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Acompanhado por oficiais britânicos, é o quarto militar a contar da direita para a esquerda, na segunda fila. Sempre lhe conheci aqueles bigodes à Kaiser
Aconteceu há um século, num tempo cada vez mais distante do qual a memória colectiva portuguesa, desde sempre bastante ténue, apenas retém aquilo que dentro de portas as lendas familiares garantem ou o que os livros dos sucessivos regimes fazem difundir como verdades. Na prática, a participação portuguesa quer-se resumida à necessidade de defender o Ultramar em várias frentes, nisto se notabilizando o soldado Milhais. Ponto final, acabou a história.
Não se duvidando minimamente do esforço e extremado sacrifício individual, a participação de Portugal na I Guerra Mundial ter-se-á devido a vários factores entre os quais surge esmagador e prepotente, o desejo de legitimização internacional da casta política que meia dúzia antes tomara o poder na Rotunda, transmitindo a nova ordem de coisas por telégrafo a todo o país, então do Minho a Timor.
Já estabelecido em Moçambique numa data tão incerta como o seu alegado nome, José Silva, por vezes vagamente referia as suas origens na zona da Anadia e se a conversa porfiasse, diria também que a família produzia vinhos. Tudo muito enigmaticamente vago, dir-se-ia ter vindo ao mundo na segunda década do século XX, quando nascera muito antes, por altura do Ultimatum. Isto foi durante décadas um motivo para todo o tipo de elucubrações, umas mais fantásticas do que outras, mas todas tendo algumas certezas quanto à sua participação nos acontecimentos que levaram à proclamação do novo regime.
Participou na guerra levado na massa da mobilização geral, fosse ela oriunda da Metrópole ou nas parcelas coloniais e logo deixou Lourenço Marques integrado numa das expedições que recentemente chegara com armas e bagagens com o fito de rapidamente fazer boa figura, tomando o considerado não muito difícil alvo que era o então Tanganica germânico, território este já desde 1914 isolado de reabastecimentos e contudo nunca completamente submetido pelas forças britânicas que se adentraram naquele vasto espaço africano. Tremenda desilusão, pois apesar de todos os esforços, o Tanganica estava muito longe de ser um cenário bélico idêntico ao europeu, tanto na amplitude do espaço como nas condições gerais que condenaram contingentes inteiros à morte por doenças, abandono em postos no mato recôndito ou a mais descabelada inépcia dos comandos militares onde o desinteresse rapidamente se seguiu às atoardas marteladas pelos agentes políticos que compunham as expedições, sendo o representante do regime, o bem resguardado e iracundo governador Álvaro de Castro o cabeça de fila que sem sair de Lourenço Marques ordenava acções completamente desfasadas da realidade no terreno. Saneados liminarmente os oficiais tidos como thalassas que conheciam a verdade acerca do que era possível ou não realizar em África, a confiança política sobrepôs-se à competência militar e em consequência o desastre foi total, absoluto, passando rapidamente os teres e haveres dos militares portugueses a abastecer regularmente o esforço de guerra alemão sob o comando do brilhante oficial que foi von Lettow-Vorbeck.
O monumento à Grande Guerra
O bisavô recusava-se a falar da campanha propriamente dita, rosnando entre dentes todo o tipo de palavras que contradiziam as versões oficiais acerca dos acontecimentos e com isto, vindo o Armistício, para sempre se desligou da sorte do regime, continuando os seus afazeres profissionais pontilhados por esta ou aquela tomada de posição, a réstia da sua fidelidade, como a colaboração no erguer do palácio maçónico erguido na Av. 24 de Julho, então o mais imponente edifício do género existente em qualquer um dos territórios sob soberania portuguesa. Preferiu então dedicar-se totalmente às suas funções na Agrimensura da Câmara Municipal de Lourenço Marques, a ele se devendo as medições para o risco ortogonal da parte alta da capital moçambicana. Ali casaria com a minha bisavó que já nascera em Lourenço Marques na derradeira década do século XIX, em 1896.
Vivo ou morto nunca mais voltou à parcela europeia, considerando Moçambique como a sua terra. Por vezes, sentado na sua varanda que dava para a Baía do Espírito Santo, deixava soltar alguns comentários acerca da Situação, sem que jamais com esta tivesse comprometido aquilo por ele julgado como o mais certo, logo acrescentando ..."enquanto forem vivos os da minha geração, Salazar pode considerar-se seguro, o que antes dele sucedeu foi terrível, inesquecível". Não gostava do que significava a 2ª república, mas resignava-se à compreensão das razões da sua já então longa vigência.
No início da década de sessenta
Um dia anunciei-lhe a minha entrada na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque, já há muito estabelecida naquele palácio maçónico que ajudara a construir. A sua reacção foi típica, dizendo com um desabafo, ..."afinal o mono sempre teve alguma utilidade prática". Mais satisfeito ficaria se soubesse que ainda hoje a escola vai funcionando, realizando após o regime das promessas ocas e daquele que lhe sucedendo realizara o pretendido seguimento material, um bastante intermitente trabalho na formação de quadros.
Quando se aposentou no final da década de quarenta, no terreno que como recompensa pelos seus serviços recebera da Câmara Municipal de Lourenço Marques, construiu a casa na artéria que estoicamente homenageava um conhecido vulto republicano que ali arribara num misto de recompensa e pontapé para o alto. Ainda existe, hoje ocupada por outra gente que por vezes em quentes tardes de ciclone se refrescando na mesma varanda, nem sequer sabe que o antigo proprietário imitava Homem Cristo, dizendo que habitava na Cabrito Macho. Dito isto, o bisavô levava o polegar e o indicador a pressionar as narinas, num gesto que poucos compreendiam como directamente relacionado com a imorredoura fama de um homem escassamente dado a banhos.
Uma ainda relativamente recente foto da sua casa erguida na então R. Brito Camacho, Lourenço Marques
Não quis regressar à terra natal e morreu já depois da independência em 1975, em Lourenço Marques. Qual seria o seu verdadeiro nome?
Não sabia o que significava, mas a palavra agradara-lhe e decidira usá-la assim que tivesse oportunidade para tal. Naquela tarde iria com a prima Ana Maria e a sua mãe ao Scala, uma grande sala de cinema situada em plena Baixa, sítio esse onde as pessoas não apenas iam ver uma fita, como também para serem notadas. Por isso mesmo uma ida ao cinema era então algo que agora nos surge como um eco distante de um passado mais rebuscado onde algumas glórias da moda com algum imaginado requinte desfilaram.
Estavam então naqueles anos imediatos à guerra mundial e as duas miúdas, uma delas, a Mima, residente na capital e a outra, a Ana Maria, vinda do mato de Manjacaze onde o pai era administrador, apresentaram-se diante de Maria Pinto da Fonseca para uma rápida vistoria aos laçarotes antes de deixarem a casa e rumarem à Av. da República, naquela confluência com a Av. D. Luís I, sítio esse onde existiam os dois principais pontos de encontro da cidade. Um deles, o Café Continental, era vasto e vagamente apresentado numa espécie de Deco tardio, já um tanto ou quanto americanizado. Era ali que se concentravam os homens para a discussão da política - sim, em Lourenço Marques a discussão política também era coisa trivial -, as últimas notícias dos futebóis locais e metropolitanos e as intrigalhadas de uma sociedade relativamente exígua, embora o seu espaçamento territorial à primeira vista indiciasse o oposto. Praticamente quem era quem conhecia-se e em reflexo era normal um transeunte percorrer a Avenida meneando constantemente cabeça, saudando à esquerda e à direita ou tão só levando a mão ao chapéu nos dias de torreira. Era o Café Continental o centro das Laurentinas e dos pires de camarão tigre que acompanhavam cada rodada, o café fumegante ficava para fim, significava a estocada terminal na conversa. As Coca Colas serviam para mitigar o aborrecimento dos garotos impacientes pelas conversas ininteligíveis dos adultos que para ali infelizmente os arrastavam, começando ao fim de algum tempo a balançar as pernas como forma de silencioso protesto. Por vezes, um clac! relativamente audível fazia voltar algumas cabeças em direcção ao ruído e à face subitamente avermelhada do pirralho atrevido. Eram tempos em que isso se fazia em público e sem riscos de maior.
Mesmo diante do Continental existia outro recinto de comes e bebes, mas não era um Café que replicasse na concorrência o vasto espaço fronteiro, tratava-se de um salão de chá, algo que de imediato produzia na cabeça dos visitantes uma sensação de diferença e cerimonial. Ali se serviam chás, fumegantes torradas e toda a bolaria portuguesa, alguma dela tropicalizada e mais ao gosto local. Era o o Salão de Chá Scala, sobretudo querido pelas senhoras e pela filharada gulosa e melhor comportada. Olhava-se de soslaio ou descaradamente para as peças têxteis elaboradas pela modista Lauentina Borges ou tão só adquiridas numa das imensas lojas de trapos da cidade e exibidas na mesa vizinha, como infalivelmente se comentava a próxima chegada de uma vedeta metropolitana, trocavam-se umas tantas receitas ou a ida a uma exposição no Núcleo de Arte onde fulano ou sicrana iria mostrar o que sabia ou não sabia fazer.
Mesmo contígua ao salão de chá, existia e ainda existe fechada numa cápsula do tempo o grande cinema da Baixa, o magnífico Scala onde um dia, ainda garoto, vi actuar gente como Marcel Marceau e Gilbert Bécaud. A estes juntaram-se muitos outros cujos nomes fui esquecendo, desde os nacionais como a Florbela Queiroz, Simone ou o Duo Ouro Negro, até internacionais que aproveitavam a tournée na África do Sul para fazerem uma perninha na então bastante cosmopolita capital de Moçambique.
A prima Mima estava ansiosa, pois lera a palavra num daquelas romances para adultos, palavra essa muito sonora, estranha e enigmática que faria todo o sentido exibir como um troféu de caça grossa. A sua preguiça chegara para mantê-la longe da estante onde repousava o dicionário que rapidamente poderia esclarecê-la.
O filme ia correndo e o intervalo, com toda a injustiça nunca mais chegava. Terminada a primeira parte do filme que obrigava à mudança da bobine, as pessoas normalmente saíam e iam trocando impressões acerca da estória ou tão só aproveitavam a pausa para fumar, beber e comer qualquer coisa na sala de chá convenientemente bem próxima.
Finalmente, chegou o momento tão esperado e a Mima rapidamente se levantou, apontou o dedo à mãe e gritou:
- Levanta-te, mulher adúltera!
Dúzias de pares de olhos fuzilaram a estarrecida tia Maria.
Nuno, Ângela e Miguel, no fontanário do Jardim Vasco da Gama, em Lourenço Marques. Na cabeça, os cofiós bordados, oferecidos por amigos do Centro Aga Khan (1968)
Há trinta e cinco anos, o Xá Reza Pahlavi para sempre abandonou o seu país. Durante muitos anos era uma presença constante nos noticiários, um peão essencial no ténue equilíbrio de poderes no Médio Oriente. Ainda hoje acusado de demasiado ocidentalismo, o Xá dos anos sessenta surgia como um dirigente que procurava a difícil síntese entre a milenar tradição persa, o legado muçulmano e as exigências impostas por um trabalhoso período reformista que guindou a Pérsia ao lugar cimeiro do concerto internacional. Para quem vivesse no Moçambique português, Reza Pahlavi era o imperturbável e discreto amigo que decidindo a partir dos seus gabinetes nos palácios de Niavaran ou Golestan, ignorava sanções impostas na ONU e as advertências de aliados contrariados pela presença portuguesa na África e na Ásia. Nos seus afazeres de funcionário da Sonap, várias vezes o meu pai visitou petroleiros iranianos que descarregavam na refinaria Sonarep da Matola, tornando-se estes num elo vital da sobrevivência económica da então província ultramarina de Moçambique. Se o Xá era um homem moderno, Farah Diba foi gabada como uma beldade da época Twiggy, um figurino da moda, tendo mesmo Lourenço Marques conhecido uma boutique Xabanu. A tricolor que ostentava o leão dourado, a bandeira do mais poderoso país muçulmano, era assim uma rotineira e amiga visitante do porto da então denominada Baía do Espírito Santo.
Na capital de Moçambique a presença maometana era importante, abundando gentes vindas do antigo Raj britânico, assim como naturais de famílias há muito islamizadas, oriundas da zona norte e centro de Moçambique e de toda a suavemente sinuosa costa que ia de Inhambane até à Quíloa, Mombaça ou Melinde do Ibn Majid. Lojas de rua espalhavam-se por toda a cidade e arredores, também pontilhando as estradas que conduziam ao interior do território, por vezes servindo como vitais pontos de abastecimento das populações nas pequenas vilas e cidadezinhas que como na Terra da Boa Gente, mostravam a forte presença dos seguidores de Maomé.
