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Enganos em tempos de coronavírus

por Samuel de Paiva Pires, em 31.03.20

O primeiro engano: a dicotomia entre salvar vidas vs. salvar a economia. Como escreveu há dias Steve Horwitz, os custos económicos são custos humanos e todos os custos humanos têm custos económicos. Qualquer das opções (manter a actividade económica a decorrer normalmente e aumentar o grau de propagação do vírus e os seus efeitos a longo prazo vs. quarentena e distanciamento social com a consequente redução na actividade económica, mas com controlo do vírus e relançamento da actividade económica a curto e médio prazo) tem custos económicos. A política é a arte do possível, pelo que quanto à tomada de decisão sobre políticas públicas, não só a primeira opção é moralmente superior como é também a que, numa análise custo-benefício, provavelmente será menos dispendiosa, segundo dois estudos (este e este) referidos por Cass Sunstein. Como é óbvio, requer um forte pacote estatal de estímulo à economia, que no caso de países detentores de moeda própria é mais fácil e rapidamente implementável, o que me leva ao próximo ponto.

O segundo engano: a ideia de que os países do norte da Europa são muito produtivos e frugais ao passo que os países do sul são pouco produtivos, gastadores e pedintes em relação aos do norte com os “eurobonds” e/ou a impressão de dinheiro pelo BCE. Esta narrativa popular tem feito escola até entre muitos cidadãos de países do sul, sendo visível uma quantidade não-negligenciável dos seus adeptos, muitos deles defensores também da estratégia de salvar a economia em detrimento de vidas humanas aflorada no ponto anterior. Para estes, que no ano de 2020, tendo já passado pela crise do euro, ainda não conseguiram perceber que a União Económica e Monetária tem falhas estruturais conducentes a um funcionamento perverso que privilegia os países do norte e prejudica os do sul, dificilmente haverá salvação. Acresce que o actual choque é simétrico, afecta todos os países, ao contrário do choque assimétrico da crise do euro, típico de uma união monetária com as características que enunciei noutro post. O importante a reter é que percebem tanto de uniões monetárias e política internacional como eu percebo de crochê. Se o país dependesse deles enquanto governantes, morreria boa parte da população e outra grande parte ficaria debilitada, o SNS ficaria arruinado e a retoma económica seria uma miragem à distância de várias décadas.

Na origem destas posições parece-me estar a incapacidade de encarar e lidar com uma problemática que provoca imensas mudanças em tantos sectores das nossas vidas e terá consequências que ainda não conseguimos vislumbrar na sua totalidade e probabilidade, embora não sejam inimagináveis. Muitas empresas irão fechar e muitas deveriam fazê-lo o mais rapidamente possível para não se sobreendividarem e desperdiçarem recursos financeiros e humanos em actividades que não serão viáveis durante bastante tempo (estou a pensar especialmente no sector do turismo), muito provavelmente teremos de nacionalizar empresas de sectores estratégicos (ocorre-me desde logo a TAP), a taxa de desemprego vai disparar, tendo o subsídio de desemprego e as políticas sociais de amparar grande parte da população enquanto esta se reconverte para outros sectores de actividade, não sendo de colocar de lado a possibilidade de implementação de medidas como o Rendimento Básico Incondicional. Quem mais rapidamente se adaptar e transformar em face da mudança, mais depressa conseguirá ultrapassar os efeitos negativos desta.

Já Edmund Burke salientava que “Todos temos de obedecer à grande lei da mudança. É a mais poderosa lei da Natureza, e porventura o meio da sua conservação,” e que “Um estado sem os meios de alguma mudança encontra-se sem os meios da sua conservação”, um eco daqueles ensinamentos de Maquiavel a respeito da capacidade de adaptação do príncipe, de quem afirma ser “preciso que ele tenha um ânimo disposto a virar-se consoante os ventos da fortuna e a variação das coisas lhe mandam.” Como Diogo Pires Aurélio sublinha a propósito da obra do florentino, “O hábito (…) molda uma maneira de agir e, nessa medida, reduz a capacidade de improvisação e adaptação.” E como a política é “por definição uma actividade que se defronta irremediavelmente com a novidade, uma vez que a mudança dos tempos é inevitável: ou se é capaz de os mudar ou há um outro que os muda, ou se triunfa ou se perde.”

