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Tenho estado aqui a pensar para com os meus bretões, perdão, portugueses, e ainda não cheguei a uma conclusão satisfatória. Por que razão os cidadãos deste país fogem das privatizações como o diabo foge da cruz? Porque será? Será que existe um medo profundo em dar a cara e assumir a responsabilidade pelos actos? Ao longo de décadas de invocação ideológica e constitucional, cultivou-se a ideia de contrato social para todas as ocasiões. A entidade pública, fizesse chuva ou sol, lá estaria para passar o cheque ao fim do mês. A empresa está falida e é deficitária? Não faz mal. O pai Natal paga. E este tipo de mentalidade de dependência da subvenção vitalícia infiltrou-se de tal modo na psique colectiva que qualquer tentativa de "individualizar a existência" e assumir o risco foi prontamente rejeitada. Há algo profundamente hipócrita nesta tomada de posição. A abstracção não tangível da empresa pública serviu na perfeição para os mais variados devaneios à custa do freguês que foi em cantigas de deveres do Estado e justiça social. As empresas públicas don´t always do it better. O resultado está à vista. Como se fosse desejável matar a criatividade que estravasa os limite da caixa do Estado. As empresas públicas foram o camuflado perfeito para dissimular a incompetência e albardar o país com despesismos desnecessários. Mas este padrão de comportamento arrebanhado também contaminou o espectro privado. Ou seja, o próprio sector privado carece de privatização. Nas empresas privadas que operam no mercado nacional, uma espécie de corporativismo maligno afecta as operações. Neste país é muito desgastante ser criativo, porque esse mistério da imaginação acaba por pôr em causa as estruturas de poder instaladas. Deste modo a mentalidade privada também não está livre de críticas. Revela-se em muitas ocasiões, bota de elástico, retrógrada e semelhante aos monstros que pretende abater - o Estado. Portugal comemora décadas de pertença ao mercado comum, mas teima em aceitar a normalidade subjacente às privatizações. Para além disso, existe um certo prazer autofágico-sado-maso no amor pela entidade pública. São os dinheiros de cada um de vós que têm sustentado os defeitos de fabrico e operação de empresas sagradas, apanágio da má rês pública. Por outras palavras, os portugueses estão dispostos a deitar dinheiro pela janela, desde que o seu nome não fique indelevelmente associado a uma desgraça, à bancarrota anunciada há décadas mas afastada pela ética colectiva, questionável. É tão bom poder se esconder atrás da empresa do Estado. Portugal encara enormes desafios, mas a privatização da mentalidade será um dos maiores - pôr cada um a pensar por si, em nome de todos e ao serviço de um novo modelo existencial para Portugal. Não sei, não. Sei, sei.
Nota:
rês
(árabe ras, cabeça)
substantivo feminino
1. Qualquer quadrúpede que, depois de abatido, é usado para a alimentação humana.
má rês
• [Popular] Pessoa de instintos ruins; má firma; velhaco.
Plural: reses.
Confrontar: rés.
Palavras relacionadas: rés, chambão, mioleira, saquim, rabada, assacate, magarefe.
"rês", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/r%C3%AAs [consultado em 16-06-2015].
Arménio Carlos quer os utentes do Metro de Lisboa a apoiar a greve dos trabalhadores daquele que é um dos principais meios de transporte para milhares de pessoas que vivem e/ou trabalham em Lisboa. Uma greve que, diz o líder da CGTP, é em defesa do serviço público, para logo de seguida falar na falta de aumentos salariais e nos cortes que os trabalhadores do Metro sofreram nos complementos de reforma, como se a esmagadora maioria das pessoas não estivesse a ser afectada pela crise, em muitos casos de forma bem mais gravosa.
É caso para perguntar a Arménio Carlos se ser sindicalista implica ser estúpido. Será que ainda não percebeu que não vão obter o apoio de quaisquer utentes, que estes anseiam precisamente pela privatização do Metro e que quanto mais greves ocorrerem mais se reforça a legitimidade e a necessidade de acelerar o processo de privatização?
Esta é uma luta que os sindicalistas habituados a tornar a sociedade refém das suas reivindicações - egoístas e despropositadas na conjuntura em que vivemos - vão perder, mais cedo ou mais tarde. Felizmente.
(Pablo Picasso, Poor People on the Seashore)
Quando era criança, sempre que passávamos pela Rotunda do Relógio perguntava aos meus pais porque viviam aquelas pessoas ali nas escadas por baixo do viaduto. Tinha para mim que “quando fosse grande” construiria uma grande casa onde poderia abrigar as pessoas que não têm um tecto. Entretanto cresci e percebi que as coisas não são assim tão simples.