A velha mesquita da Rua Salazar, hoje muito alterada por um mastodôntico acrescento betonado
Sempre fascinado pelo Oriente, o meu pai tinha uma imensidão de amigos que eram então entre nós designados de maometanos. Estávamos ainda muito longe dos tempos em que o termo muçulmano erroneamente pareceu querer dizer algo de diferente, logo evoluindo para o islamita que hoje conota um certo programa político perturbador das mentes e ameaçador da tranquilidade dos espíritos e de uma estabilidade internacional historicamente sempre efémera e entrecortada por longos períodos de conflito. Conhecendo-os a todos pelo nome próprio, entretinha-se com conversas acerca das novidades recentemente chegadas dos orientes, sem cuidar muito acerca da verdadeira proveniência dos artigos, fossem eles indianos, paquistaneses, cingaleses, de Zanzibar ou até das longínquas Java, Filipinas, China ou Japão. Aos poucos a nossa casa foi-se compondo com mesinhas de apoio, canapés e orelhudas cadeiras de descanso, esculpidas numa madeira escurecida onde abundavam motivos vegetalistas e ocasionalmente, uma cabeça de besta, fosse ela um leão, tigre ou aquilo que melhor imaginássemos. Muitas vezes almoçávamos em restaurantes indianos e em casa comíamos em louças chinesas. Nos dias especiais, saía do móvel inglês de vidrinhos o serviço de Satsuma pleno de dourados foscos e decorado com aparentemente severas figuras que passavam a vigiar-nos de rompante, logo que rapávamos a derradeira garfada. Nos sofás e pelo chão espahavam-se almofadas com os tons das especiarias e sobre os móveis e mesas, vidros, jarras e caixas de metal com embutidos, lampadários. Nas zonas de acesso à casa, pendurávamos aquilo que então designávamos de tling-tlings, os espanta-espíritos anunciadores de boas brisas em dias de inclemente fornalha. À mesa, as iguarias indianas confundiam-nos quanto à origem religiosa de quem as tinha confeccionado, fossem eles hindus, fervorosos cristãos goeses - muitos deles recentemente chegados a Moçambique após os acontecimentos de 1961 - ou maometanos. Aos domingos, ao infalível arroz de amêijoas cozinhado pela minha mãe, somavam-se os bajis, chamuças de vários recheios, balchões, o sarapatel, a dulcíssima bebinka e os caris encomendados a senhoras da Avenida Afonso de Albuquerque, empanturrando os sempre imprevistos convidados que como era hábito na desaparecida Lourenço Marques, apareciam sem aviso. Sempre chegava alguém com mais uma pequena prenda, fosse ela uma caixinha de incenso, um belo corte para um sari, ou uma écharpe de berrantes riscas com que a minha mãe, aproveitando a fase hippie que afinal por aquelas paragens há muito existia e estava à venda na Baixa e nos mercados, logo acrescentava à sua colecção de pequenas vaidades. As senhoras iam passando por várias fases quanto às preferências da moda, buscando nas lojas dos indianos as pulseiras de vidros multicolores, alternando-as com outras de latão gravado ou então, noutra combinação convencionada, braceletes de madeira com incrustações de madrepérola, marfim ou metais onde a prata era sempre a primeira escolha. Eram extraordinárias, essas pratarias adorna braços. Finamente lavradas, exibiam turquesas, ágatas ou onix, fazendo subir a parada na demanda das bijutarias provenientes da zona do Golfo, também fornecedor de cintos, cinturões e malas de cabedal e camurça, franjadas e pródigas de aplicações metálicas.
Em muitos sábados acompanhei os meus pais naquele vasculhar de lojinhas do bazar da Av. da República - a D. Carlos I dos tempos dos meus bisavós e trisavós -, dali trazendo saquinhos com coloridas especiarias - ou vítreas pedrinhas - que invariavelmente iam enchendo alguns velhos frascos de pharmácia, relíquias de vidro grosso, onde a tampa com topo em forma de oito deitado, era por si uma pequena obra de arte. Esses frascos decoravam prateleiras ou móveis de estilo, sendo bem cheios com camadas dessas especiarias que passavam a formar uma zebra multicolor alternando o amarelo açafrão com o azul cobalto, os vários vermelhos, laranjas, cores de terra e o verde pistacho. Nem a mesa baixa comprada na Pandora, de armação metálica e tampo de mármore alaranjado, escapou a um desses vidros de drogas. Tal como surgira aos olhos do Gama e da sua espantada marinhagem, a Índia, fosse ela a hindu ou muçulmana - ou até budista, tanto fazia -, era para todos nós capaz de produzir fosse o que fosse, numa mescla de refinamento pontilhado por aquilo que aos olhos dos europeus mais teimosos, parecia ser sumamente kitsch. Quantos Ganesh ou Shivas de vidro translúcido vi eu espalhados montra após montra, verdes, azuis, cor de rosa, ou simplesmente transparentes? Sem sequer imaginarmos a absurda invasão de talhas de plástico dourado do início do século XXI, aqueles santíssimos vidros eram objectos votivos considerados como muito pirosos e inapreciáveis. Para cúmulo, estavam por todo o lado como testemunhos mudos da existência de uma sociedade de muitos e variados seguidores de não menos diversos deuses ou crenças que ostensivamente pareciam contradizer os exaltados textos que narravam a História de Portugal nos livros da primária. Eram uma decorativa, mas dispensável vulgaridade.
A minha loja preferida situava-se lá para as bandas do Alto Maé, talvez nas imediações da Pinheiro Chagas - ou seria na 24 de Julho? - e pertencia a mais um daqueles indianos do comércio. O termo indiano - monhé era um evitável termo depreciativo atirado aos reconhecidamente muçulmanos - englobava muita e diversa gente, por vezes estipulada feroz inimiga entre si, após a revoada das independências saídas da antiga Índia britânica. Uns eram paquistaneses ocidentais, enquanto outros eram paquistaneses orientais - o actual Bangla Desh -, entrando também na mesma conta os cingaleses e aqueles provenientes daquele termo geográfico politicamente transfigurado - à semelhança da Itália e da Alemanha da segunda metade do século XIX - em União Indiana.
Neste caso concreto, o homem era de Carachi e possuía um estabelecimento bem cuidado, todo forrado de madeiras e desordenadamente organizado de forma a provocar a aturada busca e revista por quem o visitava. Sempre acompanhado por um macaquinho de estimação que ia espalhando cascas de amendoim loja fora, jamais lhe vi outro traje senão aquele próprio do seu país. Atrás do balcão-montra, existia uma porta que dava acesso ao armazém e talvez, à sua própria residência. Durante anos, sobre esse reservado acesso permaneceram em vigilância, três grandes fotografias envidraçadas e emolduradas em madeira pintada a purpurina ouro-velho. Ao centro e de pé, estava a rainha Isabel II em roupagens da coroação, uma foto colorida e já um tanto empastelada após quase duas décadas de reinado. À sua esquerda, o herói da independência paquistanesa, Muhammad Ali Jinnah, uma quase perfeita correspondência física em versão exótica com Oliveira Salazar, colocado à direita da soberana britânica. Duas fotografias a preto e branco, realçando a peça central colorida e abrilhantada pela exibição da cintilante Regalia guardada a sete chaves na Torre de Londres.
Este homem cujo nome esqueci, tinha um inato bom gosto, sabendo o que as suas clientes procuravam. Os tecidos eram cuidadosamente escolhidos, a bijutaria parecia saída das vitrinas de uma Cartier subitamente convertida em fornecedora de hippies, irmanando pulseiras de vidro colorido com outras metálicas, de marfim, osso, entretecidas fibras de coco, colares, cintos de prata torcida remetendo-nos para o nosso monumental estilo Manuelino.
Enquanto ia respondendo ao meu pai sempre ansioso por encontrar mais uma cadeira indiana de balouço, uma mesa redonda de três pernas decoradas com cabeças de elefante ou biombos para futuro restauro, ia languçando aquilo que as mulheres remexiam:
- Áne Marí, Áne Marí, tem sari novo lindo, sari chegou de Páquitã semana passada, bonito para calçon curte!
- Aaaaaaah, não sei, tenho pernas magras...
- Áne Marí tem pérne fine, tem pérne fine, más ande! Compra-compra, ser chibante.
Aquele "tem pérne fine más ande!" ficou para sempre, pois ao longo de décadas ouvi a minha mãe contar e recontar o episódio, principalmente por naquele preciso momento dos finais de sessenta, o mundo subitamente ter passado a interessar-se pelas "pérnes fines" e isto, até aos nossos dias.
Naquele outro plano da minha existência, os devotos amigos maometanos não faziam muito caso daquilo que um dia surgiriam como temíveis fatwas, fazendo então amontoar nas suas lojas ídolos das mais variadas origens, sabendo serem os portugueses ávidos compradores de gordos budas chineses ou aqueles outros oriundos do Sião, sempre tão esbeltos que pareciam entidades em tudo opostas às provenientes do Império do Meio. A estes somavam-se objectos decorativos Made in India, seguindo a já passada mas sempre bem aceite e exaustivamente copiada Art Déco, organizando-se pelas salas autênticos zoos com canzoada pernalta, leões, tigres, elefantes, leopardos, equídeos, gatos e passarada fundida em latão, bronze ou num modesto ferro patinado a capricho. Negócio era negócio. Por vezes lá soava no nosso telefone, o 29292 da R. Dr. J. Serrão nº 40 r/c e do outro lado da linha, num inconfundível sotaque asiático anunciador de novidades, alguém perguntava: poder falar com Vítor? Claro que podia, era uma imperdível oportunidade para mais umas bisbilhotices abrindo caixas e remexendo stocks acabados de chegar da alfândega do porto.
Por vezes, em tempo de férias ou após o horário de trabalho, o meu pai levava-me pela mão até à Rua Salazar, hoje crismada de Rua da Mesquita, situada entre a Av. da República e a R. Consiglieri Pedroso, bem perto da Praça Mac Mahon. Dos pés à cabeça vestido com roupa de algodão produzida em Macau, ali entrava livremente, deixando à porta os chinelos de borracha, aquilo que hoje designamos de havaianas, naquela época sem marcas a clamarem por surfistas ou bandeiras anunciando o país do samba. Em meios-dias tórridos, a sala de orações era fresca, proporcionando-me um imenso gozo espojar-me sobre os tapetes com arabescos. De barriga para o ar, ficava a admirar o grande lustre de cristal, aquilo que parecia uma interpretação orientalizante dos modelos expostos nos salões dourados por um Grand Siècle há muito passado mas ainda simbólico de uma Europa maior.
No final da década de sessenta, a expensas do Aga Khan ergueu-se o imponente centro ismaelita de Lourenço Marques. Orgulhosos por aquele grandioso testemunho da sua importância social e empresarial, os seguidores do príncipe Karim eram pródigos em convites de visita ao seu edifício, não fazendo destrinças religiosas e também assim confirmando aquilo que era normal na cidade. Nas salas de aula tínhamos colegas a quem jamais perguntávamos acerca da frequência ou não, de templo. Para nós, o João Carlos Leal Bento era o espanhol, pois a sua mãe era castelhana, logo católico. O Páris Zagrephos era o grego presumivelmente frequentador do Ateneu na Av. Pinheiro Chagas e pelo B.I. tão português como o Abdul de Goa - ou seria de Carachi? -, o Cheng de Macau, ou o Matavele da zona de Gaza. Uns eram tal como eu, brancos de segunda, os tais Velhos Colonos que ostentavam esse título como se fosse um ancestral ducado concedido na época das descobertas, Outros, brancos de primeira, iam variando de sotaque em sotaque, recém-chegados da longínqua Metrópole, filhos de militares ou de casais que evitando as Franças do banlieus, julgavam para sempre eterna aquela África Oriental Portuguesa.
Um dia, um telefonema feito a partir de um gabinete do Centro Aga Khan, para sempre mudou as nossas vidas. O amigo ismaelita convenceu o Vítor a levar a família para bem longe, pois aquilo que Lisboa prometia era apenas um arrazoado de miragens alija-responsabilidades:
- Vítor, contacta discretamente toda a tua família e os amigos de maior confiança que por sua vez, devem fazer o mesmo. Vão-se embora, muitos de nós fazemos o mesmo neste momento, estamos a empacotar. Não percam mais tempo, vai ser mau, muito mau.
Estávamos no início de Junho de 1974. Somando-se ao petróleo do Xá que desafiara os nossos comuns aliados e às cores e sabores oferecidos pela generosa costa oriental africana e pelas Índias, a então muito leal amizade dos maometanos evitou-nos o testemunhar de um imenso rol de indignidades, fossem elas protagonizadas pela nossa própria gente uniformizada ou à paisana, ou por aqueles que ébrios por uma vitória que lhes foi graciosamente outorgada de facto, para sempre alteraram aquilo que para nós era a ordem normal no nosso pequeno mundo.
Mas será que estes islamitas de indesejável noticiário novo século, novos terrores, terão mesmo algo em comum com os nossos maometanos do outro tempo?
Era o nosso último ano na casa da Avenida Princesa Patrícia. Os meus pais tinham arrendado outra não muito distante, sensivelmente mais espaçosa e próxima da zona das escolas preparatórias e dos liceus de Lourenço Marques. Acabada a quarta classe, a Escola Preparatória General Machado ficava lá para as bandas da 24 de Julho e a Rua Dr. J. Serrão possibilitava a ida e vinda a pé.
Estávamos muito longe dos dias em que os miúdos se interessavam por pequenos envelopes propiciadores de reforços das colecções de jogos online e vivia-se numa época em que um presente dado pelos pais já era coisa de solene importância, com alguma sorte a ele se juntando outros oferecidos pelos avós, tios, primos e amigos, num pequeno simulacro da abundância destes nossos dias em que a bonecada recebida vai enchendo caixotes e caixotes bem depressa esquecidos nas arrecadações.
