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Uma das coisas que eu costumo pedir aos meus alunos é que façam por sentir-se úteis na profissão que escolheram. Em História da Arte ou em História somos geralmente tratados como aves raras da sociedade, delicados espécimes que a natureza criou como ornamento da vida selvagem. Os médicos são leões, os advogados majestosas baleias que patrulham o oceano, os arquitectos astutas serpentes predadoras e os engenheiros doutos milhafres. Um historiador é, por outro lado, um daqueles insectos de cores atractivas, cujo bater de asas delicia qualquer entemólogo. Mas ao contrário dos leões, das baleias, das serpentes ou do milhafre, o pequeno insecto multicor limita-se a existir num plano etéreo até ser consumido. Provavelmente por um batráquio bem falante.
Enquanto os médicos, os advogados, os engenheiros (mesmo os que se graduam ao domingo) ou os arquitectos valem o seu peso em ouro, um historiador deve justificar muito bem a sua existência. Não cura doentes, não constrói pontes, nem desenha arranha-céus, não defende criminosos nem ajuda a condenar inocentes. O seu tempo é todo livre, debruçado sobre livros e papéis velhos, olhando para quadros sem sentido aparente ou pedras inexpressivas cobertas de limo. Talvez por isso seja tratado como apêndice da ideia de progresso. Para alguns o mundo passaria bem sem esta casta, inexpressiva e frívola reunião de homens e mulheres cujo assunto se esgota no passado.
Pois bem, quando me falam na verdadeira epidemia de tudólogos que grassa pelas televisões, jornais, blogues e redes sociais, não fico assim tão admirado. Há anos que convivo com a tudologia em História e em História da Arte. Cada português é um potencial historiador (e não apenas a propósito do recente caso da venda dos Mirós, situação tão bem sintetizada por José Diogo Quintela) e cada terra para além do seu uso, tem um historiador para gáudio das câmaras municipais que convertem inaugurações de novos fontanários e rotundas em espectáculos do progresso.
Estes cursos, considerados por alguns como supérfluos, dispendiosos e mesmo contra produtivos por alguns burocratas são aliás os únicos para os quais a existência de um diploma é irrelevante. Qualquer médico, engenheiro, juiz ou jornalista pode tornar-se historiador, como provam os vários livros que todos os dias se publicam - nomeadamente as escandalosas biografias de reis e rainhas. Melhor, qualquer um, desde que saiba assinar, pode tornar-se emérito cultor do passado e até arriscar-se a ganhar um lugar de honra na Academia Portuguesa de História - vetusta instituição que escolhe «historiadores» deste os tempos do Estado Novo.
Quando nos levarão a sério? Provavelmente nunca, em Portugal. Há anos que o Brasil discute o ofício de historiador; nos EUA são várias as associações profissionais que pugnam pela redacção de guias deontológicos e no resto da Europa escrever história é firmar com honra um compromisso entre a sociedade contemporânea, a sua cultura e a educação. Por cá é ofício de publicista, actividade menor ou vulgar que qualquer um desempenha tenha acesso a caneta e papel ou câmara de televisão.
O panorama historiográfico português sintetiza-se na aparição mediática de alguns historiadores contra o partido no governo, apresentadores televisivos aspirantes à vaga deixada por J. Hermano Saraiva, uma ou outra entrevista sobre uma obra de arte notável tomada a alguém que nem é formado em História da Arte e uma instituição bancária que, por cima de todos, nos dá a lição maior: afinal de contas o Passado e a Arte - algumas dezenas de quadros com «manchas e rabiscos» - não constituem assuntos para entreter burguês. Podem valer muito.
Tanto que até contribuem para abater a dívida de um país.