Nos tempos relativamente estáveis das últimas décadas, se quiserem, de normalidade, com mudanças relativamente moderadas, a economia tomou precedência sobre a política. Mas não vivemos tempos normais e os quadros mentais da cartilha neo-liberal não servem para estes tempos. E saliento a palavra cartilha, porque os nossos aprendizes de neo-liberais deviam ler mais um dos pais do neo-liberalismo, Friedrich Hayek, de cujo Law, Legislation and Liberty deixo um excerto:

The basic principle of a free society, that the coercive powers of government are restricted to the enforcement of universal rules of just conduct, and cannot be used for the achievement of particular purposes, though essential to the normal working of such a society, may yet have to be temporarily suspended when the long-run preservation of that order is itself threatened. Though normally the individuals need be concerned only with their own concrete aims, and in pursuing them will best serve the common welfare, there may temporarily arise circumstances when the preservation of the overall order becomes the overruling common purpose, and when in consequence the spontaneous order, on a local or national scale, must for a time be converted into an organization. When an external enemy threatens, when rebellion or lawless violence has broken out, or a natural catastrophe requires quick action by whatever means can be secured, powers of compulsory organization, which normally nobody possesses, must be granted to somebody. Like an animal in flight from mortal danger society may in such situations have to suspend temporarily even vital functions on which in the long run its existence depends if it is to escape destruction.

publicado às 20:50

Ontem escrevi no Facebook que gostei de ouvir Sócrates falar sobre política, especialmente quando iniciou essa parte da entrevista, porque se notou que percebe tanto de teoria política como eu de crochet. Hoje escrevo porquê.

 

Em primeiro lugar, porque Sócrates acha, com o intuito de defender a investidura do governo de António Costa, que em política só existe a legitimidade formal, constitucional, como se não existisse uma legitimidade material derivada do sentido de voto expresso nas urnas, que indicou claramente, à luz da tradição do nosso regime democrático, que seria a coligação Portugal à Frente a formar governo.

 

Em segundo lugar, para procurar refutar o argumento ancorado na tradição, o mestre pela Sciences Po aproveitou a ocasião para dar o exemplo de Robert Walpole, Primeiro-Ministro britânico entre 1721 e 1742, que teve de enfrentar uma Motion of No Confidence no parlamento e perdeu, demitindo-se, consequentemente, do cargo. Isto, para Sócrates, consubstancia uma tradição de não governar contra o parlamento. Ora, Sócrates esquece-se que não estamos no Reino Unido do século XVIII nem sequer no dos dias de hoje, mas na III República Portuguesa, na qual a tradição tem sido sempre a de que forma governo quem ganha as eleições, contando com a abstenção do ou dos partidos do arco da governação que estejam na oposição aquando da aprovação do Programa de Governo. E isto serve também para aqueles que, pateticamente, procuram argumentar dando o exemplo da Dinamarca e da série televisiva Borgen (a que nunca assisti). A este propósito, é particularmente útil a explicação de Miguel Morgado:

Um regime político depende sempre da experiência cívica dos seus cidadãos. No caso português temos uma tradição política democrática de 40 anos, de experiência cívica. As pessoas sabem, ou sabiam até António Costa perpetrar esta fraude, para que é que estavam a votar. No caso de outras experiências democráticas que muitas vezes se anunciam só há um país, em vinte e oito democracias, um país apenas onde o primeiro-ministro é proveniente de um partido que foi derrotado nas eleições: a Dinamarca. Os outros casos, que não são assim tantos, onde se fala de primeiros-ministros provenientes de partidos menos votados constituem coligações formais de Governo.

 

Em terceiro lugar, Sócrates repudiou a interferência da moral na política, qual Maquiavel de vão de escada. A interpretação mais corrente da contribuição de Maquiavel para a teoria política afirma que este operou a separação entre a moral e a política, quando, na verdade, parece-me bem mais verdadeira a interpretação de Isaiah Berlin, que em "The Originality of Machiavelli" afirma que o que Maquiavel alcança não é a separação entre a política e a moral, nem sequer a “emancipação da política em relação à ética ou à religião,” mas algo mais profundo, a “diferenciação entre dois ideais de vida incompatíveis e, portanto, duas moralidades.” Uma é a moralidade pagã cujos valores são “a coragem, vigor, força na adversidade, reconhecimento público, ordem, disciplina, felicidade, força, justiça, acima de tudo a afirmação de revindicações próprias e o conhecimento e poder necessários para assegurar a sua satisfação;” e a outra é a moralidade cristã, com os ideais da “caridade, misericórdia, sacrifício, amor a Deus, perdão aos inimigos, desprezo pelos bens deste mundo, fé na vida depois da morte, crença na salvação da alma individual como sendo de valor incomparável,” e, portanto, “superior, e até incomensurável em relação a qualquer outro objectivo terrestre, social ou político, ou qualquer consideração económica, militar ou estética.”(1)

 

Por último, na sequência das declarações do ponto anterior, Sócrates afirmou ainda que a moral é a relação de cada um com a sua consciência. É incrível que esta suprema idiotice subjectivista, que qualquer estudante de filosofia do secundário pode refutar facilmente, não tenha sequer sido questionada pelo entrevistador. Que Sócrates se vanglorie de ter obtido a melhor nota no seu mestrado só torna tudo isto ainda mais caricato. 

 

(1) Isaiah Berlin, The Proper Study of Mankind, ed. Henry Hardy e Roger Hausheer (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2000), 289.

publicado às 18:31






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