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Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«Por outro lado, segundo se depreende do seu artigo, para Volpi ler consiste só em ler, isto é, em ficar a conhecer o conteúdo do que lê e não há dúvida de que o seu caso é o de imensos leitores. Porém, na polémica com Vicente Molina Foix que o seu artigo gerou, este último recordou a Volpi que, para muitos leitores, «ler é uma operação que, além de informar sobre o conteúdo das palavras, significa também, e talvez sobretudo, ter prazer, saborear aquela beleza que, as palavras, tal como os sons de uma bela sinfonia, as cores de um quadro insólito ou as ideias de uma argumentação sagaz, emitem unidas ao seu suporte material. Para este tipo de leitor ler é, ao mesmo tempo que uma operação intelectual, um exercício físico, algo que, como diz muito bem Molina Foix «acrescenta ao acto de ler uma componente sensual e sentimental infalível. O tacto e a imanência dos livros são para o amateur, variações do erotismo do corpo trabalhado e manuseado, uma maneira de amar.»
Tenho dificuldade em imaginar que as tablets electrónicas, idênticas, anódinas, intermutáveis, funcionais ao máximo, possam despertar esse prazer táctil prenhe de sensualidade que os livros de papel despertam em certos leitores. Mas não estranho que numa época que tem entre as suas proezas ter acabado com o erotismo se esfume também esse hedonismo refinado que enriquecia o prazer espiritual da leitura com o físico de tocar e acariciar.»
Leitura complementar: O mito do individualismo extremo do nosso tempo; A insustentável leveza da literatura do nosso tempo; A banalização da política; Da arte moderna; Do erro da equivalência entre culturas à difusão da incultura; Da proliferação de Igrejas à substituição da religião pela alta cultura e aos escapismos contemporâneos; Da libertação sexual ao erotismo como obra de arte; A ausência dos intelectuais da civilização do espectáculo; Da subversão da autoridade dos professores e da escola pública à perpetuação das divisão de classes a partir das salas de aula
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«Todavia, a autoridade, no sentido romano de auctoritas, não de poder, mas sim, como define na sua terceira acepção o Diccionario da Real Academia Espanhola, de «prestígio e crédito que se reconhece a uma pessoa ou instituição pela sua legitimidade ou pela sua qualidade e competência nalguma matéria», não voltou a levantar a cabeça. Desde então, tanto na Europa como em boa parte do resto do mundo, são praticamente inexistentes as figuras políticas e culturais que exercem aquele magistério, moral e intelectual ao mesmo tempo, da «autoridade» clássica e que os professores, palavra que soava tão bem porque se associava ao saber e ao idealismo, encarnavam a nível popular. Em nenhum campo isto foi tão catastrófico para a cultura como na educação. O professor, despojado de credibilidade e autoridade, convertido em muitos casos, na perspectiva progressista, em representante do poder repressivo, isto é, no inimigo a quem, para alcançar a liberdade e a dignidade humana, era preciso resistir e, até, abater, não só perdeu a confiança e o respeito sem os quais era impossível cumprir eficazmente a sua função de educador – de transmissor tanto de valores como de conhecimentos – perante os seus alunos, como também os dos próprios pais de família e de filósofos revolucionários que, à maneira do autor de Vigiar e Punir, personificaram nele um daqueles instrumentos sinistros de que – tal como os guardas das prisões e os psiquiatras dos manicómios – o establishment se vale para refrear o espírito crítico e a sã rebeldia de crianças e adolescentes.
Muitos professores acreditaram de muito boa-fé nesta satanização de si mesmos e contribuíram, atirando baldes de azeite para a fogueira, para agravar o estrago fazendo suas algumas das mais disparatadas sequelas da ideologia do Maio de 68 relativamente à educação, como considerar aberrante reprovar os maus alunos, fazê-los repetir o ano e, até, dar classificações e estabelecer uma ordem de preferências no rendimento académico dos estudantes, pois, fazendo semelhantes distinções, propagar-se-ia a nefasta noção de hierarquias, o egoísmo, o individualismo, a negação da igualdade e o racismo. É verdade que estes extremos chegaram a afectar todos os sectores da vida escolar, mas uma das perversas consequências do triunfo das ideias – das diatribes e fantasias – do Maio de 68 foi que por esse motivo se acentuou brutalmente a divisão de classes a partir das salas de aula.
