos a partir de uma cartilha que nos diz o que pensar e o que dizer em face de determinados assuntos, mas não posso deixar de observar que esta é uma atitude permeada por uma boa dose de preguiça intelectual - compreensível, sublinho, mas que não deixa de ser o que é.

 

Tendo-me debruçado recentemente sobre o tema, apercebi-me que a esmagadora maioria dos argumentos dos opositores à eutanásia remetem, mesmo que frequentemente não pareça ou não o admitam, para uma única ideia, a de que a nossa vida pertence a Deus, não a nós próprios. Não foi por acaso que líderes de várias religiões se juntaram contra a despenalização da eutanásia em Portugal. Não foi também por acaso que um padre tetraplégico tentou convencer Ramón Sampedro a não se suicidar, ignorando que o conceito de dignidade humana pode ser entendido de formas diversas e que a resposta à célebre questão com que Camus abre O Mito de Sísifo - "Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia" - pode também ser diferente consoante os indivíduos, ainda que sujeitos exactamente às mesmas situações. 

 

Tenho muito respeito por crenças religiosas, e especialmente pela herança civilizacional judaico-cristã, mas tenho pena que muitos crentes não nutram o mesmo respeito pelos que não são crentes e pareçam ignorar que as sociedades ocidentais atravessaram o Iluminismo e têm como condição fundamental o laicismo. Querer impor a toda a sociedade um determinado entendimento religioso da ideia de dignidade da vida humana que tem como efeito impedir que um reduzido número de pessoas (são muito poucas as pessoas que pedem para morrer em face da dor e sofrimento, mesmo em países em que a eutanásia e o suicídio assistido são permitidos), em situações de dor e sofrimento prolongado e com doenças incuráveis - para mim, condições sine qua non para a admissibilidade da eutanásia e do suicídio assistido -, à luz das suas convicções e respostas à pergunta de Camus, possam morrer de forma medicamente assistida, parece-me - não há como dizê-lo de outra forma - perverso. 

 

Ademais, importa fazer notar que os cuidados paliativos não são uma alternativa à eutanásia (como afirmou João Lobo Antunes, citado por Maria Filomena Mónica em A Morte, é "errada a ideia de que os cuidados paliativos eliminariam todas as situações em que a eutanásia pode ser necessária, uma vez que, por exemplo, no Estado do Oregon, existem óptimos cuidados paliativos, o que não impedira alguns indivíduos de terem optado pelo suicídio assistido"), e que argumentos como a origem da eutanásia na Alemanha nazi e a rampa deslizante são fracos e, no caso deste último, trata-se frequentemente de uma falácia lógica facilmente desmontável. Citando Maria Filomena Mónica: "Ao contrário de pessoas que respeito, não considero que estejamos a escorregar, por uma escada deslizante, até à barbárie. Não é forçoso que se passe da defesa do suicídio assistido para a eutanásia e desta para a injecção letal a deficientes, mas reconheço que este argumento tem força. Contudo, do ponto de vista lógico, não é sustentável. Eis como funciona: à primeira vista, parece positivo fazer-se X (independentemente do que for X); mas a acção X conduz inevitavelmente a Y e esta, por sua vez, a Z. Ora, a acção Z é tida como negativa, portanto não deveremos fazer X. Uma acção que, de início, parecia aceitável, passa assim a ser vista como deletéria. Acontece que a “inevitabilidade” da passagem de X para Z não é uma necessidade. Embora se justifiquem cautelas, não é certo que a aceitação da eutanásia, no caso de doentes que a solicitem, leve à sua aplicação a doentes que a não desejam."

 

Importaria, portanto, que o debate não resvalasse para este tipo de questões, que decorresse em moldes racionais e num ambiente de serenidade, o que muitos dos opositores da eutanásia se têm esforçado por combater. Que alguns destes pensem ainda em submeter uma questão destas a referendo, incorrendo na possibilidade real de a tirania da maioria obrigar, numa questão que diz respeito a direitos fundamentais (porque termos uma palavra a dizer sobre a nossa morte nas condições supra elencadas faz parte do direito à vida), a obedecer a uma normatividade com um substrato essencialmente religioso que não é partilhado por todos os cidadãos, parece-me, mais que perverso, desumano.

 

Espero, por isso, que os nossos representantes na Assembleia da República, além de reflectirem serenamente, tenham bem presentes as seguintes palavras de Maria Filomena Mónica: "Uma democracia laica, como é o caso de Portugal, deve respeitar os sentimentos que a fé religiosa faz brotar na alma dos crentes, mas não pode autorizar que seja ela, a fé, a ditar a formulação das leis. Os católicos têm o direito de se abster de actos que consideram pecaminosos, mas não podem impor aos outros os seus valores. Não quero obrigar ninguém a fazer o que quer que seja, mas desejo ser livre de escolher o meu fim."

publicado às 23:22

Programa para mais logo

por Samuel de Paiva Pires, em 09.01.17

José Adelino Maltez - Liberdade, Pátria e Honra.

publicado às 13:33

Na comunidade muçulmana, a Guerra Santa é um dever religioso, devido ao universalismo da missão islâmica e à obrigação de converter todos ao Islão, pela persuasão ou pela força. Os outros grupos religiosos não têm missão universal e a Guerra Santa não é, para eles, um dever religioso, a não ser para fins defensivos.

Ibn Kaldhun

 

A cultura europeia é intrinsecamente materialista e já só conserva o Cristianismo como uma relíquia de família. […] É nosso dever estabelecer a soberania em todo o mundo e converter a humanidade aos sábios preceitos do Islão e seus ensinamentos, sem os quais o homem não pode aspirar à felicidade. 

Hassan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana 

 

Em Agosto de 2008, uma provocação por parte do então presidente georgiano Mikhail Saakashvili viria a precipitar a invasão da Geórgia ordenada por Vladimir Putin e Dmitry Medvedev. O Ocidente assistiu impávido e paralisado a esta invasão, em especial porque Putin utilizou a retórica de defesa dos valores ocidentais para a justificar, argumentando que a sua acção se destinava a proteger os direitos humanos dos cidadãos russos residentes nos territórios da Abkhazia e da Ossétia do Sul. 

 

Em Agosto de 2016, após a proibição de utilização do burkini em alguns municípios franceses, o Conselho de Estado francês suspendeu esta proibição em resposta a um requerimento apresentado pela Liga dos Direitos Humanos e pelo Colectivo Contra a Islamofobia em França.

 

O que estes dois exemplos têm em comum é o facto de serem sintomáticos de uma certa perplexidade do Ocidente perante terceiros que utilizam uma retórica característica dos regimes políticos demo-liberais, em que os valores da liberdade, igualdade, tolerância e direitos humanos são traves-mestras, para impor valores contrários a estes. Pior do que esta perplexidade que paralisa ou torna as instituições ocidentais reféns de valores que lhes são estranhos, só a colaboração de muitos ocidentais nestas investidas. 

 

Com efeito, muitos activistas defensores dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e dos direitos das pessoas LGBT, bem como aqueles que, em resultado do domínio do discurso político pelo liberalismo e o neo-marxismo que promovem as ideias de universalismo, multiculturalismo e cosmopolitismo, desprezam ou odeiam as noções de pátria, nação e Estado-nação e a sua própria identidade e herança cultural judaico-cristã, são assaz sensíveis e defensores do acolhimento do Outro, em especial dos muçulmanos, ignorando deliberadamente que estes defendem crenças que estão no extremo oposto das suas. Não é propriamente novidade para ninguém que o islão despreza os direitos humanos, submete as mulheres ao jugo e caprichos dos homens e trata-as de formas inadmissíveis e impensáveis no Ocidente e advoga a morte dos homossexuais, dos infiéis e dos apóstatas. Ainda assim, mesmo em face destas evidências, há sempre quem continue refém do relativismo cultural e do multiculturalismo, não hesitando em pedir que se tenha ainda mais tolerância e respeito por aqueles que nos querem subjugar e aniquilar, aparentando sofrer da Síndrome de Estocolmo, como acontece com Pedro Vaz Patto, que passo a citar (negrito meu):

Não pode conceber-se a integração nas sociedades europeias de imigrantes de outras proveniências culturais como um processo forçado, ou como uma forma de aculturação unilateral. Não pode exigir-se dos muçulmanos que deixem de o ser para se integrarem nas sociedades europeias. O preço dessa integração não pode ser a renúncia à sua identidade. O que se lhe deve exigir é que respeitem outras culturas e identidades, como pretendem que as suas sejam respeitadas. Trata-se de um processo bilateral de diálogo intercultural e de enriquecimento recíproco. Se assim não for, a integração estará condenada ao fracasso. Se prevalecer a ideia de que a integração dos muçulmanos nas sociedades europeias implica alguma forma de renúncia à sua identidade, maior será, neles, a tendência para recusar essa integração, para o ódio ao Ocidente, para o isolamento e para a radicalização.