Aquele Natal de 1969 prometia. Logo no início de Dezembro, tínhamos visto o nosso pai chegar com um enorme embrulho, uma caixa de cartão embrulhada num papel lustroso onde sorridentes Pais Natal, renas e trenós em paisagens escandinavas, anunciavam algo que apenas a nossa imaginação poderia conceber. Dia após dia rondámos aquela caixa proveniente da Modelândia, parecendo ela cada vez maior. Procurando descolar um bocadinho de papel para termos uma ideia do que ali vinha, foi com decepção que verificámos a impossibilidade do assalto antes de tempo. Decerto avisada pelo nosso sempre precavido pai, a lojista fizera a coisa a preceito e era impossível a nossa já programada cara de falsa surpresa na noite da consoada.
Chegado o grande dia, esperámos ansiosamente pelo rápido cair da noite que como todos os anos, seria longa. Após uma refeição ligeira, lá nos encaminhámos para a Igreja de Santo António da Polana onde cantávamos no grupo coral. Não cantava grande coisa e a minha mãe costumava dizer que em vez de mais uma voz no coral, eu faria melhor figura num curral. Na noite de Natal, o Padre Arnaldo Taveira Araújo tornava-se mais exigente, esfusiante de alegria pela casa cheia. Após o alegadamente brigantino Adeste Fideles, a Missa do Galo culminava sempre com o exaltante Aleluia de Händel, por todos aguardado na certeza do entusiasmo dos miúdos que naquele oratório sabiam conseguir comover todos os que numa igreja da Polana a abarrotar, cumpriam os últimos rituais antes do regresso a casa para a grande refeição natalícia e abertura de prendas.
Tínhamos três árvores. A minha era verde, pequena e com ramagens de papier mâché. Datava de 1934 e fora comprada pela minha avó para o primeiro Natal do nosso pai. Ainda existe, todos os anos é enfeitada de forma a disfarçar a constante perda de papel e coloco-a ao lado de outra, maior e muito mais recente. As gambiarras de lampiões brancos com janelas translúcidas e polvilhadas de pequenas notas de cor, já foram várias vezes desmontadas e regressam sempre à operacionalidade, aproveitando-se novas fitas de luzinhas disponíveis em qualquer loja chinesa. A árvore do Miguel era alta, prateada e as suas gambiarras consistiam em pequenos cachos de uvas vermelhas e transparentes, sob as quais brilhavam as lâmpadas cujo novo comando por mim há uns anos adaptado, permite os pisca-pisca que passaram a adornar a minha árvore grande. A da Ângela, de tamanho médio, era branca e a iluminação consistia - também ainda a conservo - por grandes bolas multicolores, dentro das quais as gambiarras vão alternadamente mostrando o azul, o verde, o amarelo, o rosa e o lilás. Cada um tinha a sua árvore, mais um exotismo a juntar a uma consoada de canícula austral, onde dificilmente a tradição poderia fazer vingar bacalhoadas com todos.
Finalmente chegara a hora e aquele cartãozinho indicando Nuno e Miguel como os destinatários do presente, foi removido do canto da caixa. Numa espécie de propositada fita, mostrámos algum vagar no cuidadoso desembrulhar, embora a ânsia de dias fosse há muito evidente para os nossos pais e avós. Sabiam eles estarmos em plena representação de um ilusório comedimento, logo desfeito quando boquiabertos deparámos com um lindo castelo Made in England que em três tempos montámos. É mesmo este que as imagens mostram. Ao fim de poucos dias foi nacionalizado e na porta de armas surgiu o escudo português, ocultando algo que há muito esqueci. Foi durante alguns anos o centro das nossas brincadeiras e até há bem pouco tempo existiram cavaleiros cruzados, uma figura de Ricardo Coração de Leão, peões e cavaleiros mouros, gente de cota de malha e de armadura. Os meus sobrinhos encarregaram-se das mutilações e degolas e se sobreviveram ao vendaval de 1974 e a mais uns trinta e poucos anos de mudanças de casa e de vida, não resistiram a esta época em que os brinquedos são algo facilmente substituível.
Nesta noite de 25 de Dezembro de 2014, aqui fica o precioso castelo branco de 1969. Praticamente intacto, apenas necessita da minha paciência para em casa do João Diogo, do Nuno Miguel e da Filipa, vasculhar os caixotes onde estará esquecida a ponte que lhe dá acesso. Foram avisados, um dia destes lá irei em demanda.
Vale a pena a leitura deste texto do Público. Aqui fica na íntegra, pois o jornal adquiriu o hábito de limitar o acesso online. Razões económicas, é o que se diz.
Além de alguns testemunhos que confirmam tudo aquilo que há muito sabemos - os tristes episódios protagonizados por Almeida Santos, por exemplo -, finalmente assumem-se decisões que hoje seriam consideradas como deliberados crimes: a deslocação e dispersão forçada de populações, o suprimir da cidadania nacional a uma enorme quantidade de pessoas que até ao momento dela legalmente auferiam - imaginem o que para nós, de 4ª geração, significou a "prova" de sermos portugueses! -, a entrega forçada de bens - o caso dos diamantes de particulares - e claro está, o escabroso abandono de metade do exército português que combateu em África. As Forças Armadas colaboraram nesta indelével nódoa no seu historial e já é tempo de uma pública reparação. "Eram soldados pretos" e os novos senhores do poder acharam por bem deixá-los à vingança que se confirmou na execução de muitos milhares.
São apenas alguns aspectos a considerar entre muitos outros.
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"Chegaram em barcos e aviões num movimento que durou poucos meses. Ficaram conhecidos como os “retornados”. É meio milhão de pessoas que ajudaram a construir a democracia e o Estado social e cuja integração na metrópole é uma história de sucesso que a Revista 2 agora conta.
Meio milhão de portugueses foram integrados na sociedade portuguesa durante o período que vai do Verão de 1974 ao Verão de 1975, fruto da descolonização imposta pelo fim da ditadura do Estado Novo. É um movimento de integração populacional único que trouxe uma massa humana qualificada que contribuiu de forma decisiva para a construção do Estado democrático. Para a história ficaram conhecidos como os “retornados”. Na realidade, são a última geração de portugueses que viveram e cresceram na África colonial portuguesa.
“É um dos momentos mais extraordinários da história portuguesa do século passado, a capacidade de integrar 500 mil pessoas que chegam em poucos meses”, defende o empresário Alexandre Relvas, nascido em Luanda, para quem o movimento de integração dos retornados “correu tão bem que não é suficientemente valorizado, a sociedade portuguesa não valoriza essa capacidade enorme que teve”. Também o sociólogo Rui Pena Pires, nascido no Huambo (antiga Nova Lisboa), e autor da única grande investigação sobre o tema (Migrações e Integração. Teoria e Aplicações à Sociedade Portuguesa, Celta, 2003), sublinha que houve uma “boa integração”, uma vez que “não há marcas que se percebam”.
O sucesso de integração é identificado por Alexandre Relvas com a “extraordinária generosidade” da sociedade portuguesa e com o papel igualmente “extraordinário” que o Estado então desempenhou. Mas também a capacidade de iniciativa e de luta do conjunto de portugueses que regressaram e que trouxeram o conhecimento e a mais-valia de serem os últimos colonos portugueses em África.
“Um dos aspectos que eu valorizo fortemente é ter nascido em África, ser um dos últimos filhos do Império português e ter uma consciência forte de que isso tem consequências, que implica responsabilidades na forma como olho para o que foram os 500 anos de presença de Portugal em África”, assume Alexandre Relvas, frisando: “Somos os últimos portugueses do Império. A nossa memória é a última memória que existe do Império em África.”
Não questionando a justeza da descolonização, o empresário de espectáculo e de comunicação social Luís Montez, nascido em Luanda, sustenta que a descolonização e o regresso dos portugueses à metrópole foi um processo “duro e não foi muito justo”. Concretizando sobre Angola, considera que a descolonização devia ter sido feita “para lá ficar melhor, mas lá ficou em guerra”. Não esquecendo que “a história é o que é”, conclui: “Acho bem a independência, mas as coisas deviam ter sido feitas com mais método.”
Protagonista do poder do Estado na descolonização, António de Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial do I ao IV Governos Provisórios, de 16 de Maio de 1974 a 8 de Agosto de 1975, partilha da visão de sucesso em relação à forma como foram integrados na metrópole os portugueses vindos do então Ultramar, mas reconhece que “implicou muito sofrimento”. E sublinha que “a dificuldade criada pelos 500 mil portugueses foi um problema tão complicado para os governos dessa altura que diria que, tendo em conta o grau dessa dificuldade, o resultado final não esteve longe de ser o sucesso possível”. Mas reconhece que “é claro que foi um drama de todo o tamanho”, pois “as pessoas perderam tudo o que lá tinham, alguns eram bastante abastados”.
Sendo também um retornado de Moçambique, o ex-governante adverte que, ao ser ministro responsável pela tutela do processo e ao “não ter podido garantir” aos retornados “o direito ao que lá tinham”, tal como “nenhum outro Estado colonial garantiu”, ele mesmo tomou “a atitude de não procurar salvar nada” do que de seu deixou em Moçambique.
A excepcionalidade do sucesso da integração é um facto que tem na sua origem uma multiplicidade de causas, algumas das quais fruto dos portugueses da metrópole, outros dos próprios retornados, afirma Pena Pires, sublinhando ainda que esse sucesso foi orientado e construído pelo Estado. Foi decisiva a atitude do Governo para a assimilação daquela que é a maior deslocação de populações na Europa no século XX. “Mesmo no pós-II Guerra Mundial, o repatriamento é de 2% a 3%, nenhum foi percentualmente tão grande”, lembra Pena Pires, exemplificando que “o Reino Unido tinha um Império maior e teve 500 mil também, sendo que a maioria foi para os Estados Unidos”, enquanto “em Portugal, poucos foram para o Brasil e os que foram, na sua maioria, fazem-no com carácter transitório, para depois virem para cá”.
Fazendo a comparação com “o caso mais parecido”, que é, nos anos 60 do século XX, o da integração dos pieds-noirs, os colonos franceses que regressaram a França após a descolonização da Argélia e outras colónias francófonas, sob o Governo de De Gaulle, Pena Pires salienta que há diferenças fulcrais: “A sociedade francesa estava estabilizada, por isso, surgem sindicatos e o movimento pied-noir.”
Ora foi a noção de que os pieds-noirs eram em si um movimento de segregação que se prolongou e dificultou a assimilação que em Portugal houve cuidado para não repetir erros. “O comissário para os Desalojados pôs como condição ir a França ver o processo dos pieds-noirs” e os responsáveis com quem se encontrou “aconselharam a dispersão e assumiram que um erro francês tinha sido a concentração em Marselha” das populações coloniais vindas da Argélia, refere Pena Pires.
Outra decisão que teve como referência os pieds-noirs foi a questão das indemnizações. Em Portugal foram poucos os “tinhas”, ou seja, aqueles que lamentavam o que tinham perdido (recorrendo à expressão “eu tinha”) — “eram minoritários e pejorativamente designados” pelos próprios retornados. “Em França, as indemnizações são centrais, cá não se falou nisso” — uma atitude do Estado que “foi premeditada e inteligente, porque enquanto as pessoas estiverem direccionadas para o que perderam ficam ligadas a isso e não se identificam com o resto”, afirma o sociólogo.
Houve assim uma política de integração dirigida pelo Governo que passou por medidas legislativas. Pena Pires refere que “Almeida Santos fez as leis que deram ao retornado um estatuto legal”. À cabeça refere a lei da nacionalidade, que anteriormente e de acordo com as concepções do Estado Novo previa que “todos os nascidos em solo português eram portugueses”. A decisão de Almeida Santos é a de fechar o acesso à condição de português. Para o conseguir, retira o direito à “nacionalidade portuguesa a muitos dos nascidos nas colónias antes da independência, se não tivessem ascendentes até à segunda geração no continente. É isso que distingue os retornados dos imigrantes que vieram então e depois”.
Paula Teixeira da Cruz, nascida em Luanda, critica a opção restritiva da lei da nacionalidade. “Deveria haver liberdade de opção, não gosto de restrições de liberdade”, diz a actual ministra da Justiça, que adverte: “Ainda ontem [entrevista feita a 26 de Fevereiro] resolvi questões relacionadas com a nacionalidade de uma senhora, e há muitas por resolver.” Não se revendo no argumento de que haveria mais de um milhão de pessoas para integrar, Paula Teixeira da Cruz afirma que “também se dizia que era impossível absorver 500 mil”. E lembra que muitos habitantes do Império colonial de origem africana vieram para Portugal continental sem verem reconhecido o seu direito a serem portugueses: “Houve pessoas que ficaram prejudicadas. Havia essa responsabilidade moral. Quando Portugal colonizou, não perguntou se podia entrar.”
Almeida Santos assume que a decisão foi deliberada. “Era tudo português. Mário Soares e Vasco Gonçalves pediram-me uma lei generosa. Respondi: ‘Não faço.’” E argumenta: “Só tinha nacionalidade quem pelo menos era bisneto de português pelo nascimento. Senão o país ia ao fundo.”
Tomou como referência o caso inglês. “A lei da nacionalidade inglesa [quando da independência da Índia em 1947] foi generosa de mais e Londres tornou-se a capital mais indiana”, o que fez com que a lei fosse revogada pouco depois. A estratégia em Portugal foi, segundo o seu autor, a de dar nacionalidade “só a alguns e evitar que viessem todos”, pois “metade do Exército, por exemplo, era africano, e esses soldados queriam ficar com a identidade portuguesa para não serem perseguidos por terem sido do Exército português”. Os que vieram e não conseguiram provar que tinham ascendência na metrópole até à segunda geração ficaram, assim, como imigrantes.