A civilização pós-moderna desarmou moral e politicamente a cultura do nosso tempo e isso explica em boa parte que alguns dos «monstros» que julgávamos extintos para sempre depois da Segunda Guerra Mundial, como o nacionalismo mais extremista e o racismo, tenham ressuscitado e vagueiem novamente no próprio coração do Ocidente, ameaçando uma vez mais os seus valores e princípios democráticos.
O ensino público foi uma das grandes conquistas da França democrática, republicana e laica. Nas suas escolas e colégios, de muito alto nível, as vagas sucessivas de alunos gozavam de uma igualdade de oportunidades que corrigia, em cada nova geração, as assimetrias e privilégios de família e classe, abrindo às crianças e jovens dos sectores mais desfavorecidos o caminho do progresso do êxito profissional e do poder político. A escola pública era um poderoso instrumento de mobilidade social.
O empobrecimento e desordem que o ensino público sofreu, tanto em França como no resto do mundo, deu ao ensino particular, ao qual por razões económicas só tem acesso um sector social minoritário de altos rendimentos, e que sofreu menos os estragos da suposta revolução libertária, um papel preponderante na forja dos dirigentes políticos, profissionais e culturais de hoje e do futuro. Nunca foi tão verdade o «ninguém sabe para quem trabalha». Julgando fazê-lo para construir um mundo verdadeiramente livre, sem repressão, nem alienação nem autoritarismo, os filósofos libertários como Michel Foucault e os seus inconscientes discípulos agiram muito acertadamente para que, graças à grande revolução educativa que propiciaram, os pobres continuassem pobres, os ricos, ricos e os inveterados donos do poder sempre com o chicote nas mãos.»
Leitura complementar: O mito do individualismo extremo do nosso tempo; A insustentável leveza da literatura do nosso tempo; A banalização da política; Da arte moderna; Do erro da equivalência entre culturas à difusão da incultura; Da proliferação de Igrejas à substituição da religião pela alta cultura e aos escapismos contemporâneos; Da libertação sexual ao erotismo como obra de arte; A ausência dos intelectuais da civilização do espectáculo
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«Porque um facto singular da sociedade contemporânea é o eclipse de uma personagem que há séculos e até há relativamente poucos anos desempenhava um papel importante na vida das nações: o intelectual. Diz-se que a denominação de «intelectual» só nasceu no século XIX, durante o caso Dreyfus, em França, e as polémicas lançadas por Émile Zola com o seu célebre «Eu Acuso!», escrito em defesa daquele oficial judeu falsamente acusado de traição à pátria por uma conjura de altos comandos anti-semitas do exército francês. Mas, ainda que o termo «intelectual» só se popularizasse a partir de então, a verdade é que a participação de homens de pensamento e criação na vida pública, nos debates políticos, religiosos e de ideias, remonta aos próprios alvores do Ocidente. Esteve presente na Grécia de Platão e na Roma de Cícero, no Renascimento de Montaigne e Maquiavel, no iluminismo de Voltaire e Diderot, no romantismo de Lamartine e Victor Hugo e em todos os períodos históricos que conduziram à modernidade. Paralelamente ao seu trabalho de investigação, académico ou criativo, um bom número de escritores e pensadores destacados influiu com os seus escritos, pronunciamentos e tomadas de posição no acontecer político e social, como acontecia quando eu era novo, em Inglaterra com Bertrand Russell, em França com Sartre e Camus, em Itália com Moravia e Vittorini, na Alemanha com Günter Grass e Enzensberger, e o mesmo em quase todas as democracias europeias. Basta pensar, em Espanha, nas intervenções na vida pública de José Ortega y Gasset e de Miguel de Unamuno. Nos nossos dias, o intelectual esfumou-se dos debates públicos, pelo menos dos que interessam. É verdade que alguns ainda assinam manifestos, enviam cartas aos jornais e se envolvem em polémicas, mas nada disso tem repercussão séria no andamento da sociedade, cujos assuntos económicos, institucionais e até culturais se decidem pelo poder político e administrativo e pelos chamados poderes fácticos, entre os quais os intelectuais brilham pela sua ausência. Conscientes da desairosa situação a que foram reduzidos pela sociedade em que vivem, a maioria optou pela discrição ou pela abstenção no debate público. Confinados à sua disciplina ou afazeres particulares, viram as costas ao que há meio século se chamava «o compromisso» cívico ou moral do escritor e do pensador com a sociedade. Há excepções, mas, entre elas, as que costumam contar – porque chegam aos media – são as que se encaminham mais para a auto-promoção e para o exibicionismo do que para a defesa do um princípio ou valor. Porque, na civilização do espectáculo, o intelectual só interessa se seguir o jogo da moda e se se tornar um bobo da corte.