 

A frase que assinalei a negrito é sintomática de um certo estado mental de quem não conhece ou prefere ignorar deliberadamente o carácter absoluto, totalitário e universalista do islão, que não só não respeita outras culturas como pretende subjugá-las ou aniquilá-las. Enquanto em muitos países muçulmanos os Ocidentais têm obrigatoriamente de se adaptar ao modo de vida e costumes locais - sob pena de poderem cair nas malhas da justiça islâmica -, os muçulmanos em países ocidentais pretendem impor nestes os seus costumes, a sua cultura, a sua religião e as suas leis e têm vindo paulatinamente a consegui-lo. A tolerância é apenas praticada pelos ocidentais, não havendo reciprocidade de tratamento.  

 

Creio ser acertado afirmar que há um desconhecimento, ou uma ignorância deliberada, em relação ao paradoxo da tolerância e ao que Karl Popper escreveu a respeito deste numa das odes contemporâneas ao demo-liberalismo, a sua obra A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (tradução e negritos meus): 

 

karl-popper.jpeg

Menos conhecido é o paradoxo da tolerância: A tolerância ilimitada tem de levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo àqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. — Nesta formulação, não quero dizer que, por exemplo, devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; enquanto as possamos contrariar por argumentos racionais e mantê-las sob controlo pela opinião pública, a supressão será certamente insensata. Mas devemos reivindicar o direito de as suprimir, se necessário até pela força; pois pode facilmente dar-se o caso de elas não estarem preparadas para discutir racionalmente connosco, começando por denunciar todos os argumentos; elas podem proibir os seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos utilizando os seus punhos ou pistolas. Devemos, portanto, reinvindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante. Devemos afirmar que qualquer movimento que pregue a intolerância se coloca à margem da lei, e devemos considerar o incitamento à intolerância e à perseguição como crime, da mesma forma que devemos considerar como crime o incitamento ao homicídio, ou ao sequestro, ou ao regresso do comércio de escravos.[1]

 

Isto devia ser algo sedimentado nas mentes de muitos ocidentais, mas infelizmente não o é e muitas instituições não se apercebem da armadilha em que caem ao defender a tolerância para com algumas práticas culturais de muçulmanos que vivem no Ocidente, em que, muitas vezes, acabam por defender práticas que se caracterizam pela intolerância e que são contrárias aos valores ocidentais. Esta armadilha é um sinal preocupante de desorientação por parte de muitas instituições. 

 

Perante isto, é particularmente oportuno salientar algumas considerações que Mario Vargas Llosa teceu aquando da proibição do véu islâmico nas escolas públicas francesas (negritos meus):

A imigração, por isso, em vez do íncubo que habita os pesadelos de tantos europeus, deve ser entendida como uma injecção de energia e de força laboral e criativa a que os países ocidentais devem abrir as suas portas de par em par e trabalhar pela integração do imigrante. Mas sem que por isso a mais admirável conquista dos países europeus, que é a cultura democrática, se veja beliscada, mas que, pelo contrário, se renove e enriqueça com a adoção desses novos cidadãos. É óbvio que são estes quem têm de se adaptar às instituições da liberdade e não estas renunciar a si mesmas para se acomodarem a práticas ou tradições incompatíveis com elas. Nisto não pode nem deve haver concessão alguma, em nome das falácias de um comunitarismo ou multiculturalismo pessimamente entendidos. Todas as culturas, crenças e costumes devem ter cabimento numa sociedade aberta, sempre e quando não entrarem em colisão frontal com os direitos humanos e princípios de tolerância e liberdade que constituem a essência da democracia. Os direitos humanos e as liberdades públicas e privadas que uma sociedade democrática garante estabelecem um leque muito amplo de possibilidades de vida que permitem a coexistência no seu seio de todas as religiões e crenças, mas estas, em muitos casos, como aconteceu com o cristianismo, deverão renunciar aos maximalismos da sua doutrina – o monopólio, a exclusão do outro e práticas discriminatórias e lesivas dos direitos humanos – para ganhar o direito de cidadania numa sociedade aberta. Têm razão Alain Finkielkraut, Élisabeth Badinter, Régis Debray, Jean-François Revel e aqueles que estão com eles nesta polémica: o véu islâmico deve ser proibido nas escolas públicas francesas em nome da liberdade.[2]

 

Quem esteja minimamente atento pode facilmente observar que, na Europa, as concessões ao multiculturalismo e ao relativismo cultural têm permitido, a coberto da tolerância, que práticas intolerantes tenham vindo a instalar-se paulatinamente em vários países. Muitos muçulmanos, ao invés de renunciarem aos maximalismos da sua doutrina, têm tentado impô-los.  Não surpreendem, por isso, episódios como os relatados por Gavin Mortimer, em que muçulmanos se sentem à vontade para insultar e agredir não apenas mulheres muçulmanas que não adoptam práticas como a de tapar o corpo na totalidade, mas também mulheres europeias. Como ficou patente a propósito da recente polémica do burkini, muitos europeus ignoram esta realidade. Ignoram, como salienta Mortimer, a extensão do extremismo islâmico em França, onde 100 das 2500 mesquitas são controladas por salafistas, ou seja, pela corrente mais puritana e fundamentalista do islão, que defende que todas as mulheres andem sempre cobertas. O burkini é parte da sua estratégia, sendo um símbolo da pureza islâmica que serve como forma de distinção entre as muçulmanas moralmente boas (as que usam o burkini) e as moralmente más (as que não usam o burkini). Naturalmente, existem muçulmanas que não pretendem envergar o burkini e que sofrem pressões por isso mesmo. No meio desta polémica, a maioria das pessoas, mais preocupada em defender a liberdade de vestir o que se queira, não entendeu ou ignorou isto, mesmo quando Nicolas Sarkozy afirmou o óbvio: trajar o burkini é um acto político e se este não for proibido, corremos o risco de que raparigas muçulmanas que não pretendam usar o véu ou o burkini venham a ser estigmatizadas e sofram pressões sociais. Na realidade, situações deste género já acontecem. Mortimer revela que uma organização muçulmana chamada "Femmes sans voile" (Mulheres sem véu) publicou uma declaração no Dia Internacional Mulher em que afirmou que as mulheres que a compõem se recusam a usar véu por consubstanciar uma violência simbólica visível no espaço público, e que os islamistas estão a formalizar a desigualdade entre os sexos na família e na sociedade em detrimento dos valores fundamentais da república francesa.

 

Aqueles que defendem a suspensão da proibição do burkini, sendo tolerantes com os intolerantes, não percebem que estão a colocar a tolerância em risco; pretendendo promover a liberdade individual, não percebem que estão precisamente a ajudar a reduzi-la; e sendo França o país que tem como mote "Liberté, égalité, fraternité", não deixa de ser irónico que estejam a ajudar a promover a desigualdade. Sustentando as suas decisões em argumentos assentes na liberdade religiosa, não vislumbram os perigosos precedentes que estão a abrir. Importa, por isso, voltar novamente às considerações de Vargas Llosa sobre a proibição do véu islâmico nas escolas públicas francesas, que são igualmente adequadas no caso da proibição do burkini (negritos meus):

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As meninas enviadas pelas suas famílias e comunidades ornamentadas com o véu islâmico para as escolas públicas de França são algo mais do que parece ao simples olhar; isto é, são a avançada de uma campanha empreendida pelos sectores mais militantes do integrismo muçulmano em França, que procuram conquistar uma cabeça de praia não só no sistema educativo como em todas as instituições da sociedade civil francesa. O seu objectivo é que se lhes reconheça o direito à diferença, por outras palavras, a usufruir, naqueles espaços públicos, de uma extraterritorialidade cívica compatível com o que aqueles sectores afirmam ser a sua identidade cultural, sustentada nas suas crenças e práticas religiosas. Este processo cultural e político que se esconde por detrás dos amáveis apelos de comunitarismo ou multiculturalismo com que os seus mentores o defendem, é um dos mais potentes desafios que a cultura da liberdade enfrenta nos nossos dias e, segundo me parece, é essa a batalha que no fundo começou a travar-se em França por detrás das escaramuças e encontrões de aparência superficial e episódica entre partidários e adversários de as meninas muçulmanas poderem ou não usar o véu islâmico nas escolas públicas de França.