O sucesso da integração é, segundo o antigo ministro, potenciado pela rapidez com que teve de ser feito. Uma rapidez que foi motivada pela descolonização negociada pelo Governo português com os movimentos de libertação das então colónias, e mediante a dificuldade de garantir novas incorporação de novos militares.
É essa rapidez em sair de África que é ainda hoje questionada. Alexandre Relvas afirma mesmo que “sem pensar em pôr em causa a independência” dos novos Países de Língua Oficial Portuguesa, o que mais questiona na descolonização “é que ela devia ter sido tratada de outra forma política, não se pensou na história de 500 anos”. E sublinha: “Não me vejo circunstancialmente lá, os meus avós foram para lá, os meus pais nasceram lá. As negociações deviam ter tido essa noção histórica. As Forças Armadas, com enorme responsabilidade, não estiveram à altura. Foi a despachar o mais rapidamente possível.”
Almeida Santos procura explicar os motivos da urgência em descolonizar. “Sempre compreendi as críticas fortes à concreta descolonização conseguida, mas quem faz essas críticas nem sempre teve conhecimento dos factores que dificultaram e sujeitaram a uma enorme pressão temporal a necessidade de descolonizar depressa.”
E sublinha que “a guerra tinha durado dez anos em três frentes. Morreu muita gente e muita também ficou estropiada. Isso imprimiu uma urgência à necessidade de fazer a paz”. Até porque “o Exército português, que nunca compreendeu muito bem as causas daquela guerra, a partir do 25 de Abril passou a defender e a pressionar a urgência da paz”. Para concluir: “Daí que sempre tenho compreendido as críticas fortes à descolonização, incluindo à minha participação nela, mas nunca essas críticas me criaram um problema de consciência.”
Para muitos que fizeram parte da descolonização, foi um processo feito à pressa e de forma leviana. Mas também reconhecem que foi, de facto, uma história de sucesso e um processo único.
Muito desse sucesso deveu-se à forma como foi feita a monotorização pelo Estado. Uma das principais ferramentas foi a integração de 45 mil funcionários públicos coloniais na administração do Estado do Portugal democrático, através do “quadro geral e adidos”.
Mas também houve por vezes “soluções surpreendentes” e pouco institucionais. Refere Pena Pires que os portugueses “só podiam trazer 15 contos”, pelo que, em Angola, “muitos compraram diamantes e trouxeram”. A certa altura, “Lisboa estava em risco de ser considerada um centro de venda clandestina de diamantes, e Almeida Santos, por decreto, deu dois meses para os diamantes serem entregues na Sociedade Portuguesa de Diamantes”.
Almeida Santos reconhece que a gestão governativa do processo de descolonização e de retorno dos portugueses foi feita de uma forma que potenciasse a integração e beneficiasse o desenvolvimento económico de Portugal. Explica, por exemplo, que a decisão de colocar os retornados que não tinham família nem habitação em hotéis teve que ver com a dinamização económica: “Nessa altura, os hotéis estavam vazios, o turismo paralisou com a revolução. Aproveitei os hotéis e pensões para alojar as pessoas.”
A monitorização foi feita pelo então criado órgão de supervisão, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN). “Criámos um organismo destinado a apoiar economicamente os retornados e esse apoio, que não foi tão significativo como desejávamos, não deixou de ter algum significado”, diz Almeida Santos. O antigo ministro sublinha que, “de um modo geral, os retornados regressaram com uma experiência económica talvez superior à média dos portugueses do continente, de tal maneira que a partir de certo momento foram tantas as novas unidades empresariais, algumas delas na área do comércio, da agricultura e da pecuária e da hospedagem, que passou a haver produção a mais e consumo a menos para algumas espécies pecuárias, como o peru”.
Houve também medidas de discriminação positiva, como foi o crédito conhecido pelo nome da comissão que o geria, o CIFRE, “um crédito especial para retornados, que atingiu 18 milhões de contos” e que provinha de “doações internacionais do Governo sueco”. Um crédito que apesar de tudo não favorecia especialmente os beneficiários, já que tinham de apresentar projectos sólidos e viáveis, pois “os projectos eram aprovados pelos bancos privados através dos quais o crédito era distribuído”.
Outra preocupação que é identificável no comportamento do Governo de então é a de que as medidas contribuíssem para não criar irritação nas populações metropolitanas. “Foi pequena a reacção, porque a ajuda do Estado foi pouca e todos tinham um retornado na família”, explica Pena Pires. Por seu lado, Almeida Santos salienta que “o povo português do continente foi heróico na atitude com que se solidarizou com os familiares ou simples conhecidos regressados das ex-colónias praticamente de mãos vazias.”
O que é facto é que há um contraste entre o que é a memória do sofrimento pessoal e o reconhecimento à distância histórica do sucesso global da integração. O basquetebolista Carlos Lisboa, nascido em 1958, na Cidade da Praia, em Cabo Verde, e que, em 1961, foi para Moçambique, lembra que “a palavra retornado era, na altura, demasiado agressiva”, e sublinha que “houve famílias que passaram maus bocados, principalmente as que vieram de Angola a fugir à guerra”, além de que “havia famílias que tinham mais dificuldades porque não tinham ligações profissionais a entidades estatais”.
Por muito que seja o sucesso global da integração dos retornados, de acordo com os entrevistados neste trabalho e de acordo com o estudo académico de Pena Pires, o lado negativo do processo de descolonização e o que implicou na ruptura da vida de meio milhão de pessoas é lembrado pelos que a viveram. A cineasta Margarida Cardoso, filha do oficial da Força Aérea Adelino Cardoso, que em 1965 foi colocado em Moçambique, sublinha que a descolonização representou “uma revolução e que houve pessoas que deixaram a sua vida”. Estas “criaram um movimento bom na sociedade para Portugal, conseguiram superar dificuldades e fizeram negócios, reconstruíram a vida”, frisa, mas adverte que “isso não faz esquecer que as pessoas deixaram lá a sua vida de uma forma injusta. Para Portugal, foi bom mas à custa de muito sofrimento das pessoas”.
Margarida Cardoso conclui sobre o lado mais dramático e pessoal da descolonização: “Não sou nostálgica, mas o empurrar as coisas, ver as nossas mobílias a ir para os barcos, marca. Pensaram que iam ter um lugar na sociedade, que não tiveram. A História é assim, é má e injusta. Há um trauma interno que é hereditário, que passa de pais para filhos. É uma mágoa que não passa, que não está resolvida.”
Uma experiência traumática que em muitos casos deixou marcas para a vida. “Leva a que muitos pensem que isto não é a terra deles, há um desprendimento, ainda que com percepções diversas. Eu, emocionalmente, continuo a ter uma coisa difusa, não era de lá, nem sou daqui”, confessa a cineasta.
O sentimento de não pertença é partilhado igualmente pelo escritor Valter Hugo Mãe, nascido em Saurimo (antiga Henrique de Carvalho), na Lunda Sul, no Norte de Angola. “Sinceramente, genuinamente, tenho dificuldade em lidar com os que desprezam a magnificência de África, mas também com aqueles que dizem a palavra África e choram e têm associações e objectos. Estou entre as duas coisas. Tenho dificuldade em dizer que não sou angolano, mas não posso falsear quem sou, não posso de repente ser mais angolano do que sou”, reconhece.
O escritor não hesita mesmo em assumir como a sua condição de retornado foi pessoalmente traumática. O pai foi um antigo militar que ficou em Angola como funcionário do Banco Nacional Ultramarino. Estava de licença, em Lisboa, quando se deu o 25 de Abril. “Ficámos cá, perdemos todas as coisas, a relação saudosista é feita pelos meus pais de forma magoada.” E explica: “Cresci com a percepção de que era nascido em África, mas nada em nossa casa contava aquela história. Percebi que era retornado com o preconceito em relação a mim. Por exemplo, uma empregada na escola primária dizia que os meus pais tinham vindo ocupar empregos e dava-me menos leite. De princípio, pensei que fosse eu um miúdo esquisito. Ela dizia que as mulheres em Angola tinham os filhos como as galinhas, punham ovos. E chamavam-me preto. Conscientemente, não tinha visto uma pessoa africana. Quando tinha oito anos, um miúdo disse-me que a tia tinha vindo de Angola e que o filho era escuro. Eu perguntei à minha mãe se ia escurecer, porque se escurecesse podia ser melhor.”
Esta discriminação em relação aos retornados é salientada por Paula Teixeira da Cruz. Embora garanta não ter tido “nenhuma dificuldade de integração”, pois a família em Luanda “periodicamente discutia o regresso” — que foi preparado previamente pelo pai”, permitindo que a sua família não passasse “por um processo de reconstrução material” —, a ministra assume que viveu “uma reconstrução emocional muito difícil”.
E afirma que acompanhou “muitos” processos complicados de sofrimento quando fez voluntariado, no Campo do Inatel, na Costa de Caparica, um dos campos que acolheu retornados. “Houve pessoas em campos, houve pessoas que foram para o interior e desenvolveram projectos, não podemos esquecer o sofrimento de cada um, foi um mudar completo de vida, um sofrimento cultural, um sofrimento de perda, foi uma experiência emocionalmente traumática.” A que se somou ainda “um anátema, que era o retornado que, por natureza, tinha de ser fascista”.
O biólogo e especialista internacional em morcegos Jorge Palmeirim nasceu na Guiné e viveu com a família em Moçambique e em Angola. Em 1974 veio para se instalar com a família, num total de sete pessoas, numa tenda de campismo gigante num terreno no Carrasqueiro, em Sesimbra, que era de uma avó. Também ele recorda que “havia uma tensão muito grande entre retornados e os portugueses” da metrópole e “havia a sensação de ter a vida desmoronada”. Este cientista sustenta mesmo que se mostrou a “face de uma esquerda cega, as pessoas pensavam que os retornados eram coloniais e fascistas”, enquanto “os retornados viam a sociedade portuguesa como responsável pelo desmoronamento das suas vidas”. Exemplificando: “Eu, nessa altura, andava com um emblema que dizia Angola. Agradava-me irritar as pessoas, era uma afirmação da minha identidade.”
Jorge Palmerim defende que “a maior parte dos retornados, na primeira fase, se deu mal, mas que depois se integraram”. E também ele salienta que “Portugal tem uma capacidade de integração fantástica, ao contrário dos pieds-noirs em França que levaram décadas a adaptar-se”. Em Portugal, sublinha, “três ou quatro anos depois, os retornados tinham conseguido integrar-se, o que é quase um milagre, integrou-se meio milhão de pessoas, também porque essas pessoas foram capazes de construir as suas vidas, abriram lojas, fizeram negócios, foram para as suas terras”.
O jornalista Emídio Rangel, nascido em Lobango (antiga Sá da Bandeira), em Angola, afirma que “a integração é uma história de sucesso”, porque, por exemplo em Angola, havia “uma aprendizagem em que as pessoas que tivessem capacidade se evidenciavam, conseguiam ter sucesso”. Por outro lado, salienta que com a revolução houve “uma paralisação da actividade económica” na metrópole que “beneficiou com a chegada de elementos que na região A ou na região B se propunham fazer iniciativas com sucesso”. Essa atitude “criou um clima que ajudou o país a desenvolver-se”, afirma, recordando que essa realidade foi divulgada, nos anos 1980, pelo “trabalho jornalístico do Fernando Dacosta n’O Jornal, que mostrou como as regiões se foram modificando por acção dos retornados”.
A integração dos retornados “teve um impacto muito grande no interior, que estava paralisado”, diz Pena Pires, mas ela foi potenciada pelo contexto revolucionário: “Eles mudarem para um país em mudança, o que facilitou a integração.” Há então um espírito de recomeço que Paula Teixeira da Cruz sintetiza ao dizer: “Importa que para quase todos era preciso começar de novo, o ter de começar de novo obriga a ter de inventar um novo espaço de intervenção. Lembro-me de ver nascer gelatarias abertas por retornados pelo país. Foi um movimento que renovou o tecido técnico e económico.”
Um dos exemplos desse espírito de iniciativa é a vivência da família de Tomaz Morais, presidente da Federação de Râguebi, seleccionador e treinador nacional de 2001 a 2010, campeão nacional e ibérico, nascido no Huambo (antiga Nova Lisboa). “Foi tudo muito rápido. O meu pai tinha uma posição forte na Fina, a empresa dos petróleos, e ele não podia sair de África. Nós estávamos no Lobito. Em 1975, a guerra pressiona e o meu pai começou a ser perseguido. Fugimos de um dia para o outro do Lobito para Luanda de traineira”, lembra, prosseguindo: “O meu pai foi à Bélgica, mas não conseguiu manter a situação na Fina, pois não estava disponível para voltar a Angola. Achou ofensiva essa exigência e deixou a Fina. Tentou o Brasil, não achou acolhedor. Veio para Portugal e com o meu tio Eduardo Salvação Barreto, que é pintor, abriu um take-away em 1976. O negócio envolveu a família. Todos tínhamos uma tarefa. Eu tinha seis anos e andava na rua a fazer recados. Era um projecto de sobrevivência.”
Muitas das pessoas que vieram contaram com a rede familiar de apoios ou com a solidariedade da sociedade, para além do Estado. “A capacidade extraordinária é do cidadão anónimo, como actualmente. É o avô, é o irmão, é o pai, é o tio, que dá uma mão, que dá um apoio financeiro, que ajuda a encontrar casa, que ajuda durante um período, e isso foi extraordinariamente marcante nesse tempo. E é tão extraordinário o que se passou que nem nós valorizamos, é como se fosse normal, é normal neste país ser-se solidário”, defende Alexandre Relvas.