O que é que conduziu ao apoucamento e volatilização do intelectual no nosso tempo? Uma razão que deve considerar-se é o descrédito em que várias gerações de intelectuais caíram pelas suas simpatias com os totalitarismos nazi, soviético e maoista, e pelo seu silêncio e cegueira perante horrores como o Holocausto, o Gulag soviético e as carnificinas da Revolução Cultural da China. Com efeito, é desconcertante e esmagador que, em tantos casos, aqueles que pareciam ser as mentes privilegiadas do seu tempo fizessem causa comum com regimes responsáveis por genocídios, atropelos horrendos contra os direitos humanos e a abolição de todas as liberdades. Porém, na realidade, a verdadeira razão para a perda total do interesse da sociedade no seu conjunto pelos intelectuais é consequência directa da ínfima vigência que o pensamento tem na civilização do espectáculo.
Porque outra característica é o empobrecimento das ideias como força motora da vida cultural. Vivemos hoje a primazia das imagens sobre as ideias. Por isso os meios audiovisuais, o cinema, a televisão e agora a internet foram deixando os livros para trás, os quais, se as previsões pessimistas de um George Steiner se confirmarem, passarão dentro de pouco tempo para as catacumbas. (Os amantes da anacrónica cultura livresca, como eu, não devem lamentar isso, pois, se assim acontecer, talvez essa marginalização tenha um efeito depurador e aniquile a literatura do best-seller, justamente chamada lixo não só pela superficialidade das suas histórias e pela indigência da sua forma, como também pelo seu carácter efémero, de literatura de actualidade, feita para ser consumida e desaparecer, como os sabonetes e as gasosas.)
Leitura complementar: O mito do individualismo extremo do nosso tempo; A insustentável leveza da literatura do nosso tempo; A banalização da política; Da arte moderna; Do erro da equivalência entre culturas à difusão da incultura; Da proliferação de Igrejas à substituição da religião pela alta cultura e aos escapismos contemporâneos; Da libertação sexual ao erotismo como obra de arte.
Via Rui Rocha, fui dar a uma entrevista que é uma pérola. Presumo que, um belo dia, alguém terá dito a Margarida Rebelo Pinto que ela faz algo a que se possa chamar literatura. Ela terá acreditado e ter-se-á convencido, dado o volume de vendas dos seus livros - critério que, por exemplo, desqualificaria a obra de Pessoa - que assim é. E qual ser coberto pelo manto da modéstia, não se coíbe de afirmar que «não existem elites intelectuais em Portugal.» Ela sim, ela é que é um portento intelectual. De resto, esta entrevista é bem o espelho de um tempo em que o superficial predomina sobre a substância. Enfim, é a literatura light a que Mario Vargas Llosa se refere. Resta apenas rir e ter pena. Da autora e dos que a lêem.
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«A suposta libertação do sexo, um dos traços mais marcantes da modernidade nas sociedades ocidentais, dentro da qual se inscreve esta ideia de dar aulas de masturbação nas escolas, talvez consiga abolir centos preconceitos parvos sobre o onanismo. Em boa hora. Mas também poderá contribuir para desferir outra punhalada no erotismo e, talvez acabe com ele. Quem é que sairia a ganhar? Não os libertários nem os libertinos, mas sim os puritanos e as Igrejas. E continuaria o delírio e a futilização do amor que caracterizam a civilização contemporânea no mundo ocidental.»
(...)