(…)

Este argumento [o direito de as meninas muçulmanas assistirem às aulas com véu, por respeito à sua identidade e à sua cultura], levado aos seus extremos, não tem fim. Ou, melhor dizendo, se se aceitar, cria uns precedentes poderosos para aceitar também outros traços e práticas tão ficticiamente «essenciais» à cultura própria como os casamentos das jovens negociados pelos pais, a poligamia e, ao extremo, a ablação feminina. Este obscurantismo disfarça-se com um discurso de alardes progressistas: com que direito é que o etnocentrismo colonialista dos franceses de velho cunho quer impor aos franceses recentíssimos de religião muçulmana costumes e procedimentos que são contrários à sua tradição, à sua moral e à sua religião? Fertilizada por ousadias supostamente pluralistas, a Idade Média poderá assim ressuscitar e instalar um enclave anacrónico, desumano e fanático na sociedade que proclamou, a primeira no mundo, os Direitos do Homem. Este raciocínio aberrante e demagógico deve ser denunciado com energia, como aquilo que é: um perigo gravíssimo para o futuro da liberdade. [3]

 

Aqui chegados, debrucemo-nos agora sobre as questões mais amplas do islão e o fundamentalismo islâmico e as suas relações com o Ocidente. Um dos lugares-comuns mais propagandeados a respeito do islão é o de que este é uma religião de paz. Outro é o de que o fundamentalismo islâmico é uma corrente minoritária do islão que interpreta o Alcorão e os hadith (conjunto de relatos dos ensinamentos e hábitos do profeta Maomé que compõem a jurisprudência e são importantes na interpretação do Alcorão) perversa e erradamente. Ora, a propósito do ataque terrorista a uma discoteca gay em Orlando, um gay muçulmano, Parvez Sharma, escreveu que "Chamar ao islão uma religião de paz é perigoso e redutor. Tal como os outros dois monoteísmos que o precedem, tem sangue nas suas mãos", e assinalou ainda que o cânone islâmico que emergiu após a morte de Maomé sanciona a violência e condena a homossexualidade. A respeito desta última, a sharia é inequívoca. Em Reliance of the Traveller: A Classic Manual of Islamic Sacred Law, encontra-se a seguinte passagem transcrita por Andrew C. Mccarthy:

Sec. p17.0: SODOMY AND LESBIANISM

 

Sec. p17.1: In more than one place in the Holy Koran, Allah recounts to us the story of Lot’s people, and how He destroyed them for their wicked practice. There is consensus among both Muslims and the followers of all other religions that sodomy is an enormity. It is even viler and uglier than adultery [AM: which is punished brutally, including by death].

 

Sec. p17.2: Allah Most High says: “Do you approach the males of humanity, leaving the wives Allah has created for you? But you are a people who transgress” (Koran 26:165-66).

 

Sec. p17.3: The Prophet (Allah bless him and give him peace) said:

 

1. “Kill the one who sodomizes and the one who lets it be done to him.”

 

2. “May Allah curse him who does what Lot’s people did.”

 

3. “Lesbianism by women is adultery between them.”

 

É também na sharia que se estabelece a pena de morte como castigo pela apostasia, a flagelação como pena por crimes como beber álcool ou o adultério no caso de pré-pubescentes, sendo que nos restantes casos de adultério aplica-se a pena de morte por apedrejamento, entre outras penas para outros crimes que, à luz dos valores Ocidentais, não são crime algum. É bastante esclarecedor consultar algumas passagens da sharia neste artigo de Mccarthy. Conforme este sublinha, a sharia não é uma invenção da Al-Qaeda, do Daesh ou de qualquer outro grupo fundamentalista islâmico. A sharia é a lei islâmica.

 

Sobre as ideias de que o islão é uma religião de paz e o fundamentalismo islâmico um desvio que seria, até, anti-islâmico, Jaime Nogueira Pinto escreve o seguinte em Ideologia e Razão de Estado:

Existe também muita controvérsia à volta da natureza do Islão: será uma “religião de paz”, como pretende a maioria dos seus seguidores moderados, que consideram o terrorismo islâmico um desvio e uma deturpação dos ensinamentos do Profeta, ou encerra uma mensagem de proselitismo armado, em que a conversão ou a supressão física é a única alternativa dada aos apóstatas, aos ímpios, aos infiéis, aos não-crentes?

 

Existem nos livros sagrados islâmicos, no Corão (a lei) e nos Hadith (a jurisprudência), passagens, prescrições e disposições que vão num e noutro sentido. Como acontece aliás, com o Antigo Testamento judaico-cristão e até com os Evangelhos. Mas tal como Moisés e ao contrário de Cristo, Maomé foi um profeta armado e tanto o seu estilo guerreiro, épico e violento como a História sangrenta dos primeiros califas e da expansão muçulmana contra Bizâncio e os Persas, da Índia à Península Ibérica, parecem favorecer uma interpretação mais radical do Islão, reforçada pela sua juventude enquanto religião em fase de recuperação do tempo perdido e pelo facto de o uso da força ser recomendado nos próprios textos sagrados. Textos que, na versão ortodoxa, deverão ser interpretados literalmente.

 

Para esta corrente, o próprio Corão não só não impede a via totalitária do Islão como a encoraja: Maomé é um chefe militar sequioso de conquistas, faz da guerra santa e da morte na guerra santa o mais glorioso objectivo do crente, usa de uma linguagem de grande fúria e virulência, não mostra qualquer espécie de tolerância para com os não-crentes e institui uma teocracia absoluta que não estabelece nem admite distinção entre fé e razão. Terá, assim, criado uma religião radical, que pelo seu empenhamento territorial e político, pode justificar um tipo de totalitarismo ideológico, uma espécie de teocracia revivalista e absoluta.

 

(...)


Maioritário ou minoritário no mundo islâmico, legitimado ou não pelos textos do Corão, o islamismo radical é uma realidade materializada num movimento ideológico e activista que desencadeou uma guerra contra os Estados Unidos, Israel e os Estados árabes “heréticos”. Estes últimos fazem parte da “Casa da Guerra" porque os seus governantes são considerados ímpios ou apóstatas.[4]

 

O último parágrafo refere-se à Al-Qaeda, mas é igualmente adequado ao Daesh, sendo apenas de acrescentar que também a Europa se encontra entre os inimigos do islamismo radical. Embora a distinção entre islão e islamismo radical seja útil, a ideia de que o Ocidente não tem problemas com o islão, mas sim com os fundamentalistas islâmicos, é simplista e politicamente correcta, mas não é verdadeira, como assinala Samuel Huntington (tradução e negritos meus):

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Alguns ocidentais, incluindo o Presidente Bill Clinton, têm argumentado que o Ocidente não tem problemas com o islão, mas apenas com extremistas islâmicos violentos. Mil e quatrocentos anos de história demonstram o contrário. As relações entre o Islão e a Cristandade, quer a Ortodoxa, quer a Ocidental, têm sido tempestuosas. Cada um tem sido o Outro do outro. O conflito do século XX entre a democracia liberal e o Marxismo-Leninismo é apenas um fenómeno histórico efémero e superficial em comparação com a continuada e profundamente conflitual relação entre o Islão e a Cristandade. Por vezes, tem prevalecido a coexistência pacífica; mais frequentemente, a relação tem sido de intensa rivalidade e pautada por vários graus de guerra quente. As suas "dinâmicas históricas" comenta John Esposito, "... levaram a que as duas comunidades se encontrassem frequentemente em competição e, por vezes, empenhadas num combate mortal por poder, território e almas." Ao longo dos séculos, as fortunas das duas religiões têm ascendido e caído numa sequência de importantes vagas, pausas e vagas contrárias.[5]

 

Ainda assim, em relação ao islamismo radical, importa também questionar, de acordo com Jaime Nogueira Pinto, se

Estaremos perante um desígnio universal, uma ideologia-religião islâmica que pretende a conversão do mundo aos seus ensinamentos pela palavra e pela força, ou apenas perante um movimento que pretende restaurar a verdadeira fé na área islâmica (o mundo árabe e a Ásia, o Magrebe e a África islamizados), corrigindo e castigando os heréticos e desapossando-os do poder? Se se trata de restabelecer a “casa de Deus” (o verdadeiro Islão), na “Casa da Guerra” (o mundo árabe não ortodoxo) deixando em paz o resto do globo desde que este os deixe em paz, é uma coisa; se se trata de exportar uma religião e converter o resto do mundo, é outra.[6]

 