Há dias, enquanto aguardava por uma pessoa à porta dos Armazéns do Chiado, fui abordado por um rapaz com um ar envergonhado que, começando por afirmar que não pretendia dinheiro, logo me fez saber que tinha fome, perguntando-me se lhe poderia comprar algo para comer. Repliquei que estando a aguardar uma pessoa, não o poderia acompanhar, acabando por tirar do bolso algumas moedas que lhe entreguei. Isto quando um pouco mais abaixo, sensivelmente a meio da Rua do Carmo, costuma estar um pedinte sentado no chão com uns cartões diante de si a servir de repositórios da colecta, indicando em cada um deles o destino a dar a esta – álcool, droga, tabaco, comida etc. Porventura este putativamente humorístico pedinte, que por acaso tem um ar um pouco lunático, estará em crer que a sinceridade o ajudará, e a verdade é que lhe são atiradas bastantes moedas.
Entre a vergonha de uns e a loucura de outros, registe-se a ideia, que é do senso comum, de que a maioria dos pedintes que encontramos nas nossas ruas destinam aquilo que conseguem essencialmente a álcool e droga. Já desprovidos de qualquer vergonha, muitos acabaram a contribuir involuntariamente para a formação de uma certa carapaça que instintivamente faz com que se tenha banalizado a resposta “não tenho nada” perante qualquer pedido que nos façam pelas ruas.
Mas entre os loucos e os desprovidos de qualquer vergonha, há também os que envergonhadamente se vêem na contingência de ter que pedir para sobreviver. Há cerca de um ano, estive por várias vezes numa sala de espera do Hospital de S. José. De um lado para o outro arrastava-se em passos lentos e a medo uma senhora com uma expressão tão envergonhada que se tornava incomodativa e chegava mesmo a transmitir como aquela situação a estava a destruir psicologicamente. Abordava quem por ali aguardava a sua vez, resumindo a sua situação ao facto de se encontrar desempregada, tal como o marido, que estava doente.
Ontem, a caminho de casa, estavam dois pedintes na carruagem do metro em que seguia. Um deles, bastante conhecido por quem anda de metro, lá ia batendo com aquele ferro na bengala e na caixa que traz ao pescoço, no seu habitual ritmo alucinante, cantando o célebre “Ora podem crer que eu continuo a agradecer a quem tiver a bondade ou a possibilidade de me auxiliar”. O outro era uma senhora, que embora até abordando as pessoas com uma expressão facial amigável, foi encontrando a habitual resposta: “não tenho nada”. Após receber esta resposta da minha parte e de mais umas pessoas que se encontravam próximo de mim, o metro parou, tendo entrado uns jovens, rapazes e raparigas, que não teriam mais que 19 ou 20 anos. Um deles ficou em frente da senhora assim que entrou, tendo por ela sido abordado. Replicou que não tinha dinheiro mas que lhe podia oferecer a sandes embrulhada que trazia na mão. Provavelmente já esperando a resposta habitual, a senhora ficou um pouco surpreendida com a oferta, e com uma expressão de genuíno agradecimento, talvez a mais genuína que alguma vez presenciei, a primeira reacção que teve foi de uma generosidade tocante: pediu ao rapaz que pelo menos dividissem a sandes, o que ele obviamente recusou. Voltando a agradecer, aproveitou ainda para dizer que infelizmente se via naquela contingência porque tem que pagar o quarto em que vive com a filha, e que tem que a alimentar e vestir como conseguir, para que pelo menos não a achincalhem na escola.
Alguns dizem que encontram Deus em situações de contacto com o sublime e o belo. Eu não encontrei Deus. Mas de repente a minha alma e o meu corpo pareceram ter sido rasgados não por uma revelação divina, mas por uma revelação demasiado humana que me quis mostrar como é possível manter uma generosidade indescritível e ao alcance de muito poucos, numa situação em que provavelmente já não se consegue manter qualquer réstia de dignidade própria e cujas circunstâncias tenderiam mais a levar-nos no sentido oposto.
Ao mesmo tempo, senti-me envergonhado. Porque respondi instintivamente e não tive a capacidade de perscrutar aquele rosto e tentar compreender o que lhe subjaz. Quando me levantei, dirigi-me à porta onde se encontrava a senhora. Antes de sair, dei-lhe umas moedas, talvez procurando redimir-me, talvez procurando egoisticamente sentir-me um pouco melhor. Não o merecendo, fui presenteado com um simpático agradecimento de uns olhos cansados e um sorriso de uns dentes que já conheceram um estado bem melhor, de alguém com uma tez que denota alguma falta de saúde, mas que foram mais comoventes e me transmitiram mais conforto que muitos dos olhares e sorrisos que já recebi na minha vida. Não o suficiente, contudo, para evitar as lágrimas que me correram pelo rosto após sair do metro. Ontem, não fui um homem bom. E ainda que a minha mente não pare de pensar naquela cena a que assisti, pelo menos fico contente por ter visto um e por ter presenciado tamanha demonstração de generosidade.