E insiste: “Há uma coisa notável, a capacidade deste país de evoluir em termos sociais com a brutalidade com que é confrontado. A resposta que as pessoas dão ainda hoje ao desemprego, tal como na altura a forma como é assimilado meio milhão de portugueses, a capacidade de organizar as pontes aéreas, de instalar as pessoas em hotéis, que é uma capacidade do Estado, mas não só do Estado.”
É esse carácter de proximidade familiar e de solidariedade que é uma das razões do sucesso da integração dos retornados. Do meio milhar de portugueses que veio, “metade ficou na região que equivale hoje à Área Metropolitana de Lisboa”, e concentraram-se também bastante no Nordeste transmontano, explica Pena Pires. Apesar desta concentração tendencial, a “integração portuguesa é pulverizada”, porque a colonização tinha sido feita de “emigração recente” e assim “a maioria dos retornados vai para concelhos onde nasceram ou onde nasceram os pais ou os avós. Só os alentejanos não vão para a terra de origem e vão para Setúbal, que é para onde no século XX emigram os alentejanos”.
Outro factor decisivo foi a alta qualificação dos retornados. “No início da democratização, os retornados estavam em desvantagem quanto ao património, mas em vantagem nas qualificações”, afirma Pena Pires. “A ideia de que agora, pela primeira vez, há emigração muito qualificada não é verdade, as colónias eram o destino da emigração mais qualificada. Não era preciso mão-de-obra barata, havia isso lá, havia o colonialismo, por isso a população branca nas colónias era mais qualificada percentualmente do que na metrópole”, sublinha este sociólogo.
Do estudo que efectuou concluiu que, segundo os dados do Censos de 1981, “cerca um terço dos adultos com mais de 30 anos eram analfabetos”. No total da população de Portugal, os analfabetos eram 28,3%, enquanto 35,4% tinham a primária. Já os licenciados atingem 11% entre os retornados, mas apenas havia 2,3% de licenciados na população de origem metropolitana. Esta alta qualificação, em conjunto com a “convulsão política”, facilita que as pessoas que chegam aproveitem o facto de não haver “hierarquias estabilizadas” para ascenderem e se afirmarem socialmente.
Por outro lado, é esta população altamente qualificada, que está disponível e desejosa de se integrar, de encontrar o seu novo espaço, que permite “a expansão do Estado social, que foi facilitada pela vinda dos retornados altamente qualificados”, sustenta Pena Pires: “O Estado social pôde ser construído rapidamente porque havia uma reserva de professores e de médicos vindos de África.” O próprio crescimento do ensino universitário beneficiou, pois “os estudantes retornados não entram nas universidades clássicas, vão ocupar as universidades que estavam em formação fundadas pelo ministro Veiga Simão”, explica Pena Pires. Ou seja, o fenómeno dos retornados teve um peso específico na construção do Estado democrático. E embora reconheça que “já foi maior o peso dos retornados” na sociedade portuguesa, Pena Pires sublinha que “hoje são os filhos que têm peso e o terem vivido lá não é indiferente para explicar o seu percurso”.
Todos os aspectos da sociedade portuguesa foram atingidos por este fenómeno, incluindo a construção da democracia política. A integração dos retornados no sistema político geral “esvaziou a criação de movimentos de retornados, porque os que podiam preencher a liderança desses movimentos estavam ocupados noutros lugares” de liderança política. No plano autárquico, “foi grande a sua influência”. Isto porque “os retornados, sobretudo a norte, podem candidatar-se politicamente porque não há líderes”, frisa Pena Pires. “O ser de fora ajudou a fazer carreira política. A direita tinha pessoas muito conotadas com o fascismo.”
Este sociólogo relata que no inquérito que fez para o seu estudo “aos titulares das câmaras, no início dos anos 1980, 8% deles eram retornados”. Candidataram-se e foram eleitos pelo CDS e depois pelo PSD. “Pelo CDS cumpriam um mandato, depois candidatavam-se pelo PSD.” A sua opinião político-partidária “era mais contra a esquerda, marcada pela descolonização, eram contra Mário Soares, que era olhado como quem traiu.”
O facto de ocuparem o espaço político-partidário à direita contrastava com a abertura das suas posições em questões de costumes e civilizacionais. “Eram, por exemplo, a favor da despenalização do aborto, sei porque os interroguei na altura do primeiro debate [sobre despenalização em 1982] e eles eram favoráveis, tinham uma mentalidade mais liberal”, explica Pena Pires, que usa a sua própria experiência para exemplificar. “Eu vivi no Huambo e depois em Luanda, a vida era mais liberal, os liceus eram mistos, não tinham muros”, conta, prosseguindo: “Os funcionários públicos tinham férias graciosas. Fiz o primeiro período do 5.º ano do liceu no Porto, no Liceu Alexandre Herculano, e tive um choque, eu fui olhado como o terrorista que saltava os muros. Essa liberdade de vida marca a personalidade e a opinião sobre casos como o aborto.”
A diferença de mentalidade entre quem veio de África e quem vivia nas colónias era de um contraste imenso. O empresário Luís Montez não hesita em dizer: “O retorno foi notável. Sinto gosto de ter vindo de Angola, também para abrir a cabeça às pessoas, que atrofiavam. A sociedade portuguesa é mesquinha e pequena. Como já perdi tudo, se calhar sou mais atrevido. O essencial é ter princípios e educação, isso ninguém nos tira, agora perder o Mercedes e a casa na praia, arranja-se de novo mais tarde.”
A diferença de mentalidades e a abertura de espírito levavam a um maior liberalismo político. Emídio Rangel sublinha que “a democratização começa com as pessoas com formação, o que lhes permitiu entrar na discussão e serem elementos úteis”. E Alexandre Relvas lembra que “as pessoas que viviam em África sabiam dos movimentos de libertação, os que eram de segunda e terceira geração conheciam a situação, tinham feito o liceu com a geração de nacionalistas, não se conhecia Agostinho Neto, mas conheciam-se os primos”.
Também Paula Teixeira da Cruz depõe no mesmo sentido. “Em minha casa discutia-se política, trazia-se livros de fora, eu tinha mesada para comprar livros na Livraria São Luís [em Luanda], não havia limitações. Essa vivência cultural era extremamente importante. Li o primeiro livro de Marx aos 13 anos no liceu. Havia em Angola uma discussão que do ponto de vista cultural não havia aqui. Era uma mentalidade mais aberta. Havia PIDE mas havia debate.”
A actual ministra da Justiça cita mesmo a diferença de costumes e de mentalidade que transparece no quotidiano e no vestuário. “Lembro-me de vir de férias e sentir um país muito mais escuro e mais limitado, até na forma como as pessoas se vestiam.” Também Margarida Cardoso sorri ao lembrar: “Quem vivia em África tinha hábitos de roupa com cores, padrões, quadrados. Éramos apontados como vindos das colónias por causa das roupas.”
Já Carlos Lisboa sustenta que “as pessoas que viveram em África têm uma mentalidade diferente, pelo tipo de vida, por terem melhores condições de vida, tinham uma relação diferente com os outros”. E exemplifica: “O relacionamento com amigos em África deu-me uma visão de estar em grupo, de partilhar emoções, a vida colectiva era mais intensa.”
Por seu lado, Tomaz Morais garante: “O espírito alegre e de convívio tem que ver com as pequenas vitórias que vamos alcançando. Vejo isso em nós e nos meus primos. Foi a estrutura que ganhámos. Não há grandes egoísmos, há muito sentido de partilha e somos batalhadores por natureza.” E atribui essa característica à vivência africana: “Isto tem que ver com a vida em África. Nós vivíamos de portas abertas, os amigos entravam e saíam, eram quase irmãos. Chocou-me que cá era diferente, era fechado. A minha mãe diz que isso é de África, as pessoas eram optimistas por natureza e isso foi muito importante para a reintegração. A capacidade de liderança e o espírito de missão que os portugueses tinham em África trouxeram quando voltaram.”
Alexandre Relvas vai mais longe e afirma que o sucesso da integração dos retornados se deve à “própria personalidade portuguesa”. E explica: “Nós integramo-nos e sentimo-nos bem onde estamos, fazemos do mundo onde passamos a estar o nosso mundo com uma enorme facilidade, é este sentimento que me levou a integrar aqui, que levou o meu avô a integrar-se em África e que levou os avós de milhares de portugueses a integrarem-se bem e a viverem felizes em África.”
Velhos Colonos: a minha avó Irlanda (1916), o meu pai (1934) e o recém-nascido tio Mário (Lourenço Marques, 1939)
Sabemos bem o que se passou a partir do verão de 1974. No aeroporto Gago Coutinho desembarcaram dúbias individualidades à paisana, prestimosamente assistidas por uns fulanos de farda já amarrotada, barba por fazer, palito ao canto da boca e olhar sobranceiro. Vinham liquidar a presença portuguesa em Moçambique e detendo a titularidade do poder, ou mais importante ainda, o dedo no gatilho das G-3, garantiam que as coisas se passassem como o figurino aprovado pelo partido exigia. Se ao mesmo tempo conseguissem amealhar uns cobres, melhor ainda.
E foi precisamente isso o que fizeram. Desde logo começou a roda viva das negociatas de transferência de divisas, pois na sua proverbial cegueira, a gente do Estado Novo obrigou o Ultramar a possuir moeda própria em cada uma das suas parcelas. Estupidez superlativa, essa ausência de um Escudo comum consistiu num dos aspectos mais criticados e atirados à cara das autoridades que ignorando a realidade no terreno, da Metrópole chegavam para as conhecidas e rendosas comissões em Angola, Moçambique, etc. Não importando quem fosse o imbecil nomeado pelo senhor engenheiro-doutor cunha, logo passava à frente de qualquer natural da Província, por mais branco, goês, preto, mulato ou chinês que este fosse. Era assim mesmo.
Grandes negócios foram engendrados. Os camaradas de uniforme acirraram-se nas "véstorias" - não é assim mesmo que certa gente bem colocada diz? - de caixas e caixotes dos naturais daquela terra que fugiam espavoridos pelos discursos transmitidos por libertadores que jamais haviam conquistado uma vilória, por mais ínfima que esta fosse. Trocavam Escudos de Moçambique por Escudos de Portugal ao preço de 3 por 1, logo aumentando o esbulho para 4 e até 5. O agiotismo atingiu o paroxismo quando a data da independência se aproximou, levantando-se todo o tipo de obstáculos possíveis e imaginários. Após o 25 de Junho de 75, qual foi a sede de depósito de bens à confiança? Desgraçadamente, a embaixada/consulados de Portugal em Moçambique.
As muitas dezenas de cartas que se encontram na posse de milhares de naturais do Ultramar, são eloquentes testemunhos do que se passou. Papelada para tudo e para nada, listas que eram arbitrariamente riscadas, bens deliberadamente pisoteados diante dos seus proprietários, enfim, tudo se fez às claras e sempre com um requintado prazer ditado pelo livre arbítrio. Muitos ainda recordam os palavrões e os dichotes ameaçadores, o gozo pela tortura moral de quem estava à mercê. São tristemente célebres, os factos que se contavam acerca de fulanos engalonados que se forneceram de móveis, enxovais, bibelots e electrodomésticos, logo os fazendo embarcar para a Metrópole. Pasmaram os Velhos e os Novos Colonos de Moçambique, pois tal coisa jamais se vira.
Vão agora as associações de espoliados numa via sacra até S. Bento. Sabendo-se da inexistência de qualquer possibilidade de remédio à situação que foi imposta a centenas de milhar de pessoas - os milhões de infelizes que lá ficaram, são outro assunto que preenche o noticiário do dia a dia -, convém manter a memória dos inegáveis factos ocorridos há quarenta anos. Falam as associações de reparações materiais, quando o que a todos os "retornados" mais interessa, será um mea culpa dos herdeiros do Estado de 1974-76. É a obrigatória reparação moral que mais falta faz.
Começam pelo PC dito P, supina ironia. Obrigam os negacionistas a uma audiência que lhes será imposta pelas regras do Parlamento. Têm os comunistas representação parlamentar? Por incrível que possa parecer, sim, têm. São assim forçados à recepção de gente que deliberada e conscientemente prejudicaram, numa ânsia de prestação de serviços à potência que então os tutelava e sustentava. Obrigar o PC e tralha anexa a escutar aqueles que odeiam, eis um quase anedótico caso que deveria ser filmado em directo.
Nesta infausta e felizmente já "descomemorada" data, nada melhor tenho para fazer, senão publicar uma carta escrita nos finais do já longínquo ano de 1974.
Tendo ficado em Lourenço Marques até 1976, a minha avó assistiu a todo o processo de debandada que culminaria com o forçado abandono de Moçambique por parte de toda a sua familia. O seu pai, estabelecido em Lourenço Marques desde o início do século, ali morreu em 1975 por altura da independência e a sua mãe que jamais visitara o Portugal Continental, também viria para a antiga Metrópole. Como era seu hábito, trata-se de uma longa missiva por vezes quase telegráfica e que ainda caía na tentação do uso do português de outros tempos. Nestes papéis apercebemo-nos da catástrofe que se verificava nos serviços públicos já a mercê do oportunismo de muitos, da incompetência dos neófitos e de uma total desorganização tornada inevitável pela abrupta partida de quadros da administração do ainda Estado de Moçambique. O papel das Forças Armadas Portuguesas foi aquele que bem se conhece, sumariamente podendo ser classificado como prepotente, escandaloso e cobarde. A mencionada requisição de navios que procederam à evacuação de militares e respectivas famílias - não esquecendo os preciosos teres e haveres, muitos destes adquiridos ao desbarato aos "colonos" - é apenas um dos tristes episódios que salpicaram a reputação de uma instituição até então por todos considerada sagrada.