No seguimento da passagem supracitada, importa sublinhar que o islão efectua uma distinção entre o dar al-islam, o mundo onde se aplica o islão, ou seja, a casa de Deus, e o dar al-harb, o mundo ou casa da guerra, que, segundo José Adelino Maltez, "seria necessário converter, através de um esforço, dito jihad." Embora o significado de jihad seja disputado pelas várias correntes de interpretação do islão, existem três formas de jihad: "a maior, que tem a ver com o combate do crente contra um inimigo interior, contra as paixões e a inclinação para o mal; a menor interior, que ocorre dentro do próprio mundo islâmico, contra os renegados e os apóstatas, justificando a dominação dos rebeldes e dos tiranos pela força; e a menor exterior, que tem a ver com a expansão do Islão em todo o mundo."[7] Se é verdade que, em relação a esta última, o Alcorão e os ensinamentos islâmicos afirmam que deve ser apenas defensiva e impõem determinadas condições para que os muçulmanos possam pegar em armas - têm de sofrer alguma forma de opressão em relação à prática do islão e ameaças às suas vidas, devem ter sido forçados a deixar as suas casas no local onde ocorre a opressão e só se o opressor continuar a oprimi-los no local para onde se mudaram e a ameaçar as suas vidas é que podem pegar em armas -, e estabelecem também condições em relação ao que é permitido na guerra defensiva - como, por exemplo, civis que não lutem contra o islão não devem ser atacados, mulheres, homens e idosos devem permanecer intocáveis e os prisioneiros de guerra devem ser tratados com respeito - também não é menos verdade que a Al-Qaeda veio romper com estes ensinamentos, tendo Bin Laden, de acordo com Jaime Nogueira Pinto, justificado a guerra total em virtude da desproporção dos meios em relação ao inimigo, inscrevendo-se, desta forma, na linha extremista do wahhabismo,[8] que tem uma visão integrista e puritana do islão. E se a Al-Qaeda trouxe esta novidade, o que dizer do Daesh, cuja violência extrema é uma imagem de marca? 

 

Com efeito, o islamismo moderno, nas palavras de Roger Scruton, "é um exemplo daquilo a que Burke chamou, ao descrever os revolucionários franceses, uma "doutrina armada", ou seja, uma ideologia agressiva apostada em erradicar toda e qualquer oposição."[9]  O islamismo promove uma irmandade que "fala secretamente ao coração de todos os muçulmanos, unindo-os contra o infiel,"[10] e levou até a uma confluência entre xiitas e sunitas que esteve na base do chamado ressurgimento islâmico, aparecendo o islão, "pela primeira vez em muitos séculos, (...) - aos olhos de muçulmanos, mas também aos olhos dos infiéis - como um movimento religioso uno e unido em torno de um objectivo comum," o que fica a dever-se, em muito, a dois factores, "a civilização ocidental e o processo de globalização que ela desencadeou."[11] Conforme salienta o filósofo britânico,

roger scruton.jpg

No tempo em que o Oriente era o Oriente e o Ocidente era o Ocidente, os muçulmanos podiam consagrar as suas vidas a deveres piedosos e ignorar o mal que prevalecia no dar al-harb. Mas quando o mal se espalha por toda a terra, propondo alegremente liberdades e direitos em vez dos rígidos deveres de um código religioso, e chega a invadir o dar al-islam, despertam os velhos antagonismos e, com eles, a velha necessidade de recrutar aliados contra o infiel.[12]

 

A própria utilização, com uma pesada conotação pejorativa, do termo infiel (kafir) - embora o cristianismo também tenha utilizado o termo no passado - para designar todos os que não crêem no islão, que devem ser persuadidos a converter-se, pela palavra ou pela força, ou combatidos e mortos, é ilustrativa de como esta religião encara a tolerância e a liberdade religiosa. Segundo Christopher Hitchens,

O islão começou não só por condenar todos os cépticos ao fogo eterno como continua a reivindicar o direito de fazer o mesmo em quase todos os seus domínios e continua a pregar que esses mesmos domínios podem e têm de ser alargados através da guerra. Durante a minha vida, nunca houve uma tentativa de questionar ou sequer investigar as reivindicações do islão que não tenha sido recebida com uma repressão extremamente dura e célere. Assim sendo, temos o direito de concluir provisoriamente que a aparente unidade e confiança da fé são uma máscara para uma insegurança muito profunda e, provavelmente, justificável. Naturalmente, nem será preciso dizer que existiram e existirão sempre feudos sanguinários entre diferentes escolas do islão, resultando em acusações estritamente intermuçulmanas de heresia e profanação e em actos de violência terríveis.[13]

 

Independentemente das discórdias e conflitos entre as várias correntes do islão, os infiéis são um inimigo comum. A este respeito, vejamos o que afirmou o Ayatollah Khomeini em 1984, citado em O Ocidente e o Resto de Scruton:

Se permitirmos que os infiéis continuem a desempenhar a sua missão de corruptores da terra, tanto maior será o seu castigo. Assim, se matarmos os infiéis para pôr termo à sua actividade [corruptora], estaremos na verdade a prestar-lhes um serviço. Pois o seu castigo final será menor. Permitir que os infiéis permaneçam vivos significa autorizá-los a prosseguirem as suas actividades corruptoras. [Matá-los] é uma operação cirúrgica ordenada por Alá, o Criador... Aqueles que respeitam as regras do Corão sabem que devemos aplicar as leis de qissas [retribuição] e que devemos matar... A guerra é uma bênção para o mundo e para todas as nações. É Alá quem ordena aos homens que combatam e matem.[14] 

 

Embora seja possível encontrar passagens no Alcorão para justificar a ideia de que o islão é uma religião de paz, de acordo com Scruton (negritos meus),

o facto é que a interpretação de Khomeini da mensagem do Profeta encontra confirmação no texto e reflecte precisamente a apropriação do político que tem distinguido as revoluções islâmicas no mundo moderno.

 

No entanto, os sentimentos de Khomeini não lhe foram inspirados apenas pela sua leitura do Corão, constituindo igualmente o resultado de um exílio prolongado, primeiro no Iraque e a seguir no Ocidente, onde viveu protegido pelos infiéis que pretendia esconjurar pela aniquilação. E demonstram claramente que as virtudes dos sistemas políticos ocidentais são, para uma determinada mentalidade islâmica, incompreensíveis - ou compreendidas, como foram por Qutb e Atta, como falhas morais imperdoáveis. Mesmo desfrutando da paz, bem-estar e liberdade decorrentes de um estado de direito secular, alguém que encara a charia como o caminho único da salvação pode ver nessas vantagens meros sinais de vazio espiritual ou de corrupção. Para alguém como Khomeini, os direitos humanos e o governo secular denunciam a decadência da civilização ocidental, que não consegue erguer-se contra aqueles que a querem destruir e espera em vez disso conseguir apaziguá-los. Mas para o militante islamista não há compromisso possível e os sistemas que se norteiam pelos princípios do compromisso e da conciliação são meros agentes do Diabo.[15]

 

Aqueles que se encontram reféns da retórica dos direitos humanos e advogam mais tolerância para com práticas muçulmanas que, na verdade, ofendem os direitos humanos, não percebem que estão apenas a sinalizar aos muçulmanos a fraqueza do Ocidente perante os que o querem subjugar. Como Scruton assinalou em 2009, num ensaio intitulado "Islam and the West: Lines of Demarcation", o Ocidente encontra-se num perigoso período de concessão ao islão, em que as legítimas revindicações da nossa própria cultura são ignoradas ou minimizadas como forma de provar as nossas intenções pacíficas. 

 

Que fazer?

 

José Meireles Graça, a propósito da polémica em torno do burkini, escreveu o seguinte:

Finalmente: É uma atitude inteligente o Estado, em vez de fechar as madraças onde se ensine o ódio ao Ocidente, e impedir a construção de mais mesquitas onde se prega o obscurantismo de uma religião à qual os muçulmanos moderados ainda não impuseram o aggiornamento, andar pelas praias a multar mulheres que tiveram a infelicidade de nascer em sociedades medievais?

Há quem diga, com boas razões, que não. Inclino-me a pensar que sim, não porque a verdadeira guerra esteja aí mas porque, para tratar doenças, nos devemos preocupar com as causas, mas sem desprezar o tratamento sintomático.

 

Partilho desta opinião. É verdade que há questões muito mais importantes e prioritárias nas relações com o islão. Mas também é verdade que muitas instituições ocidentais têm feito concessões a práticas que violam os valores do Ocidente e que, no meio da desorientação que nelas grassa, talvez já nem saibam bem o que fazer no que concerne às relações com o islão. Ora, é preciso começar por algum lado, nem que seja por alguns dos sintomas. 

 

Muito se fala, em Teoria das Relações Internacionais, de hard power soft power. É um lugar-comum dizer-se que, frequentemente, o soft power, isto é, a influência, só consegue alcançar os seus objectivos se tiver forma de os alcançar também através do hard powerSoft power sem hard power leva muitas vezes a resultados insatisfatórios. 