O sexo só é saudável e normal entre os animais. Foi-o entre os bípedes quando ainda não éramos totalmente humanos, quando o sexo era em nós alívio do instinto e pouco mais do que isso, uma descarga física de energia que garantia a reprodução. A desanimalização da espécie foi um longo e complicado processo e nele teve papel decisivo o que Karl Popper chama «o mundo terceiro», o da cultura e da invenção, o lento aparecimento do indivíduo soberano, a sua emancipação da tribo, com tendências, disposições, desígnios, anseios, desejos, que o diferenciavam dos outros e o constituíam como ser único e intransferível. O sexo desempenhou um papel de destaque na criação do indivíduo e, como mostrou Sigmund Freud, nesse domínio, o mais recôndito da soberania individual, forjam-se as características distintivas de cada personalidade, o que nos é próprio e nos torna diferentes dos outros. Esse é um domínio privado e secreto e deveríamos procurar que continue a sê-lo se não quisermos tapar uma das fontes mais intensas do prazer e da criatividade, isto é, da civilização.
Georges Bataille não se enganava quando alertou contra os riscos de uma permissividade desenfreada em matéria sexual. O desaparecimento dos preconceitos, algo libertador, efectivamente, não pode significar a abolição dos rituais, o mistério, as formas e a discrição graças aos quais o sexo se civilizou e humanizou. Com sexo público, são e normal, a vida tornar-se-ia mais aborrecida, medíocre e violenta do que é.
Há muitas formas de definir o erotismo, mas, talvez, a principal seja chamar-lhe a desanimalização do amor físico, a sua conversão, ao longo do tempo e graças ao progresso da liberdade e da influência da cultura na vida privada, da mera satisfação de uma pulsão instintiva numa ocupação criativa e partilhada que prolonga e sublima o prazer físico rodeando-o de uma encenação e uns refinamentos que o convertem em obra de arte.»
Leitura complementar: O mito do individualismo extremo do nosso tempo; A insustentável leveza da literatura do nosso tempo; A banalização da política; Da arte moderna; Do erro da equivalência entre culturas à difusão da incultura; Da proliferação de Igrejas à substituição da religião pela alta cultura e aos escapismos contemporâneos.
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«Na civilização do espectáculo o laicismo ganhou terreno sobre as religiões, aparentemente. E, entre os ainda crentes, aumentaram os que só o são de vez em quando e da boca para fora, de maneira superficial e social, enquanto na maior parte das suas vidas prescindem inteiramente da religião. O efeito positivo da secularização da vida é que a liberdade é agora mais profunda do que quando os dogmas e as censuras eclesiásticas a limitavam e asfixiavam. Mas enganam-se aqueles que julgam que, pelo facto de no mundo ocidental haver hoje percentagens menores de católicos e protestantes do que antes, tenha vindo a desaparecer a religião nos sectores conquistados ao laicismo. Isso só acontece nas estatísticas. Na verdade, ao mesmo tempo que muitos fiéis renunciavam às Igrejas tradicionais, começavam a proliferar as seitas, os cultos e toda a espécie de formas alternativas de praticar a religião, desde o espiritualismo oriental em todas as suas escolas e divisões – budismo, budismo zen, tantrismo, ioga – até às Igrejas Evangélicas que agora pululam e se dividem e subdividem nos bairros marginais, e pitorescos sucedâneos como o Quarto Caminho, o rosacrucianismo, a Igreja da Unificação – os Moonies –, a Cientologia, tão popular em Hollywood, e Igrejas ainda mais exóticas e epidérmicas.
A razão desta proliferação de Igrejas e seitas é que só sectores muito reduzidos de seres humanos podem prescindir por inteiro da religião, que faz falta à imensa maioria pois só a segurança que a fé religiosa transmite sobre a transcendência e a alma a liberta do desassossego, do medo e do desvario em que a ideia da extinção, do perecimento total a mergulha. E, com efeito, a única maneira como a maioria dos seres humanos entende e pratica uma ética é através de uma religião. Só pequenas minorias se emancipam da religião substituindo com a cultura o vazio que ela deixa nas suas vidas: a filosofia, a ciência, a literatura e as artes. Mas a cultura que pode cumprir esta função é a alta cultura, que enfrenta os problemas e não lhes foge, que tenta dar respostas sérias e não lúdicas aos grandes enigmas, interrogações e conflitos de que a existência humana está rodeada. A cultura de superfície e de aparência, de jogo e de pose, é insuficiente para suprir as certezas, mitos mistérios e rituais das religiões que sobreviveram à prova dos séculos. Na sociedade do nosso tempo os estupefacientes e o álcool fornecem a tranquilidade momentânea do espírito e as certezas e alívios que outrora se deparavam aos homens e mulheres com as rezas, a confissão, a comunhão e os sermões dos párocos.»