O Miguel, a minha mãe, a Angela e eu, com a avó (L.M. Moçambique, 1966)
Alguns nomes foram por mim deliberadamente ocultados, evitando a reabertura de pequenas feridas - que hoje não têm qualquer relevância - perpetradas por gente excitada pelos acontecimentos e que talvez não tenha querido hesitar antes da tomada de algumas atitudes desnecessárias.
Existem muitas dezenas de cartas deste período, ciosamente guardadas pelo meu pai, um felizmente incorrigível arquivista. Estes papéis são verídicos testemunhos de muitos acontecimentos completamente desconhecidos pela sociedade portuguesa. Convém guardá-los e dá-los a conhecer, pois a preservação da memória é o que nos resta.
"Lourenço Marques, 8/11/74
Meus queridos filhos e netinhos
Anteontem pouco antes do meio dia foi quando escrevi as últimas linhas da carta que enviei via "Expresso". Não sei se me expliquei claramente, assim volto a dizer agora o mesmo.
Na CCN (1) dizem que a "sede aí é é que tem de mandar aviso Telex para a filial aqui com ordem de pagamento a ser feita cá". Eu já levava dinheiro para o fazer e nada adiantei. Tratar quanto antes do assunto que eu para a semana vou passando pela CCN a saber se já mandaram a ordem de pagamento. Meu Deus, tantas arrelias juntas. Disseram-me que a culpa foi de quem mediu os contentores, é melhor ir sempre a mais e pagar cá. Estava lá uma senhora a dizer que sabia como era. Mediam a menos para se valerem e mesmo receber gorjeta e os interessados que se arranjassem aí. Que sabia de muitos casos. Só penso que se já têm casa (2) devem estar mortinhos para a ter arranjadinha, o tempo como está? Já deve fazer frio.
Fui à Inspecção de Crédito falar com a D. Irene Santos. Foi ela quem tratou da renovação do cartão da mesada da Prazeres (3) (ainda não lhe mandei o cheque de Setembro, não tenho cabeça nem disposição para escrever). Disse-me que as transferências estão suspensas e é verdade. Que os funcionários que foram "via turismo" não têm direito mesmo que houvesse dinheiro porque foram à sua custa, e é o teu caso, não é assim, Ana Maria? Deram-te a licença graciosa mas não as passagens. Pode ser que eu esteja enganada, mas lembro-me de ouvir qualquer coisa sobre isto antes de embarcarem. Mesmo no BNU estão as transferências suspensas. Não sei quantas vezes eu lá fui e quando lá chego antes de abrir as portas já a bicha é enorme. Enquanto estiver o aviso afixado na porta a dizer que estão suspensas as transferências, nada feito sobre as pensões.
Se não me engano já mandei dizer qual o dinheiro vosso que tenho. Em caixa deixado por vós antes de partirem = 700$00 mais 25$50 em moedas 2.000$00 pagos por M. Graça Fernandes = 2.725$50.
A XXXXXXXX veio pagar domingo passado 14.000$00 pelo aparelho de ar condicionado. Quando lhe telefonei disse-lhe que preferia em dinheiro em vez de cheque como queria pagar. Que não podia fazer. Lá tive que ir depositar o dinheiro e assim quando preciso de dinheiro só posso levar dez contos por semana, um dia = 4 contos, outro dia = 4 contos e no terceiro dia = 2 contos. É uma bicha tremenda. Quando estranhei serem só catorze contos e lhe mostrei a factura que tinha mesmo ao lado da mesinha do telefone disse-me logo que lhe tinhas falado em catorze e não em catorze e quinhentos. Sempre quero ver se dará o que falta. Também me disse que os 4 contos não eram divida dela mas sim do irmão e da cunhada, que tinha ficado acordado contigo pagar mil escudos por mês. Que quando eu fosse novamente com a tia Mimi à consulta (vou na terça dia 12), a cunhada me pagaria qualquer coisa. Eu que ando a pé e sou velha é que tenho de lá ir. Esta gente não é nada atenciosa. A YYYYYYYY está na África do Sul, só para o fim de semana é que virá. Foi o que me disseram quando telefonei. O Sr. Inácio Ribeiro foi mais cortez, mas é pouca coisa o que tem para me entregar.
Agora vende-se tudo ao desbarato, por este andar só quem mesmo não pode é que não procura novos horizontes. No mercado negro dizem que para receber 100$00 daí temos que dar 300$00. Quando se pergunta quem o faz ninguém sabe e qualquer dia estará a 400%. Anda tudo louco. Não há navios para passageiros e carga. Até Março é para militares e famílias e material de guerra. Estamos abandonados. Não é costume nestas ocasiões fretarem navios e mesmo aviões para quem quer ir embora? Coitado do Avô (4). Diz que da sua casa não sai, mas está tão abalado que não sabemos quanto mais viverá. É a velhice. Vai-se apagando pouco a pouco. A Avó tendo que sair prefere ir para a A. do Sul que é clima mais quente, o Carlos, a Bolívia e a Mimi (5). A Maria Jesus (6) diz que vai com os filhos para lá, só está à espera do emprego que lhe prometeram em Durban. Mais ou menos o mesmo que cá faz. O Zeca (7) começa a trabalhar lá em Janeiro, a Laura (7) já está a desmantelar a casa. Enfim, a família vai cada um para seu lado. A Loti (8) conta embarcar no fim de Dezembro. Eu que faço? A Adélia (9) embarcou domingo passado com os miúdos e a mãe. Estão a viver em Portimão. O Mário (9) para o mês que vem embarca a gozar férias. Conta ficar uns tempos por cá e prefere então ir para o Brazil. Já está a tratar para ali se fixar. Fala em Porto Alegre. O Mário vai passar o natal aí e volta para cá até ir para o Brazil. O mobiliário já está a ser encaixotado e segue no fim de Dezembro para o Brazil. Vai junto com bagagem de uma família amiga.
Eu ando a tratar da minha pensão de sobrevivência. A Adélia andou lá mas tudo agora é muito moroso. mandaram-me ir para a semana. Quero ver se ainda tenho chance de a transferir para aí antes de vinte e cinco de Junho, tenho até morrer. Assim não perco tudo, bem basta a casa ficar cá. Pena tenho eu de não a poder levar às costas. Eu ando muito nervosa (quem não anda?) quantas vezes não digo que era preferível morrer, tanta cousa triste neste último ano! Não sei se leve a tralha (caso haja navios de carga) e venda aí mesmo ao desbarato mas o dinheiro corre no mercado e o de cá só se for (10) para limpar o...! As lojas estão vazias, as pessoas que foram, como não dão transferências gastaram todo o dinheiro que cá tinham. Foi uma das razões porque os bancos agora só deixam levantar dez contos por semana. Mandem dizer o que na minha casa vale a pena levar. Parece-me que há gente da A. do Sul interessada em mobílias de talha, pagam em rands. Sendo assim vendia a mobília de quarto. Para mim um divan faz de cama e o resto do quarto a fazer de salinha com as minhas recordações já me chega. Ao que a gente chega. Nem se pode morrer em paz.
Esta semana fui ter com o Jorge (11). Disse-lhe também que já tinha vindo a minha casa, ao sábado e domingo na verdade nunca estou. Ao sábado casa da tia Bolívia e Avós e ao domingo com a Adélia e Mário. Ontem à noite o Mário veio buscar-me e fomos ao cinema ver uma comédia. Nunca julguei que pudessem fazer filmes tão cómicos, sem ser as parvoíces de outrora. Agora metem política e é cada uma. Olha, fartei-me de rir. O filme de bonecos animados era mesmo bom. Passado numa escola. Como estava dizendo estive a conversar com o Jorge. Diz que vai haver barulho lá mais para diante. Como a Vira (12) também passou e ficámos a conversar, não adiantou mais nada, de maneira que não sei o que conta fazer. Sobre a tua mãe, Ana Maria, nada sei. Uma senhora que estava ao balcão é que perguntou se eu era a mãe do Vítor e que quando fosse à Caixa para lá passar, pois tinha uma encomenda para ti. O Jorge falou em cheque... mas nada havia. O contrário é que seria de admirar. É a tal Margarida de que falaram numa carta.
Sobre o emprego estão satisfeitos? Aparecendo cousa melhor é aproveitar. Escuta aqui, escuta acolá e olho vivo poderá ajudar para cousa melhor. O que interessa é na verdade ganhar para comer, para a casa e para os estudos. Como está a Angelinha? O Miguel e o Nuno, bons? A Ana Maria não diz nada sobre a saúde, bem agasalhados por causa do frio é o que eu peço para fazerem. Fui agora à caixa do correio mas não tenho correspondência. A semana passada recebi duas cartas em dois dias seguidos ou foi no princípio da semana? Desculpem a minha cabeça anda tão cansada. Isto é uma baralhada medonha! Quando estou sozinha farto-me de chorar, e quando quando ando na rua melhoro mas, o pior é que quando chegou a casa está tudo por fazer. Não encontro tempo para tudo.
Todas as pessoas amigas vos mandam muitas saudades. Mais uma vez o seguinte: (quanto antes têm que ir à sede CCN pedir para mandar para a filial de cá um Telex a confirmar o pagamento cá. Não vindo a ordem da sede aqui não recebem o dinheiro) Entendido?
Muitos beijinhos e muitas saudades da mãe e avó muito e muito amiga
Irlanda"
(1) CCN, Companhia Colonial de Navegação.
(2) Vivemos no Parque de Campismo de Monsanto até ao verão de 1975.
(3) M. dos Prazeres, a irmã do meu avô, residente em Valença do Minho.
(4) O meu bisavô. Vivia em Moçambique desde o início do século XX.
(5) Carlos, Bolívia e Mimi, irmãos da minha avó.
(6) Maria Jesus Branquinho, cunhada da minha avó.
(7) Zeca e Laura , irmão e cunhada da minha avó.
(8) Leontina (Loti) Tenreiro, irmã da minha avó.
(9) Adélia e Mário, a nora e o filho da minha avó, meus tios paternos.
(10) Uma conhecida expressão de desânimo que a minha avó substituiu por reticências.
(11) O tio Jorge, irmão da minha mãe.
(12) Elvira, uma prima do meu avô.
Possivelmente no 10 de Junho de 1955, a unidade do meu pai desfila na Praça Mouzinho de Albuquerque, preparando-se para descer a Avenida D. Luís I (Lourenço Marques, Moçambique). Ao fundo, o grandioso edifício da Câmara Municipal de Lourenço Marques e na praça, a famosa estátua equestre que o governo moçambicano poderia hoje oferecer à cidade de Lisboa. Na capital portuguesa e nas suas imediações, vivem muitos milhares de moçambicanos de origem, os Velhos Colonos luso-africanos que para irreparável desastre de Moçambique, foram expulsos da sua terra. A dádiva desta estátua seria um simbólico acto de reparação, pois não há razão para qualquer "reconciliação": jamais estivemos zangados com Moçambique, ao novo país apenas desejamos um futuro de paz, progresso e abastança. Sabendo-se que a esmagadora maioria é parca de recursos e por isso jamais voltou ou poderá voltar ao local do seu nascimento e juventude, a visão do bronzeo Mouzinho seria uma grata consolação.
Assisti a uma boa dúzia de cerimónias deste género e lembro-me de no final da década de sessenta - 1969? - ter participado numa, integrado nas hostes da minha escola primária, a Dr. Luís Moreira de Almeida, contígua à Igreja de Sto. António da Polana. Claro que o uniforme das crianças era outro, esse mesmo em que estão a pensar.
Informação na 1ª foto: Tenente-Coronel Mira, Capitão Seara Bento, Major Mendes Correia, Tenente Morais, Capitão Coutinho, Aspirante Jorge Sousa, eu (Vítor, o meu pai).
À direita, a branco, o colossal palácio presidencial em contrução
Durante sete décadas, o Palácio da Ponta Vermelha foi a residência oficial do Governador-Geral de Moçambique. Não sendo propriamente "um palácio", era uma construção digna. Foi inaugurado pelo príncipe real Luís Filipe, quando em 1907 visitou o Ultramar português. O Palácio da Ponta Vermelha era moderadamente luxuoso, amplo, com um belíssimo jardim. Pelo que agora se sabe, foi considerado como coisa imprestável e demasiadamente modesta para o altíssimo nível da chefia de Estado moçambicana. Sem contar os tostões, a nomenklatura decidiu erguer um mastodonte ali para a selecta zona da Sommerschield, num ponto alto e com uma privilegiada vista para a Baía do Espírito Santo. Onde terão ido desencantar os fundos para mais este disparate? Não fazem a coisa por menos, devem ter ficado socraticamente comovidos com a grandiosidade que o antigo camarada Ceausescu gostava de deixar testemunhada em cimento. Como se sabe, Moçambique ainda não atingiu os níveis de desenvolvimento que outrora exibira no início da década de cinquenta. Não nos referimos a pick-ups, jipões, telemóveis, Volvos, Mercedes e outras porcarias sem qualquer importância. Falamos de educação, serviços de saúde, manutenção de infra-estruturas.
Alguns dados moçambicanos a incluir no palmarés do 25 de Abril sempre! Curioso será observarmos que os lugares cimeiros pertencem a quatro monarquias, com os EUA de permeio. Deve ser por mero acaso.