 

O mesmo se pode aplicar em relação à forma como as instituições ocidentais devem lidar com as reivindicações do islão nos países ocidentais. Em primeiro lugar, devem abandonar a retórica multiculturalista e perceber a armadilha a que aludi neste post, quando com a intenção de defenderem a tolerância ou a liberdade, acabam por fazer concessões a práticas que colocam estes valores em causa. Em segundo lugar, se as instituições - bem como muitos indivíduos ocidentais - pretendem continuar a pedir tolerância e respeito aos muçulmanos (soft power), têm de estar preparadas para não fazer concessões em tudo o que ofenda os valores ocidentais (hard power), para que os muçulmanos entendam que, no Ocidente, são a cultura e os valores ocidentais que imperam. O Ocidente tem um património cultural e político que tem de ser defendido.

 

Scruton, na parte final do artigo que acima mencionei, recomenda isto mesmo como forma de nos defendermos do islamismo. Após aludir a sete características definidoras do Ocidente e que o distinguem das comunidades islâmicas, o britânico diz-nos que temos de estar preparados para não fazer concessões aos que querem que nós "troquemos a cidadania pela sujeição, a nacionalidade pela conformidade religiosa, a lei secular pela sharia, a herança judaico-cristã pelo islão, a ironia pela solenidade, a auto-crítica pelo dogmatismo, a representação pela submissão e a alegria de beber pela abstinência censória. Devemos tratar com desprezo  todos os que exigem estas mudanças e convidá-los a viver onde a sua forma de ordem política preferida já se encontra em vigor. E devemos responder à sua violência com a força que seja necessária para contê-la."

 

1 - Karl Popper, The Spell of Plato, vol. 1 de The Open Society and Its Enemies (London: Routledge, 2003), 293.

2 - Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo (Lisboa: Quetzal Editores, 2012), 98.

3 - Ibid., 96-97.

4 - Jaime Nogueira Pinto, Ideologia e Razão de Estado (Porto: Civilização Editora, 2013), 906-907.

5 - Samuel P. Huntington, The Clash of Civilizations (Londres: Simon & Schuster, 2002) 209.

6 - Jaime Nogueira Pinto, Ideologia e Razão de Estado, 906.

7 - José Adelino Maltez, Curso de Relações Internacionais (São João do Estoril: Principia, 2002), 93.

8 - Jaime Nogueira Pinto, O Islão e o Ocidente, 4.ª ed. (Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2015), 150-151.

9 - Roger Scruton, O Ocidente e o Resto (Lisboa: Guerra e Paz, 2006), 102.

10 - Ibid., 114.

11 - Ibid., 111.

12 - Ibid., 111-112.

13 - Christopher Hitchens, Deus não é grande, 2.ª ed. (Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2010), 152.

14 - Roger Sruton, O Ocidente e o Resto, 108.

15 - Ibid., 108-109.  

publicado às 14:10

John Gray, "A Conservative Disposition":

Conservative individualists recognize that, before anything else, even before freedom, human beings need a home, a nest of institutions and a way of life they feel to be their own. Among conservatives, the practices of market exchange and of rational argument are familiar ingredients in, and even necessary conditions of, their way of life. They are not the whole of the way of life that they inherit, and they cannot hope to flourish, or in the end to survive, if the common culture of liberty and responsibility that supports and animates  them is eroded in the pursuit of the mirage of the sovereign individual of liberal ideology.

publicado às 19:59

Dos fracos não reza o Sócrates

por John Wolf, em 08.12.14

Luís_de_Camões_por_François_Gérard

 

Existe uma cela dentro do nosso espírito onde habitam aqueles que acicatam a morte prematura. Quando somos destinatários da falência ética, devemos procurar refúgio numa casa vizinha, no castelo de convicções sólidas, inabaladas pela perfídia daqueles que não caíram por terra - pois sempre rastejaram no lodo da sua existência. A liberdade não é uma pátria comandada. A inveja, sendo a derradeira de Camões, Deus reserva para o diabo que anda à solta. A cobardia, justamente convocada para a falácia do dilema, não afasta os bravos, não intimida os fracos - atrai os audazes que não anunciam a sua chegada. Como ousam ofender a alma lusitana?

publicado às 19:41

Aprender com África

por Fernando Melro dos Santos, em 30.10.14

O meu desejo de São Martinho, Helloween, Samhain, Solsticio, Yule, Natal, Ano Novo, e já agora aniversário.

E é sincero. Num país de grunhos que se desmancham em riso porcino perante as câmeras, a troco de umas rifas migalheiras que os demarquem perante o resto do bairro, e que de tanto vilipendiar o conhecimento e o mérito acabaram por correr com o futuro, é o mínimo que posso querer ver no meu tempo de vida.

 

Em 40 anos, o Alto Volta fez-se um país condigno. E no mesmo período, Portugal fez-se uma casa de putas.

 

 

 

Manifestantes ateiam fogo ao Parlamento no Burkina Faso, em protesto.

 

http://www.sol.pt/noticia/117586

 

 

http://www.aljazeera.com/news/africa/2014/10/protesters-storm-burkina-faso-parliament-20141030103451460862.html

 

http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-29831262

publicado às 16:22

De Afonso a Afonso em apenas 40 anos.

por John Wolf, em 12.04.14

De Afonso Henriques a Zeca Afonso, e independentemente de preferências ideológicas, o caminho da liberdade de expressão em Portugal não foi certeiro. Nesse trilho de opiniões, juízos de valor e preconceitos, muitos regimes de censura barraram as vozes que desejavam fazer ruir o atavismo em nome de uma nova ordem, desconhecida, mas certamente melhor. No entanto, as cancelas que colocaram sobre as vias nem sempre foram políticas. Muitas das vezes foram culturais. Barreiras interpostas por agentes culturais, auto-proclamados superiores, e que supostamente iriam agir em nome do interesse colectivo, da sociedade. A explosão democrática de 1974 libertou os discursos enclausurados, mas, quase simultaneamente, consagrou a expressão de práticas corporativas. Em quarenta anos de direitos, deveres, liberdades e garantias, os libertados apropriaram-se dos vícios e defeitos endémicos daqueles que quiseram derrubar. A inexistência de lobbies perfeitamente estabelecidos levou a que um sem número de confrarias das artes e letras, ciências e práticas empíricas florescesse na sombra do consentâneo, para promover os interesses e defender os privilégios dos seus "associados". A revolução, perspectivada a esta distância, e com a devida parcimónia ideológica-partidária, serviu para dar a volta completa e chegar ao estado semi-consciente do presente marasmo. Na grande algazarra da desorientação, responsabilidade e culpas por atribuir, Portugal pode se orgulhar da conquista do megafone com o 25 de Abril. Qualquer indivíduo ou colectividade, pode, como mais ou menor jactância, levar ao rubro da sua oralidade a reclamação ou a discordância. Qualquer mensagem ou pseudo-mensagem pode ser veículada. Nesse processo de derrame mental, a profundidade de pensamento, a fundamentação e a reflexão séria, foram comprometidas. À emissão ruidosa segue-se a resposta visceral, pequena. O discursante, embalado pela razão, não necessita de poleiros determinados institucionalmente. Aproveita o local e a hora que quiser para reagir como bem entende. Observámos ao longo destes últimos anos que as manifestações tomaram as ruas, inundaram os blogues e as redes sociais, mas não foram capazes de contagiar o derradeiro bastião da transformação - os orgãos políticos e de soberania da república portuguesa, que não têm grande interesse em alterar o seu comportamento. Ao mesmo tempo, convenhamos, os "grandes pensadores" de Portugal estiveram ausentes do país. Desligaram os motores e deixaram andar as carruagens até chegarmos ao destino em que nos encontramos. Os titulares de cargos públicos, criteriosamente colocados nessa posição pelo povo português, não quiseram interpretar convenientemente os sinais urgentes que emanam da sociedade. O governo, a oposição, a presidência da república e os tribunais constitucionais, fazem uso, para garantir o status quo, de um conjunto de regras tácitas de equilíbrio relativo, de permanência. Nenhuma das partes envolvidas desarma por completo, nenhum dos agentes quebra as suas convicções, porque sabe, que qualquer que seja o resultado, permanecerão sobre o tabuleiro da conveniência, dos interesses económicos e financeiros, da alternância entre as mesmas opções políticas onde não impera o pensamento, a grande filosofia das sociedades. Portugal está enleado numa discussão de trânsito, em tira-teimas à novela mexicana, em mexericos de ocasião e, perde, para seu mal, uma perspectiva de futuro que seja abrangente, válida e sustentável. De Fernando Tordo a Alexandra Lucas Coelho, o espectador deixou-se distrair pelas figuras de estilo e pelas bofetadas mediáticas, em vez de se concentrar no fundamental, naquilo que trará benefícios ao país, aos milhares de desempregados que estão a leste destas moelas deploráveis. Os paladinos da inteligência querem lá saber da arraia miúda. Esses privilegiados pela coluna de opinião e pela obra didáctica, podem ostentar as cicatrizes da ofensa ao seu bom nome, mas tudo isso não passa de narcisismo, de importância excessiva atribuída às causas erradas, ao seu umbigo, enquanto Portugal passa mal. E assim Portugal não passa de um fado - um triste fardo.