Leitura complementar: O mito do individualismo extremo do nosso tempo; A insustentável leveza da literatura do nosso tempo; A banalização da política; Da arte moderna; Do erro da equivalência entre culturas à difusão da incultura
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«A cultura estabeleceu sempre categorias sociais entre aqueles que a cultivavam, a enriqueciam com contributos diversos, a faziam progredir e aqueles que não se entendiam com ela, a desprezavam ou ignoravam, ou dela eram excluídos por razões sociais e económicas. Em todas as épocas históricas, até na nossa, numa sociedade havia pessoas cultas e incultas e, entre os dois extremos, pessoas mais ou menos cultas ou mais ou menos incultas e esta classificação tornava-se bastante clara para o mundo inteiro porque regia para todos um mesmo sistema de valores, critérios culturais e maneiras de pensar, julgar e comportar-se.
No nosso tempo tudo isso mudou. A noção de cultura alargou-se tanto que, ainda que ninguém se atreva a reconhecê-lo de maneira explícita, se esfumou. Tornou-se um fantasma inapreensível, multitudinário e simbólico. Porque já ninguém é culto se todos julgarem sê-lo ou se o conteúdo do que chamamos cultura for de tal forma adulterado que todos possam justificadamente julgar que o são.
O sinal mais remoto deste processo de empastelamento e confusão progressivos do que representa uma cultura foi dado pelos antropólogos, inspirados, com a melhor boa-fé do mundo, numa vontade de respeito e compreensão pelas sociedades primitivas que estudavam. Eles estabeleceram que cultura era o conjunto de crenças, conhecimentos, linguagens, costumes, vestuário, usos, sistemas de parentesco e, em resumo, tudo aquilo que um povo diz, faz, teme ou adora. Esta definição não se limitava a estabelecer um método para explorar a especificidade de um conglomerado humano em relação aos outros. Queria também, à partida, abjurar do etnocentrismo preconceituoso e racista de que o Ocidente nunca se cansou de se acusar. Porque uma coisa é acreditar que todas as culturas merecem consideração dado que em todas há contribuições positivas para a civilização humana, e outra, muito diferente, acreditar que todas elas, pelo simples facto de existirem, se equivalem. E esta última parte foi o que espantosamente acabou por acontecer devido a um preconceito monumental suscitado pelo desejo de abolir de uma vez para sempre todos os preconceitos em matéria de cultura.
A correcção política acabou por nos convencer de que é arrogante, dogmático, colonialista e até racista falar de culturas superiores e inferiores e até de culturas modernas e primitivas. Segundo esta arcangélica concepção, todas as culturas, a seu modo e na sua circunstância, são iguais, expressões equivalentes da maravilhosa diversidade humana.
Se etnólogos e antropólogos estabeleceram esta igualação horizontal das culturas, diluindo até à invisibilidade a acepção clássica do vocábulo, os sociólogos, pelo seu lado – ou, melhor dizendo, os sociólogos empenhados em fazer crítica literária -, levaram a cabo uma revolução semântica parecida, incorporando na ideia de cultura, como parte integral dela, a incultura, disfarçada com o nome de cultura popular, uma forma de cultura menos refinada, artificiosa e pretensiosa do que a outra, mas mais livre, genuína, crítica, representativa e audaz.
(…)
Bakhtin e os seus seguidores (conscientes ou inconscientes) fizeram algo mais radical: aboliram as fronteiras entre cultura e incultura e deram ao inculto uma dignidade relevante, assegurando que o que podia haver neste discriminado âmbito de imperícia, vulgaridade e descuido era compensado pela sua vitalidade, humorismo e pela maneira desempoeirada e autêntica com que representava as experiências humanas mais partilhadas.