Seria interessante sabermos quais as empresas envolvidas naquele novo paquiderme betonado. Ou muito enganados andamos, ou a camaradaria portuguesa anda a fazer uns cobres à beira Índico. Compensações de Cabora-Bassa, quem sabe?
O hoje desprezado Palácio da Ponta Vermelha
Entre Campos, Julho de 1976
A série que a RTP em boa hora decidiu colocar na sua programação, apenas tem pecado pela omissão quanto aos retornados oriundos das outras províncias ultramarinas. Não seria coisa muito difícil, o cruzar diálogos da família angolana com outra gente vinda de Moçambique, Guiné ou Cabo-Verde. Enfim, mais vale isto que o absoluto nada até agora consagrado como coisa boa e útil para a tranquilidade pública.
No Rossio de 1974-76, aglomeravam-se legiões de forçados ociosos brancos-pretos, aproveitando para reencontrarem velhos conhecidos da terra de origem e ali radicando em pleno centro da então turbulenta capital dos capitães ajaezados de generais, uma certa oposição bastante hostil ao soprado vento da história que afinal jamais daria em tempestade. O Rossio não era um terreno propício aos dichotes que a miudagem retornada escutava nas escolas e até os utentes dos autocarros da Carris que paravam nos apeadeiros ali bem próximos da Pastelaria Suíça, logo moderavam as excitadas oras, precavendo-se da volatilidade dos ânimos daquela gente recém-chegada de selvas urbanas entrecortadas de avenidas de quatro ou seis faixas de rodagem. Em suma, por ali trovejava a sedição e ficava então bem demonstrado aquilo que Mário Soares recentemente afirmara a franceses acerca da necessidade de fazer espalhar os retornados pelo país, impedindo aglomerações. Era esta uma antiga desconfiança metropolitana, sabendo-se que até há poucos anos o ajuntamento de mais de meia dúzia de fulanos, fora passível de ser topado como conspirata. O senhor dos Negócios Estrangeiros temia pela segurança do feliz estado de bambúrrio em que o país estava e decerto já o seu telescópio cerebral imaginava aquilo em que Portugal se tornaria nas décadas seguintes à passageira tormenta. Fez bem em dispersar o exilados, pois de outra forma, a fresca Lisboa da cintura vermelha que então berrava "Alerta, às armas!" de cinco em cinco segundos, ver-se-ia copiosamente ocupada por aqueles que representavam mais de cinco séculos de um agora incómodo poder que tornara Portugal notado no mundo.
Tecem-se muitas considerações e lamentos, correm caudais de lágrimas acerca de alojamentos, peripécias de exigências quanto a hotéis de "cinco estrelas" - como se alguém naqueles momentos de desespero, sequer pensasse seriamente nesse tipo de excentricidades -, subsídios para isto e para aquilo. Entre todos os pontos de discórdia e do bem nacional diz que disse, pontifica o IARN, uma espécie de Plano Marshall local que os já citados e ajaezados capitães forçosamente tiveram de criar, evitando males maiores. A verdade é bem diversa daquilo que alguns corifeus da situação ainda hoje tentam fazer passar por coisa tão verídica, como o facto de a Torre de Belém se encontrar há muito encalhada na margem norte do Tejo. Muitos milhares de portugueses jamais puderam contar com um centavo que fosse e também não poderão os entusiastas dos Vascos, argumentar com as ditas generosidades forçadas em pensões ou Sheratons de vários e impronunciáveis nomes. Para muitos nada houve, a não ser uma esmagadora sensação de perda e queda no vazio.
No antigo Portugal Continental enraizara-se a estultíssima ideia de todos os ultramarinos terem vivido em grandes "fazendas", machambas ou casarões abarrotados de criadagem tratada segundo as normas há muito ditadas pela chibatinha de Monsieur Donatien Alphonse François, internacionalmente mais conhecido pelo seu título nobiliárquico. A verdade é que quanto a este ponto os revolucionários especialistas não se entendem, pois se num momento escarrapacham mansões versalhescas, logo de seguida desdenhosamente falam em palhotas de selvagens, quiçá algumas delas exibindo à porta, o crânio de um moleque mais infortunado. No dizer de doutas sumidades que jamais haviam colocado os pés nas Áfricas, cada branco "podia dispor de um criado para cada função doméstica, fosse ela a preparação do mata-bicho, do matinal acto do duche e posterior vestir do colonialista, existindo ainda um engraxador, um carregador das pastinhas escolares dos minino, nem sequer faltando a óbvia testemunha do proibido, a tal tombazana que tomaria conta do bebé e das escondidas pulsões do patrão", etc. À tardinha, todos nós nos "deliciávamos com umas Coca-Colas bem fresquinhas e fazendo rolar pelos dentes um palito, escutávamos a Natércia (Techa) Barreto e o seu hit Os Óculos de Sol, enquanto a família passeava os olhos pelas ensanguentadas costas do mainato amarrado a uma árvore do quintal". Leões nos jardins, cobras nas valetas, jacarés que espreitavam pelas escancaradas bocas das retretes, bíblicas nuvens de mosquitos, gorilas e hienas em vez de gatos e cães, compunham o quadro da nossa abjecta selva. Sobretudo, o que não faltavam eram doenças, muitas doenças que eram obviamente comprovadas pela nossa imperiosa necessidade de tomarmos banho de uma forma quase maníaca, chegando ao ponto de o fazermos duas ou três vezes por dia! Assim sendo, a "revolução" devia manter a vigilância sobre estes seres chegados de um outro milénio da história e todo o cuidado era pouco para a manutenção da defesa popular, mobilizando-se assim os jornais, os programas de rádio e sobretudo, a televisão.
Ai de quem tenha ousado desconfiar das promessas de Almeida Santos, o então Ministro da Coordenação Inter-Territorial - os nomes institucionais confirmavam o cariz patusco da situação geral -, um dos primeiros a fazer as malas e a partir com a família para Lisboa. Quem chegou logo após as nada convincentes garantias do ministro e do catarreiro general Costa Gomes, veio por sua conta e total risco, não contando para o cômputo da assistência que urgia prestar a quem se mantivesse leal à nacionalidade de sempre. Só depois dos acontecimentos de 7 de Setembro de 1974 se verificaria um inoportuno despertar para a catastrófica situação que deve ser totalmente imputada à coligação dos militares e nervosos civis controladores do poder na Metrópole. A incúria, o desleixo ditado pela incompetência militante e a total inépcia quanto ao manusear do aparelho do Estado, colocaram as novas autoridades nos cabeçalhos de toda a imprensa internacional. Em Lourenço Marques os mortos amontoaram-se por todo o lado, eram por bulldozers enterrados em valas comuns e as cenas foram horrendas, sem qualquer possibilidade de contradição ou habilidades dialécticas. O mundo ficou a saber muito acerca da escandalosa complacência das unidades do E.P. ainda estacionadas na capital do então Estado de Moçambique e a partir desse momento, o governo de Lisboa muito contrariadamente teve de agir. O medo por aquilo que despontava e bem depressa o poderia ameaçar, levou-o a minimamente acautelar as já duvidosas reputações dos mais conhecidos nomes de militares e civis.
Chegámos à Portela perto do meio dia de 31 de Agosto de 1974. Em silêncio fizemos uma longa viagem a bordo de um 707 dos TAP, com o direito a um esticar das pernas no aeroporto de Luanda, onde se escutava o tiroteio que ribombava ao longe numa cidade que segundo sabíamos, não testemunhava fuzilaria desde a época da expulsão dos holandeses no século XVII. À espera tínhamos um primo direito do meu pai e para nossa suprema felicidade, o Joaquim prodigalizou-nos um tecto numa pequena roulotte estacionada no então distante Parque de Campismo de Monsanto. Felizmente ainda era verão, o sítio oferecia segurança e estava afastado das barricantes ameaças dos tragicómicos zelotas do poder revolucionário. Por lá não surgiam militares de ténis, nem ceifeiras de lutas efabuladas à cata de futuras mordomias. Se excluirmos os vizinhos mais próximos, os Serpa Pimentel que por ali passavam os fins de semana, o isolamento era quase libertador e nem sequer dávamos pelos longínquos e quase inaudíveis ecos da bagunçada lisboeta. O único lastro daquilo que se passava a umas duas léguas de distância, provinha daquela vizinha e imensa roulotte que jamais rolara, uma residência sobre imóveis rodas bem ao estilo da periferia de Los Angeles. Pertencia a uma família de gente razoavelmente abastada, convenientemente já muito avermelhada e que ostensivamente hasteara a foice e o martelo no tecto do cómico palacete de lataria canelada. Foi através do seu pequenino pick-up - era assim que chamávamos ao gira-discos - e respectivos altifalantes, que tomámos conhecimento da nova vaga da música portuguesa. Além da chata da gaivota da Ermelinda Duarte - não confundir o canoro nome com o da boa vinhaça de Palmela -, vibrava a Tonicha kiki antes do tempo, o Paulo de Carvalho do hino do PPD, a duplazinha maravilha Ary-Tordo, o Zé Mário das fúrias burguesas a disfarçar, o Zequinha da vozinha quiriquiqui e as excitações declamadas do fanha-Fanha, intervalando a repetitiva passagem do Avante Camarada!, num viró disco e tocó mesmo tal que ao fim de dois ou três dias, já conseguíamos inventar novas e subversivas letras para as canções, rebolando-nos de tanto rir pelos hoje impublicáveis melhoramentos conseguidos. Apesar da roulotte residencial devidamente embandeirada e do comício permanente também decorado com naperons multicolores, aquilo que tornava a família por toda a gente conhecida naquelas redondezas, consistia num detalhe anatómico que de tão exuberante, logo foi visto como imagem de marca, de classe. Sendo ferozmente seguidores do partido soviético e ainda por cima senhores de portentosos rabos, a família era genericamente conhecida por ... "os Cus". Assim, tornou-se normal vermos os Cus nos balneários, testemunharmos a passagem dos Cus a caminho do portão do parque, cocarmos os Cus lambendo gelados ou engolindo churros quentes, os Cus gemendo carregados de compras no mini-mercado local e chegada a hora de todos os apetites, tudo fazendo por tornarem os devidos cabos das tormentas intestinais, em monumentos inverosimilmente mais imponentes. Era um prazer toparmos com os Cus sentando os respectivos cus à volta de mesinhas de tampo de fórmica, enchouriçadamente prontos para pantagruélicos repastos que à época - e ainda sem o sabermos, por muitos anos ainda -, até em sonhos nos estavam vedados. Por vezes dou comigo a pensar acerca do que terá acontecido àquele importante conjunto familiar de progressistas Cus. Terão os ditos cujos sobrevivido ao descalabro de Novembro de 1975, logo se refastelando em pastagens mais conformes as novas manadas, ou pelo contrário ainda se rebolarão uma vez por ano até à Festa do Avante?
O 31 de Agosto de 1974 propiciou-nos aquele primeiro refúgio para o resto das nossas vidas. Seis metros quadrados que surgiam como um providencial bunker para cinco em Monsanto. Muito modernamente equipado com um bico de gás, durante mais de um ano ali aprendemos a degustar esmerados pratos de esparguete com arroz e arroz com esparguete temperado com Planta. Ríamos com a situação, é verdade, e puxando pelo optimismo uns dias depois, aos cinco já se juntara um gato atrevido, iniciador de uma longa dinastia que chegaria ao novo milénio.
Sendo um rapaz "muito decorativo e poliglota", durante o seu tempo de serviço no Exército o meu pai foi colocado na sede do Governo-Geral de Moçambique, servindo para entre outras coisas do protocolo palaciano, para o anúncio da nomeação de individualidades destinadas ao desempenho das mais diversas funções oficiais na Província de Moçambique.
Numa dessas ocasiões, foi-lhe dado um pequeno texto que designava um fulano nomeado para um importante cargo público. Ninguém o avisou acerca de um pequeno detalhe e ele, tão habituado estava a essas banalidades, nem sequer se deu ao trabalho de passar a vista pelo papel. Reunidas as "altas individualidades" e estando presentes os habituais jornalistas e o Rádio Clube de Moçambique, lá se iniciou a sessão. Tudo corria bem, até ter chegado o momento de o meu pai ler em voz alta o nome do feliz contemplado com a incumbência estatal:
José Francisco das Sagradas Ossadas de São Francisco Xavier Escórcio de Menino Jesus Fernandes !*
Diante do microfone, o meu familiar arauto desatou a rir de forma descontrolada, sendo prontamente secundado pela restante assistência. O novel secretário de qualquer coisa chispava ódio olhos fora e o Governador-Geral Gabriel Teixeira ficou vermelho como um pimento, entre o morto de riso contido e o furibundo pour cause.
Resultado da façanha? O meu pai foi prontamente exilado para Vila de Manica, acabando por cumprir o seu serviço militar junto da fronteira com a então Rodésia do Sul.
E ainda falam os deputados franceses acerca dos nossos apelidos? Imaginem o que diriam, se soubessem algo quanto aos nomes dos hiper-católicos indo-portugueses...
*Era mais ou menos isto.
Primeira cena, de manhã
Num cemitério de Lourenço Marques, uma jovem mulher debruça-se sobre a campa de reluzente mármore branco onde jazia o seu pai, falecido há pouco mais de três lustros. Todos os anos e invariavelmente num sábado quente, as letras eram retocadas com tinta da China, aproveitando-se para compor os jarros de flores e fazerem-se as limpezas necessárias. Ali mesmo ao lado, dois miúdos distraíam-se, percorrendo as ininterruptas fileiras de túmulos, lendo os nomes, olhando e comentando caras que as fotografias esmaltadas diziam pertencer a alguém para sempre desaparecido.