publicado às 16:52

A materialização da liberdade

por João Pinto Bastos, em 25.02.14

Pensar a liberdade, num cenário de escassez de recursos, demanda amiúde uma rigorosíssima análise da realidade, o que, como é bem sabido, nem sempre é observado pelos mequetrefes intelectualeiros do costume. Nos dias que correm, atulhados, como estamos, na empáfia da ruína moral e colectiva, a liberdade tornou-se num assunto menor que não ocupa, em rigor, um único segundo da parca inteligência dos sandeus que dominam a academia. É por isso que a reflexão intelectual hegemónica no debate público fez de temas como a liberdade, a democracia, a economia política ou a distribuição do produto social, coisas menores servilmente subordinadas a projectos de pesquisa assentes em desiderataobscurantistas. A acuidade deste problema é ainda maior se pensarmos, por exemplo, no facto de a crise económica e social da contemporaneidade não ter estimulado um debate normativo suficientemente esclarecedor sobre os rumos a tomar perante o ocaso de um modelo social e económico irremediavelmente falho. Sabe-se, empírica e racionalmente, que o Estado social construído no bojo da II Guerra Mundial tem de ser reformulado sob pena de arrastar consigo a falência irredenta do organismo social, porém, também é certo e conhecido que a reconfiguração das instituições matriciais desse modelo não comporta um desenho normativo arrimado no pressuposto falível de que o poder estadual não pode nem deve, de modo algum, intervir na sociedade civil de molde a corrigir desigualdades na atribuição dos recursos societários. É aqui, justamente neste ponto, que a leitura liberal efectuada nos últimos anos por alguns intelectuais peca por defeito. Peca, sobretudo, na concepção holística da liberdade e do papel do Estado. Em primeiro lugar, a tese de que o construtivismo social (Estado de Bem-Estar) engenhosamente gerado pelos modelos sociais dos trente glorieuses deve dar lugar a uma interacção feita de e para os indivíduos oblitera um factor nada despiciendo, nomeadamente o facto de, no contexto presente, não ser de todo possível o indivíduo alicerçar um plano de vida crível e razoável sem o concurso regulatório do poder público. Dito de outro modo, no contexto económico presente, marcado por uma mundialização económica eivada de uma pluraridade de fontes de poder, é um erro sustentar que o ambiente idealizado pelo liberalismo clássico ilustrado é facilmente transponível para a realidade actual. Não o é pela simples razão de não existirem - aliás, em bom rigor, nunca existiram - mercados perfeitamente competitivos, ancorados no equilíbro geral teorizado por Walras. O exame positivo dos mercados revela-nos, ademais, uma cristalização de formas oligopólicas e monopólicas que impedem, como é bom de ver, a validade de uma concepção teorética envolta num individualismo alheio à mecânica social. Em segundo lugar, a inevitável reforma dos Estados Sociais não deve fazer tábua rasa da imperiosa necessidade de assegurar um mínimo social, isto é, os cortes em certos agregados da despesa social, assim como a abertura à iniciativa privada e à dita sociedade civil de certos componentes do Estado de Bem-Estar, terão forçosamente de ser acompanhados de um reforço regulatório por banda do Estado. Mais: a prossecução de uma agenda assente na liberdade para todos (liberdade enquanto autonomia irrestrita na realização individual dos planos de vida) terá de repensar a correcção ex-ante dos desiquilíbrios sociais, limitando a intervenção estadual ex-post à conformação regulatória dos mercados. Isto significa, primeirissimamente, a garantia de uma distribuição equânime da igualdade de oportunidades, dando consistência material às opções de cada um. Em suma, a liberdade que importa defender, sobretudo nos tempos vindouros, é uma liberdade material acompanhada da respectiva propriedade. É aqui, neste quesito, que uma concepção verdadeiramente moderna da liberdade terá de assentar os seus arraiais. Por conseguinte, o virar de página do Estado Social só fará sentido se a isso estiver subjacente uma liberdade material ancorada na propriedade, porque, como escreveram os antigos, os Maquiavel, os Cícero, os Locke, os Smith ou os Jefferson, a liberdade só é plenamente gozada se cada cidadão possuir o autogoverno da sua pessoa. É assim que, em resumo, se constrói uma res publica realmente inclusiva.

 

Publicado aqui.

publicado às 15:02

Uma sociedade doente

por João Pinto Bastos, em 12.02.14

21 sem-abrigo com estudos superiores. Confesso que ao ler esta notícia fiquei sumamente chocado. Não é que, note-se, os sem-abrigo com estudos superiores sejam, por força desse facto, dignos de uma piedade mais achacadiça, em comparação com os restantes sem-abrigo, porém, é no mínimo dilacerante verificar que a sociedade portuguesa contemporânea, mole e amoral, logrou a proeza de atirar para o caixote do lixo gente que, em condições normais, deveria estar perfeitamente integrada na comunidade. Um entulho moral, portanto. Mas há nesta nova, diligentemente trazida aos leitores pelo Diário de Notícias, um aspecto que cumpre não desprezar, designadamente o facto de, em democracia (e, nós, para todos os efeitos, vivemos sob o imperium de um regime nominalmente democrático), não ser de todo sustentável um grande fosso social entre os mais ricos e os mais pobres. Por outras palavras, níveis de desigualdade excessivamente elevados fazem mal à coesão social de uma comunidade democrática. E isto não é, em boa verdade, um facto que possa dividir em campos irremediavelmente opostos socialistas e liberais, comunistas e democratas-cristãos. Mais: ainda que alguns liberais de pacotilha julguem o contrário, há, em certas situações, a necessidade de agir colectivamente (com o concurso do poder estadual, como é por de mais evidente) de modo a melhor afrontar estas chagas sociais. O Estado quando confrontado com fenómenos de absoluta carestia material deve, obrigatoriamente, agir, e tem, em face disso, de mitigar os efeitos mais deletérios de uma pobreza muitas vezes involuntária. Bem sei que isto contende com aquela ideia um pouco desfasada da realidade de que a liberdade implica, por assim dizer, uma não interferência absoluta na esfera privada de cada um, mas a verdade é que a sociedade moderna, com a sua teia de relações e transacções, atingiu uma complexidade tal que já não admite, em situações de grande miséria social, uma não intervenção minimizadora por banda dos poderes públicos. A liberdade é, como se tem visto em muitos rincões, um conceito moldado das mais variadas formas, mas o certo é que sem uma base material inteiramente plausível (propriedade) não é possível falar de uma liberdade que seja verdadeiramente sentida e gozada. E, no caso em apreço, é claríssimo que os 21 sem-abrigo com estudos superiores não dispõem dessa liberdade, isto é, de uma liberdade que só faz sentido se for devidamente acompanhada da tão incompreendida propriedade. É disto, pois, que se trata, da liberdade e da propriedade rectamente concatenadas. É por isso que, não obstante a berraria que por vezes ainda se ouve por aí, é absolutamente fundamental repensar, de um modo humanista, o Estado Social, reformando o inevitável, sem, contudo, esquecer que a Questão Social do século XIX poderá, a qualquer momento, reemergir na cena política. Estou certo de que as elites portuguesas e europeias não desejam de todo tal ocorrência.

publicado às 22:59

A estátua da liberdade portuguesa

por John Wolf, em 08.02.14

O governo de Portugal pende desavergonhadamente para o perfil de um regime extremo que faz tábua rasa de princípios civilizacionais. A discriminação positiva assente na decisão de atrair imigrantes "de primeira" colide com a universalidade da condição humana, frágil e enferma. Certamente Pedro Lomba ignora o famoso poema de Emma Lazarus inscrito aos pés da estátua da Liberdade: "Give me your tired, your poor..."(...). A poetisa Emma Lazarus de origem sefardita portuguesa, decretou nos seus versos o desespero da diáspora, assim como o abraço caloroso de quem acolhe. A condição migrante é a antítese de sofisticação. Ela é miséria à chegada e glória na partida que muitas vezes não chega a acontecer. O que o governo pretende fazer soa a lei emanada de um regime nacional-socialista. Será que Pedro Lomba não sabe que um país se constrói através de um processo aleatório de selecção natural? Este tipo de engenharia social é muito perigoso – é fascista. Demonstra que estão dispostos a sacrificar o espírito humano em nome da eficiência, da economia, da produtividade, dos resultados - seja qual for o preço a pagar. Não sei se esta medida viola os princípios consagrados na Carta Universal dos Direitos Humanos, mas ofende descaradamente os indigentes dispostos a deixarem as suas pátrias em busca de uma vida melhor. Portugal, se deixarmos, tornar-se-á num reino distante daquele que pioneiramente aboliu a pena de morte. Aqui vos deixo o poema da portuguesa Emma Lazarus;

 

The new colossus

 

Not like the brazen giant of Greek fame

With conquering limbs astride from land to land;

Here at our sea-washed, sunset gates shall stand

A mighty woman with a torch, whose flame

Is the imprisoned lightning, and her name

Mother of Exiles.  From her beacon-hand

Glows world-wide welcome; her mild eyes command

The air-bridged harbor that twin cities frame,

"Keep, ancient lands, your storied pomp!" cries she

With silent lips.  "Give me your tired, your poor,

Your huddled masses yearning to breathe free,

The wretched refuse of your teeming shore,

Send these, the homeless, tempest-tossed to me,

I lift my lamp beside the golden door!"