Deste modo foram desaparecendo do nosso vocabulário, afugentados pelo medo de incorrer na incorrecção política, os limites que mantinham a cultura separada da incultura, os seres cultos dos incultos. Hoje já ninguém é inculto ou, melhor dizendo, somos todos cultos. Basta abrir um jornal ou uma revista para encontrar, nos artigos de comentaristas e articulistas, inúmeras referências à miríade de manifestações dessa cultura universal da qual todos somos possuidores, como por exemplo «a cultura da pedofilia», «a cultura da marijuana», «a cultura punk», «a cultura da estética nazi» e coisas do estilo. Agora somos todos cultos de alguma maneira, ainda que não tenhamos lido nunca um livro, nem visitado uma exposição de pintura, ouvido um concerto nem adquirido algumas noções básicas dos conhecimentos humanísticos, científicos e tecnológicos do mundo em que vivemos.»
Leitura complementar: O mito do individualismo extremo do nosso tempo; A insustentável leveza da literatura do nosso tempo; A banalização da política; Da arte moderna
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«A mais inesperada e truculenta consequência da evolução da arte moderna e da miríade de experiências que a nutrem é que já não existe qualquer critério objectivo que permita qualificar ou desqualificar uma obra de arte, nem situá-la dentro de uma hierarquia, possibilidade que se foi eclipsando a partir da revolução cubista e desapareceu totalmente com a não figuração. Actualmente tudo pode ser arte e nada o é, segundo o soberano capricho dos espectadores, elevados, devido ao naufrágio de todos os padrões estéticos, ao nível de árbitros e juízes que outrora só certos críticos detinham. O único critério mais ou menos generalizado para as obras de arte na actualidade não tem nada de artístico; é o imposto por um mercado intervencionado e manipulado por máfias de galeristas e marchands que não revelam de maneira alguma gostos e sensibilidades estéticas, só operações publicitárias, de relações públicas e em muitos casos simples apropriações.»
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«Na civilização do espectáculo a política sofreu uma banalização talvez tão pronunciada como a da literatura, do cinema e das artes plásticas, o que significa que nela a publicidade e os seus slogans, lugares-comuns, frivolidades, modas e tiques, ocupam quase inteiramente o trabalho antes dedicado a razões, programas, ideias e doutrinas. O político dos nossos dias, se quer conservar a sua popularidade, é obrigado a dar uma atenção primordial ao gesto e à forma, que importam mais do que os seus valores, convicções ou princípios.»
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«Por isso não é estranho que a literatura mais representativa da nossa época seja a literatura light, leve, ligeira, fácil, uma literatura que sem o menor rubor se propõe antes de mais e sobretudo (e quase exclusivamente) divertir. Atenção, não condeno nem um pouco os autores dessa literatura de entretenimento pois há, entre eles, apesar da leveza dos seus textos, verdadeiros talentos. Se na nossa época é raro empreenderem-se aventuras literárias tão ousadas como as de Joyce, Virginia Woolf, Rilke ou Borges não é apenas por causa dos escritores; também é porque a cultura em que vivemos mergulhados não propicia, até mesmo desincentiva, esses denodados esforços que culminam em obras que exigem do leitor uma concentração intelectual quase tão intensa como a que as tornou possíveis. Os leitores de hoje querem livros fáceis, que os entretenham, e essa demanda exerce uma pressão que se torna um poderoso incentivo para os criadores.
(…)
A literatura light, como o cinema light e arte light, dá a impressão cómoda ao leitor e ao espectador de ser culto, revolucionário, moderno, e de estar na vanguarda com um mínimo de esforço intelectual. Deste modo, essa cultura que se pretende avançada e de ruptura, na verdade propaga o conformismo através das suas piores manifestações: a complacência e a auto-satisfação.»
Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«Por outro lado, algumas afirmações de A Cultura-Mundo [Lipovetsky e Sarroy] parecem-me discutíveis, como a de que esta nova cultura planetária fez desenvolver um individualismo extremo em todo o Globo. Pelo contrário, a publicidade e as modas que lançam e impõem os produtos culturais no nosso tempo são um sério obstáculo à criação de indivíduos independentes, capazes de julgar por si mesmos o que é que lhes agrada, o que é que admiram, o que acham desagradável e enganador ou horripilante naqueles produtos. A cultura-mundo, em vez de promover o indivíduo, torna-o submisso, privando-o de lucidez e livre-arbítrio e fá-lo reagir perante a «cultura» imperante de maneira condicionada e gregária, como os cães de Pavlov perante a campainha que anuncia a comida.»