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Algo vai mal no reino da Dinamarca, perdão, dinheiro. É isso, dinheiro. Algo vai mal no reino do dinheiro. Dinheiro marca. Dinheiro marca golos. E a festa está prestes a começar. Aquilo que está a acontecer com os contratos multi-milionários respeitantes à cedência de direitos às operadoras pelos três grandes do futebol, faz parte, na sua essência, da mesma matriz cultural que retrata este país. O vizinho do lado comprou um carro novo, então eu vou comprar um ainda mais novo. A vizinha do lado veste Prada, então eu visto Gucci. E aí por diante. É verdadeiramente escandaloso que um país estropiado económica e socialmente possa dar-se ao luxo, instigado pela ganância do negócio, de se vergar à luz do disparate dos valores em causa. A MEO, a NOS e os demais intervenientes neste espectáculo de centenas de milhões de euros, estão a encher uma bolha especulativa que não se coaduna com a dimensão do mercado nacional de futebol. A matéria extravasa por completo os limites dos relvados, e, na minha opinião, deveria ser tema de grande debate político. O presente governo, campeão do controlo do Estado, sacerdote da regulação bancária e eunuco da especulação financeira, deveria meter a pata nesta poça, mas por alguma razão celestial que nos escapa, não se escuta a sugestão de intervenção preventiva, de acompanhamento razoável do que está em causa. A entidade reguladora dos negócios do futebol (não sei se existe?) deveria medir os contornos destes negócios. Estamos a falar de quantias que certamente não resultam de "dinheiro em caixa", mas possivelmente de veículos de investimento complexos. Ou seja, os mesmos de sempre - os bancos. Nenhuma operadora guarda no bolso estes valores avultados. A haver desastre financeiro das operações em causa, já sabemos quem paga. Desconfio muito que os clubes de futebol e as operadores irão receber o mesmo tratamento distorcido concedido aos bancos falidos, caso as coisas dêem para o torto. Sim, o campo está inclinado. E muito.
Recordo-me reconfortadamente de quando, na minha pré-adolescência, aderi a um clube de pen-friends. À época, e aqui tratamos de contas simples uma vez que nasci em Abril de 1971, uma carta, que era simultaneamente o meio mais económico e mais eficaz de comunicação a longas distâncias, demorava seis a oito dias para executar a round trip entre Caneças e Oslo, e mais de três semanas se a ponta remota do trajecto ficasse situada além-oceanos.
No decorrer de três anos, correspondi-me com perto de uma centena de jovens, cujas idades gravitavam em torno da minha com um desvio de 3 ou 4 anos para cada lado na recta da vida. Poucas coisas, à parte a leitura de um livro ou o visionamento de um filme, me davam tanta satisfação intelectual como a espera, a antecipação do momento em que, transpostos a três e três, oito lanços dos degraus que mediavam a porta da casa de meus pais e a caixa do correio, a abriria para nela encontrar palavras, expressões, imagens, informação, emoções e a explicação de mundos intangíveis e tão oníricos como Xanadu ou Rivendell.
Algumas dessas pessoas ainda fazem parte da minha vida, graças ao advento das redes sociais. Outras morreram. E ainda outras tornaram-se irrastreáveis, e delas não sei.
Volvidas três décadas, venho confessar-vos que de todas as atrocidades, de todos os atropelos à dignidade humana, entre a miríade de aviltantes degenerescências impostas a este país, uma das piores - senão mesmo a mais vil e soez - foi o assassinato de carácter perpetrado sobre aquela personagem, então ansiada, expectada, tida por Hermes Trismegisto completo com esperança, bonomia e Caduceu: o carteiro.
O carteiro hoje em dia já não entrega missivas da Rachel em Wellington onde vinha contar-me como estava feliz pelo trabalho que havia arranjado para as férias da Páscoa, nem do Timothy em Manchester cujos envelopes mais pareciam sapos inchados, tal era a dilatação do seu bojo repleto de autocolantes, fotografias de concertos, e recortes de bandas das quais por cá, somente dois anos depois se ouviria falar.
O carteiro, nestes dias de depressão e torpor, entrega a morte lenta.
Deposita-a na forma de notificações institucionais, às quais metade da população não consegue compreender, e quase outros tantos reagir, por manifesta falta de meios intelectuais, anímicos, financeiros.
Deposita-a na forma de facturas abusivas, erróneas, repetidas, trocadas e truncadas, perdidas.
Deposita-a sobretudo na forma da ameaça. Há uma aura sobre o carteiro, ora fiel palafreneiro com a espada de Dâmocles na albarda, que é de ameaça, porque deixou de ser possível contar com as únicas três coisas que um Estado, por natureza e por ser pago a expensas da população, tem o Dever maior de cumprir: o apuramento da Verdade, o arbítrio de conflitos, e a protecção dos desprotegidos.
Não havendo literacia, não existe Verdade. A Verdade é aquilo que o mais destro na urdidura da palavra bem entender que ela seja.
Não havendo justiça limpa, célere, impoluta e pragmática, não há arbítrio. Ganha sempre o que tiver o exército maior ou a bomba dissuasora mais temível.
Não havendo correlação entre a realidade da classe política (compadrios e satélites incluídos) e as pessoas normais, não há égide que valha aos que caem nas malhas do erro judiciário, da caderneta predial mal lavrada, da denúncia escarninha porque as galinhas do vizinho são menos fartas que as nossas.
E uns recebem correspondência tranquilos e serenos, sob a redoma que lhes foi permitido erigir, enquanto outros se esforçam para disfarçar o timbre nervoso e a passada trémula até à caixa do correio, para que a família não soçobre ainda mais enquanto tenta manter-se à tona.
Mergitur nec Fluctuat. Até quando, não sei. Sei que o carteiro era, para mim, uma figura arquetipal tão importante como todos os meus outros heróis da infância, desde os bombeiros de Armamar (quem se lembra levante o braço) até ao anónimo de Tian Nan Men.
E agora é a pessoa mais temida em muitos dos círculos onde ainda tenho paciência, vontade e ânimo para mover-me.