Naquele dia, um rotineiro levantamento de campa despertou a curiosidade das crianças. Os coveiros tratavam duma exumação e foi com o sempre vivaz interesse pela morte alheia que foram sendo retirados os ossos, criteriosamente colocados numa caixa cujo destino seria o gavetão ou um jazigo familiar. Chegada a hora do almoço, os diligentes técnicos de desenterro foram proteger-se da canícula, decerto saboreando o sempiterno puré de farinha de mandioca, acompanhado pela carne guisada suculentamente boiando num molho ocre e picante.
Segunda cena, à tarde
Os fins de semana, os crepúsculos no nº 40 da Rua Dr. J. Serrão, foram sempre momentos muito agradáveis. As visitas chegavam, preparava-se um lanche que de tão prolongado, acabava sempre como um jantar até às tantas. Era a esperada oportunidade para as habituais conversas sobre a política que alguns ainda hoje, noutro compartimento da história e a milhares de quilómetros daquelas paragens, insistem em dizer que fora "matéria da qual não se podia pronunciar palavra". Bem pelo contrário, pronunciavam-se nomes, dissecavam-se reputações, aventavam-se intenções mais ou menos esperadas. Em África falava-se e lia-se, o inverno da política era muito ameno. Se a coisa pública consistiu o sacramento tão certo como para alguns sempre fora a missa e domingo, por vezes as conversas enveredavam para as novidades do momento, fossem elas alguns ditos mais ou menos roçando a intriga, concertos, os filmes em exibição, ou longas, muito longas discussões sobre um ou outro autor que as estantes acolhiam como corpo presente em papel.
Lá para o fim daquele dia, a sala estava cheia, falava-se animadamente em dizeres cruzados. Subitamente, o silêncio impôs-se pela pachorrenta entrada do cocker spaniel Barine, um lindo cão de família, de pelo louro torrado, longas orelhas quase rentes ao solo e coto de cauda sempre a dar-a-dar. Trazia na boca um osso longo, amarelado e que só os muito distraídos poderiam não conseguir identificar a pertença.
- "Chiiii, Barine, dá cá essa porcaria! Onde é que foste buscar isso? Que nojo! Este cão é terrível, passa a vida a trazer lixo da rua! Mas que raio de osso é este?
- Grrrrrrrrrr-ão! ão! ão! Grrrrrrrrrrrrrrrrrr! Nhac!
Metia medo. Aquela pacífica criatura era conhecida como impiedoso guardião de ossos, malgas com comida ou quaisquer guloseimas que lhe pusessem à frente, mesmo tratando-se de fraldas de bebé pouco limpas. Uma temível e imprevisível fera.
A dona da casa desistiu do injusto confisco e poucos minutos depois, daquela já bem descalcificada ruína, apenas restaram umas pobres migalhitas bem depressa varridas e depositadas na lata do lixo.
Acto contínuo, uma trovoada de risotas. Alí estavam os dois miúdos rebolando na alcatifa, corados e de alegres lágrimas escorrendo livremente pelas faces.
Subitamente, incredulamente contabilizando os momentos do dia, a mãe entendeu o que se passava e a contragosto quis confirmar a razão daquela explosão de alegria.
- "Mamã, havia tantos... e trouxemos um para o Barine"
Profanação de cadáver, lá dizia a a Mrs. Marple. Não se ralem, o crime prescreveu. Apenas esperamos que os antigos egípcios não tivessem razão nas suas crenças acerca da integridade dos corpos destinados à segunda oportunidade de vida. Mas isso fica lá para as bandas de Orion.
Foi assim que aos oito ou nove anos imaginei o fim do Titanic
Bem perto da Praça Mac-Mahon, na Rua Consiglieri Pedroso em Lourenço Marques, existia a Papelaria Spanos. Era ali onde os meus pais tinham a assinatura de revistas como Tintim, Pisca-Pisca e os Almanaques Disney, pelos quais eu e o Miguel tanto ansiávamos. Para nossa casa também seguia uma publicação francesa, a Historia, dirigida por Christian Melchior-Bonnet, da Librairie Jules Tallandier. Nela escreviam André Castelot, Christine Garnier, Paul Morand, Alain Decaux, Marcel Brion, Jaques Chastenet, Paul Carell, entre muitos outros nomes da Academia Francesa, da política e da literatura europeia de então.
Houve um número que de imediato me chamou a atenção. A imagem da capa era impressionante e mostrava os momentos finais do naufrágio do Titanic. Exigi que o meu pai lesse o que ali vinha escrito em francês e nos meus oito ou nove anos de então, já ouvira algo acerca da tragédia que para muitos ainda não era coisa assim tão longínqua, ocorrida pouco antes do nascimento da nossa avó Irlanda. Com atenção segui a narrativa, desde a partida do navio, até ao momento da fatal colisão com o iceberg. Para sempre retive um trecho marcante, em que o autor relatava o testemunho de sobreviventes que garantiram a ocorrência de episódios de miséria moral que o desespero impôs como norma. Remos esmagando crânios de náufragos que lutavam por um lugar no bote apinhado, ou aquela mulher que usou o anel cravejado de pedraria para desferir um knock-out em alguém que mergulhado na água gélida, tentava fugir à morte que afinal chegaria dentro de momentos.
Já não me recordo de quantos desenhos fiz acerca do Titanic. Se nalguns papéis o navio surgia novinho em folha e fantasiado de chaminés vermelhas que afinal eram amarelas, navegando a todo o vapor e soltando espessa fumarada, noutros a tragédia estava ali bem nítida, apresentada como banda desenhada ou em pequenos instantâneos de episódios que por regra, mais ou menos seguiam aquilo que previamente escutara. Pelos vistos, da antiga Rua Princesa Patrícia nº 1208 da desaparecida Lourenço Marques, sobreviveu qualquer coisa. No montão de papéis de infância - um dos tesouros-ninharia que sobreviveram ao vendaval de 1974 -, descobri dois desenhos guardados pela nossa mãe. Um deles, precisamente o que abre este post, é meu e o outro, a publicar amanhã, do meu irmão Miguel, então com uns seis anos de idade.
Longe ainda estava a voz de Céline Dion e as americanadas fantasias com diamantes azuis, rapazes maravilha sob a forma de um meloso De Caprio-cara-de-pizza e uns tantos relatos verídicos, entremeados com algum sexo sugerido ou transpirado por uma então ainda inexistente Kate Winslet. A RTP anunciava para "dentro de poucos anos" a abertura da sua sucursal em Moçambique e os videos eram ainda coisa própria de sonhos à Júlio Verne. Livros, revistas, os filmes Made in Hollywood e a nossa bonecada, faziam o pleno do sonho.
Os lápis de cor e a esferográfica do Miguel, os meus guaches e a tinta da China, chegaram perfeitamente para nos manter viva esta memória que agora cumpre cem anos.
Estávamos em 1968, noutro mundo. Aqui está o meu Titanic, um sobrevivente de outro naufrágio.
D. Luís Filipe, no Palácio da Ponta Vermelha (Lourenço Marques, 1907)
Mais dois textos do meu pai, para lerem aqui.
"Como era Lourenço Marques, quando nasci há 77 anos?
Uma pacata capital colonial – elevada a cidade com a assinatura do rei D. Luís I (Novembro de 1887), também o ano do Plano de Expansão que definiu o seu arruamento para mais de 70 anos – e que passou a capital da Colónia em substituição de Moçambique, a cidade-ilha que durante séculos centrara os interesses do Reino na Costa Oriental de África, ainda que dependente do Governo da Índia, e onde, durante séculos, perpassaram histórias, “estórias”, historietas, boatos, invejas e ardis portugueses, bem como de muitos aventureiros estrangeiros e, ainda, o nome de Camões."
Aqui apresentamos um novo blog que decerto nos contará "estórias" ainda desconhecidas de um Moçambique que para sempre desapareceu. Para que a memória não se perca.
"É que Lourenço Marques mais não era do que uma vilória com pretensões e algumas benesses de que a menor era uma praia enorme que se estendia aos seus pés e se prolongava por quilómetros até à Costa do Sol onde existia um restaurante cervejaria, famoso pelos camarões e a cerveja geladinha, a “Laurentina”. Ora está bem de ver que nesses anos 40 e 50 do séc. XX, laurentinos e laurentinas eram os naturais da cidade que só depois passaram a ser chamados de “coca colas” em consequência da introdução desse refrigerante no consumo citadino. É que Moçambique usufruía da regalia de poder beber o refrigerante, aliás, muito menos açucarado do que o mesmo produto que se vende no cantinho português da Europa. Dizia-se, à boca pequena, que Salazar não deixava produzir a bebida em Portugal Continental só para fazer ferro aos americanos que não o apoiavam como ele desejava!"
Passam hoje 37 anos do levantamento do 7 de Setembro em Lourenço Marques. Revoltado pelas arbitrariedades "negociadas" em Lusaca, portugueses brancos, negros, indianos, chineses e mestiços dirigiram-se para a sede do rádio Clube de Moçambique e desafiaram abertamente a ignomínia que imperava em Lisboa. Conhece-se o resultado. Para Portugal, o indelével manchar da honra das Forças Armadas e do novo regime. Para Moçambique, a instalação da prepotência megalómana, do roubo descarado, incompetência e desleixo superlativo.
Entretanto e nestes dias do calor que vai dando as despedidas, aqui vos deixamos o cartaz da excelente cerveja Laurentina. Está a levantar uma enorme polémica em Maputo, essa patética, descolorida e poeirenta sombra daquilo que Lourenço Marques foi.
Dizem ser este, um cartaz anti-mulher! São os pruridinhos moralóides do comunismo rançoso que pelos vistos fez escola, mas hoje em dia rendido ao "parece bem" de certas negociatas, como a de Cabora-Bassa, por exemplo.
Estamos sempre convencidos de tudo conhecermos acerca da casa dos nossos pais. Em crianças abrimos as caixas, revolvemos armários e baús, brincámos com roupas antigas e guardadas não se sabe bem para quê e folheámos vezes sem conta albuns de fotografias. Nada parece ser segredo, mas por vezes temos uma surpresa.
Esta noite jantei em casa do meu irmão e sobre a estante, está a ampliação de uma fotografia do meu pai, feita na Loureço Marques de 1955. É para mim uma novidade e nem sei como conseguiu passar tantas décadas sem que lhe tivesse colocado a vista em cima. Uma bela imagem, não haja dúvida. Também já a inclui na minha colecção.
Era um grande edifício, impecavelmente mantido pelo Estado. Após finalizar a Escola Secundária na General Machado, inscrevi-me na Escola Industrial. Ali funcionava uma espécie de mini-sucursal da António Arroio e matriculei-me em Artes Decorativas.
Tinha sido o Palácio Maçónico, mas após a queda do regime de 1910-26, foi-lhe atribuída uma função incomparavelmente mais útil, tornando-se numa casa aberta e dedicada à formação técnica dos jovens. Um edifício pintado de creme, com amplas salas de aula e que ocasionalmente sofria alguns percalços devido às fortes chuvadas que fustigavam Lourenço Marques. Assisti a várias inundações, por sinal bem frescas em dias de calor sufocante. Uma das minhas professoras seria a futura deputada do CDS Maria Tábita Soares, enquanto outra, um bocadinho autoritária e com cíclicas pulsões discriminatórias, era irmã do conhecido senhor Otelo S. de Carvalho. Nos tempos em que não apenas herdávamos os livros de estudo, também tive como professora de inglês, aquela que também dera aulas ao meu pai na época em que fora aluno no Liceu Salazar. Chamava-se Infância Vilares e foi uma velha e bondosa senhora de um patriotismo extremo, bem nos moldes oitocentistas que para sempre se foram. Para sempre também se perderam as belas arrufadas que ao lanche comia no café que se situava mesmo em frente, O Cortiço, na Avenida 24 de Julho.
Esta foto chegou hoje ao meu e-mail, enviada por um amigo que lá está em passeio. Tenho a estranha sensação de um certo abandono e quase garanto que esta deslavada fachada não é pintada desde que pela última vez subi aquelas escadas em Junho de 1974. Mais acima, o frontão denuncia o "gato escondido de rabo de fora". O escudo português já picado, ainda mostra a marca do antigo proprietário. Nem se preocuparam em disfarçar. Antes assim.
Era o 1208 da rua princesa Patrícia, hoje Salvador Allende. Em Lourenço Marques, hoje Maputo. Esta foto foi enviada por um amigo que por lá recentemente passou e não pude deixar de verificar a enorme diferença na fachada da modesta casa de uma família de "milionários colonial-fascistas"e principalmente, no inacreditável desleixo que a Câmara Municipal vota aos passeios e higiene urbana. A "minha árvore" está quase desenraizada, parecendo também querer fugir de uma terra que já nem parece ser a sua. Compreendo-a muito bem. Pelas fotos que aqui poderão ver, o sítio é o mesmo, mas o tempo, esse tempo que parece tão longínquo, remete-nos para uma outra dimensão.
Uma Rua Princesa Patrícia limpa, de passeios iimpecáveis. A "minha árvore", bem fixa e hirta no seu canteiro. Eu, montado na bicicleta do Luís Marques Pinto (1º miúdo, à esquerda).
A casa, toda engradada, como agora convém