 

 

by Emma Lazarus, New York City, 1883

 

 

publicado às 13:39

A barbaridade praxeira

por João Pinto Bastos, em 25.01.14

A temática das praxes, e o ruído que as mesmas têm levantado mediaticamente - ruído esse que deu origem, veja-se só, a artigos de fundo de José Pacheco Pereira e Vasco Pulido Valente -, tem, em rigor, um aspecto que, devidamente sopesado, não é de todo de desprezar. Esse aspecto contende com algo que é, a meu ver, a essência de uma sociedade medularmente civilizada: a liberdade. Quando iniciei a minha licenciatura em Direito na Universidade Católica, recordo-me, perfeitamente, de, nas primeiras semanas, ter frequentado a praxe da respectiva universidade. Recordo-me, também, de não ter ficado, pelas razões que têm sido abundamente discreteadas neste blogue e nos media, grandemente impressionado com as "sevícias" moralóides perpetradas pelos Duxes de ocasião, sendo que, passado algum tempo, abandonei, sem qualquer prurido, aqueles espectáculos alarves. O problema aqui, e que já na altura discuti com alguns colegas, prende-se com o facto de as praxes servirem, as mais das vezes, senão mesmo em todas as circunstâncias, de poiso à ignorância mais alambicada que pulula nas universidades portuguesas. O argumento da integração é, na verdade, sumamente ridículo. Em primeiro lugar, qualquer aluno que entre numa universidade não necessita de nenhum ritual bovino (que, alguns, no auge da sua parvoeira, pretendem iniciático, sem sequer saberem o que isso significa) para se integrar no ambiente em questão. Aliás, parte-se do pressuposto que uma pessoa com 18 anos de idade é, para todos os efeitos, um(a) adulto(a) que sabe desenvencilhar-se, com liberdade e bom senso, dos problemas que possam inopinadamente surgir. Em segundo lugar, não se integra ninguém com insultos, calúnias, difamações, e ofensas gratuitas. A não ser que, para muito boa gente, tratar outros seres humanos, que só por acaso são colegas de curso, por "cabra", "vaca", "filho da puta", "cabrão", entre outros, seja algo normal e até aconselhável. A meu ver, civilizado como sou, não creio que estes apodos sejam, na verdade, um indício de integração saudável nas estruturas de uma determinada instituição. Em terceiro lugar, e last but not the least, não é por acaso que as praxes são dominadas por alunos insistentemente reprovadores. Como é certo e sabido, as praxes são, para estes frustrados baderneiros, o instrumento perfeito para a humilhação imberbe de todos aqueles que fazem do trabalho e do mérito o seu leit-motiv universitário. Bem se vê pelo que atrás foi dito que tudo o que gira em torno da praxe tem, no fundo, uma dimensão patológica que importa não descurar. Cá no Porto, cidade onde vivo, existe, por exemplo, o Hospital Magalhães Lemos, que está devidamente apetrechado para lidar com este tipo de casos. É por estas e por outras que, desde há muito, sou um apologista estrénuo do fim implacável destas aberrações pseudo-integradoras. Porque, como já foi referido noutros fóruns, e bem, a Universidade serve, acima de tudo, para o estudo, e não para a alarvice superiormente chancelada. 

publicado às 14:53

Os ventos da fome e do autoritarismo

por João Pinto Bastos, em 25.01.14

Dizia Benjamin que a história não é um continuum guiado pelo Progresso. Nem pela razão, acrescentaria eu. Porém, há quem pense de um modo bem distinto. Só isso explica que ainda haja por aí quem se surpreenda com o facto de, em muitas latitudes, haver povos e regiões que não dão um único centavo pela Ideia democrática. No fundo, o que importa relevar é que os tempos de domínio intangível do eurocentrismo findaram. Com ou sem liberdade, com ou sem democracia de tipo ocidental, o que interessa às grandes massas, muitas vezes famintas, deste mundo é, perdoem-me a ironia deslocada, a concretização prática do famoso slogan do PPD/PSD: paz, e, sobretudo, pão, e, depois, com algum jeitinho, a liberdade. É bom que se entenda isto, porque já não há, em rigor, espaço e manobra para semeaduras atabalhoadas de um tipo de liberdade que nós, ocidentais, há muito que deixámos de compreender.

publicado às 13:32

A minha visão do conclave centrista

por João Pinto Bastos, em 13.01.14

Falar a torto e a direito do "irrevogável" tem como consequência inequívoca a saturação indizível do debate político, centrando, com alguma inabilidade política à mistura, o cerne da luta política no contingente inescrutável. Para mim, e creio que para uma porção significativa da militância centrista, esse episódio foi totalmente esclarecido, pelo que tornar a fustigar Paulo Portas, e, por inerência, o CDS/PP, com esta questiúncula politiqueira é, no fundo, chover no molhado. Ademais, o Congresso de Oliveira do Bairro foi, como pude comprovar in loco na qualidade de delegado, um momento alto no debate político que importa fazer a respeito das grandes pendências do Portugal troikado, e teve, ao inverso do que muitos levianamente alvitraram, intervenções surpreendentemente lúcidas. Mas cingindo-me ao que verdadeiramente interessa, este Congresso é resumível em dois aspectos complementares, que ajudam a perscrutar, com a clarividência exigível, o que irá seguir-se no tablado da política nacional nos meses vindouros: 1) a consolidação, a curto e a médio prazo, da liderança política de Paulo Portas, 2) a confirmação, também a curto e a médio prazo, de uma união mais estreita dos partidos da coligação. O primeiro ponto foi bastamente evidente para os militantes que marcaram presença no Espaço Inovação de Oliveira do Bairro, pois Paulo Portas saiu do Congresso com uma liderança reforçada, tendo um mandato politicamente bem definido na prossecução que ora se espera da agenda do partido no seio da coligação. Há, a este título, um apontamento que não posso deixar de fazer: continua a haver nos media a opinião zombeteira de que o CDS é um partido unipessoal, entregue, fanaticamente, a um só homem que põe e dispõe a seu bel-prazer das peças no tabuleiro partidário. Denegar esta zombaria leva, necessariamente, a que nós, militantes, tenhamos de adquirir elevadas doses de paciência. Mas a realidade é bem diferente, basta olhar para dois factos bem singelos: a existência de uma oposição partidária, liderada por Filipe Anacoreta Correia, que, sem qualquer obstáculo ou impedimento, disse de sua justiça no Congresso e nos media, assim como o facto de as grandes decisões do Congresso terem sido sujeitas a votação secreta, sem que ninguém fosse chantageado a votar em x ou y. Creio que para bom entendedor meia palavra basta, sendo que, no cômputo geral, ficou patente urbi et orbi o carácter eminentemente pluralístico do partido, com todas as vozes, integralmente todas, a serem auscultadas pelo grosso da militância. Em conclusão, ainda que seja estranho para certos comentadeiros, não há, que eu saiba, delinquentes ou inimigos internos no CDS. Já no que toca ao segundo ponto, compreendo e aceito a posição tomada pela liderança do partido no sentido de uma coligação com o PPD/PSD nas próximas eleições europeias. Há, a este respeito, uma análise política que importa não descurar, designadamente a que se prende com o facto de o pós-troika exigir uma união de esforços acrescida, em face das dificuldades políticas e económicas que se adivinham com um mais do que provável programa cautelar. Nesse sentido, um ensaio coligatório pré-eleitoral, já nas eleições europeias, tem, em rigor, toda a lógica deste mundo. Bem sei que para alguns militantes uma coligação pré-eleitoral tenderá a prejudicar o partido (a Alternativa e Responsabilidade bateu neste ponto, a meu ver, erradamente), mas a verdade é, por força das circunstâncias, necessariamente outra. Uma coligação nesse acto eleitoral será, em boa verdade, o método mais indicado para conclamar os dois partidos a uma apologia cuidada do trabalho político desenvolvido e a desenvolver futuramente no âmago da governação. O centro-direita português tem de compreender, de uma vez por todas, que a reforma do regime só fará sentido com um pacto político (eleitoral e não só) alargado, que ouse romper com o imobilismo amordaçante desta República desrepublicanizada. Sem isso, isto é, sem esse trabalho de sapa, político e eleitoral, de pouco valerão os esforços titânicos feitos pelo portugueses até ao momento. O CDS/PP tem, neste capítulo, um papel importantíssimo, não só pela legitimidade política e eleitoral concedida pelo povo português, mas, também, pela pertinência incontestável da tradição política de que é um herdeiro indisputado. Esperemos, portanto, que este Congresso tenha servido, na perfeição, de estopim a uma maior responsabilização dos agentes políticos da governação do país. Estou certíssimo de que com Paulo Portas ao leme este objectivo será plenamente alcançado.

publicado às 22:58

A censura do Monsieur

por João Pinto Bastos, em 10.01.14

 

A liberdade é um conceito tramado que serve, as mais das vezes, de suporte a agendas políticas ridiculamente banditizadas. A mais recente atoarda censória de Hollande não é, a este propósito, uma grande surpresa, pelo facto singelo de toda a "obra" legada pelo président estar ferreteada pela mais completa e estupidificante inépcia política. Nesse sentido, o banditismo constituído pela censura, política e judicialmente chancelada, de um cómico não é, bem vistas as coisas, uma novidade. Numa presidência inicialmente votada à recuperação do grandeur da França, o falhanço no cumprimento das grandes metas macroeconómicas, acompanhado da deriva geoestratégica de uma elite demencialmente perdida, deu lugar, como o Miguel Castelo Branco sublinhou aqui, a manobras de diversão múltiplas, votadas, primacialmente, a desviar a atenção do povinho francês do cerne claudicante da política hollandista. O problema é que censuras deste jaez, com maior ou menor brado mediático, tenderão, a médio e longo prazo, a supurar os alicerces das liberdades democráticas. O fantasma do liberticídio anda por aí, ameaçando, a miúdo sub-repticiamente, os fundamentos do contrato social.  E Hollande, com a sua costumeira inabilidade política, voltou, para não variar, a dar voz, espaço e luzes aos que tão inclementemente criticam o ocaso da República. Seria bom que, pelo menos, uma única vez, o socialismo francês fosse capaz de distinguir o trigo do joio.

 

Publicado aqui.

publicado às 14:20

Alguém me acuda que eu não sou constitucionalista, mas acredito que esta decisão da Ordem dos Médicos deve ser sujeita a uma forma de fiscalização preventiva antes de entrar em efeito. A decisão parece colidir com os mais básicos princípios democráticos e constitucionais - o dinheiro não deve constituir um impeditivo para que a voz do cidadão se faça ouvir. Esta forma dissimulada de censura é um modo muito reles de defesa que a Ordem dos Médicos inventou para ter dinheiro em caixa e afastar as reclamações. Significa que um desgraçado sem dinheiro no bolso deixa de poder apresentar queixa, de reclamar, de iniciar um processo em que se averiguam os factos sem prejuízo das partes envolvidas até prova em contrário. A culpa ou a responsabilidade não podem ser condicionadas pela expressão monetária do indivíduo. Daqui a nada, os manifestantes que se fazem às ruas e reclamam, com ou sem razão, serão obrigados a pagar uma "taxa de protesto" e possuir um "cartão de cidadão do contra". Pelos vistos, a Ordem dos Médicos quer ser um Estado dentro do Estado e implementar as suas próprias medidas de austeridade. Isto é escandaloso e exige a mais firme resposta dos cidadãos, enfermos ou não.

publicado às 19:01

Serviço público

por Fernando Melro dos Santos, em 11.12.13

O novo portal de informação, Avental. Perto de si e dos seus.

publicado às 14:51

O público não quer pagar para ler

por John Wolf, em 26.11.13

Não é apenas o governo que lança novos impostos a cada cinco minutos. Não é apenas o governo que exerce o magistério do controlo. Num momento crítico da história de Portugal, para além de todas as multas e coimas que os portugueses têm de suportar, o jornal Público e o semanário Expresso decidem, ao abrigo da alegada sustentabilidade do seu modelo de negócio, aplicar uma tabela de pagamentos para conteúdos online outrora fornecidos a título gratuíto. Pela parte que me toca - um blogger pro bono -, julgo que deveria haver um regime de excepção para aqueles que realizam a extensão das reflexões produzidas por esses jornais de grande tiragem. Grande parte dos posts produzidos neste e noutros blogs, assentam nessa premissa de acesso à matéria-prima que permite formar uma opinião em forma escrita, um prolongamento dos artigos publicados nesses meios de comunicação social. Acresce a este facto uma outra visão utilitária e recíproca. Por um lado, os links inseridos nos nossos posts remetem para a "fonte", para os jornais em causa, contribuindo desse modo para uma maior afluência de leitores. Dito de outra forma, somos contribuintes líquidos para as operações de outrém. Felizmente para nós (que não somos melhores que os demais leitores online), existem alternativas, fornecedores de conteúdos de imprensa, aquém e além-mar. A austeridade pode servir de desculpa ou pretexto para a tomada de certas decisões de gestão, mas em termos substantivos, trata-se de uma forma de restrição à informação. O cidadão que não tem orçamento para estas extravagâncias acaba de ficar um pouco mais às escuras, dependente de outros juízos e à mercê do conhecimento de alguns. Nessa medida, e quase paradoxalmente, os blogs acabam por reforçar o seu papel, a sua missão, sem estarem presos a noções de mercado ou lucro. Embora existam blogs patrocinados com a cara chapada da publicidade e marcas a decorar a homepage, neste sítio podemos orgulhar-nos de não depender das condições económico-sociais do momento. Aqueles que merecem o nosso maior respeito são os milhares de leitores que nos acompanham numa base diária, porventura ligeiramente baralhados pela amálgama de posições políticas distintas que povoam o blog Estado Sentido. Aqui não há peditórios nem a convicção que temos a última palavra em relação ao que quer que seja. Ao Público e ao Expresso, os meus votos de continuação de bons trabalhos. Bom Natal e boa Popota.

publicado às 19:52

As barreiras intransponíveis do Barreirinhas

por João Pinto Bastos, em 11.11.13

A desmemória centenária

publicado às 00:18

Quero viver num buraco

por John Wolf, em 14.10.13

Não tenho a certeza se este é o momento certo ou errado para colocar a hipótese em cima da mesa. Mas não resisti a arrastar para este espaço um conceito que começa a ganhar forma no país da inovação e dos sonhos - na terra do Uncle Sam. Os cortes nas pensões e outras tarifas contributivas que agora assolam Portugal, não correspondem aos desígnios traçados na seguinte proposta, por não serem opções voluntárias. Foram governos que decidiram o rumo a seguir, a bem ou a mal. O que eu trago a lume é algo distinto na sua acepção filosófica. Refiro-me aos "pobres intencionais" que começam a brotar em diferentes nichos do império americano que se encontra em inegável queda económica e social. Viver num buraco passou a ser um estilo de vida muito diferente daquele a que estamos habituados. Não há nada de degradante nesta forma de vida - segundo os próprios. Aliás, para os praticantes, significa viver com mais qualidade e liberdade do que ser escravo da próxima prestação da casa. O que está a acontecer, e que está bem patente nestes exemplos, relaciona-se com a tomada de consciência de que a precariedade material pode ser considerada uma vantagem. Em vez de adicionar encargos, estes cidadãos prescindem dos confortos da vida moderna, e realizam uma viagem profundamente filosófica - imaterial, mas terrena. Sei que o actual ambiente de grande consternação social mexe com a sensibilidade de tanta gente caída por terra, mas isto constitui um indício de uma nova ordem civilizacional alicerçada num conceito de realização e felicidade que colide com a extravagância esbanjadora dos nossos tempos. Aqui não se trata do cliché de "amor e uma cabana", a visão romantizada em ficção, a poesia conveniente plantada por um certo imaginário idílico. Nestes casos lida-se com a crueza elementar da natureza e o grau de suficiência que deve pautar as nossas vidas. Viver com pouco mais de três mil e quinhentos euros por ano parece ser um duro teste de sobrevivência - quando esta situação não resulta de uma escolha livre e idealista. Certamente que em Portugal existem centenas de milhar de cidadãos que vivem com esse rendimento anual, enquanto outros nem por isso. E é aqui que reside a injustiça - o confronto entre a filosofia de uns e as contas da electricidade de outros. No final da história, e apesar das palavras, ficaremos todos às escuras.

publicado às 22:17






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