Até ao dia de hoje, uma sexta-feira que não é treze, o único parecer com dois dedos testa, surgiu ontem num conhecido debate nocturno. Nesta balburdienta pocilga - ou piolheira, como preferirem - em que vivemos, saiu da boca do deputado Paulo Rangel. Propunha ele a selecção de uns tantos quadros miroseiros destinados a permanecerem em Portugal e com o produto da venda do que restasse, criar-se-ia um fundo destinado à compra de património que rigorosamente tenha algo a ver com Portugal.
Não é incomum surgirem peças de claro interesse nacional em leilões, desde jóias a quadros, livros, louças, móveis, mapas ou trajes que outrora pertenceram a colecções portuguesas. Saíram de Portugal devido a dotes, dispersão de heranças ou simples roubos perpetrados ao longo de séculos. Querem um exemplo? O "cabinet de Lisbonne", ainda hoje na posse do governo francês, creio que no Museu de História Natural, em Paris. Roubados centenas de exemplares durante as Invasões francesas, ainda por lá estão, sem que Lisboa exija a devolução do que nos pertence por direito. Os franceses sabem do que se trata e como ninguém reclama, o assunto não existe. Oxalá por cá tivéssemos um Dr. Zahi Hawass. Não temos, até porque segundo a opinião há dois séculos ditada pelo Senhor Napoleão Bonaparte, ..."todos os homens de cultura são franceses". Assim se justifica o esbulho.
O Caso Miró já é meramente político, pois a gritaria partidista logo tomou conta do assunto, precisamente num país onde os mais doutos políticos dificilmente distinguirão um quadro de Miró*, de um outro pintado por Guilherme Parente. À falta de laxantes, pílulas, acções de Bolsa, vírus da gripe das aves, "al-morródias, espandiloses, úrsulas nervosas, alcoólicos invertebrados", tribunais e juntas de freguesia que fecham ou robalos para distribuição, temos telas e desenhos. Antes assim, o nível está colocado uns degraus acima.
Neste post tentei ironizar com o militante maguérrismo que pela imprensa escrita e tv grassa, mas já compreendi que a mensagem não passou, houve quem a tivesse levado muito à letra. Apenas para dar um exemplo absurdo do país em que vegetamos, os escabrosamente miseráveis 6 milhões de Euro que Portugal recebeu devido ao roubo holandês das peças da colecção Jóias da Coroa, foram usados para a aquisição de um Tiepolo. A ninguém terá ocorrido que de forma rotineira são realizados leilões onde surgem peças de joalharia - mencionemos igualmente as condecorações raras - outrora pertencentes a monarcas portugueses. Os Orleães e os Hohenzollern-Sigmaringen, por exemplo, venderam jóias e muitíssimas outras peças que vieram de Lisboa. Os casamentos, as heranças pela morte de parentes que não deixaram sucessores directos - apenas estou a recordar os casos de SS.MM. Dª Amélia e D. Manuel II -, fizeram dispersar bens que poderiam ter sido adquiridos pelo Estado português.
É conhecido o caricato caso do piano - regalem-se com a imagem, pois é o que fica - que pertenceu a Dª Maria Pia e mais tarde, a Dª Amélia . Fazia parte do conjunto de móveis decorados com porcelanas de Saxe que ainda hoje podemos ver no Palácio da Ajuda. Este piano foi vendido num leilão, sem que um único representante do Estado português tivesse estado presente. Trata-se já de uma questão de descarada falta de interesse, não sei se pela costumeira boçalidade de certas autoridades, ou devido à conhecida reserva mental política que tão bem caracteriza o actual estado de coisas.
Há cerca de três anos, foi vendida uma aigrette de brilhantes que pertenceu à Rainha D. Amélia. Está agora no cofre da Ajuda? Não. Atingiu a soma de 25.000 €, ou sejam, cinco mil contos, 1/6 do preço do tal BMW que o Sr. Francisco Assis embirrou em querer comprar para uso do seu grupo parlamentar:
- "Se calhar queriam que andássemos de Renault Clio, não?!"
Se vivêssemos num país com novecentos anos de história, e não num sítio mal afamado, a resposta seria esta:
- "Claro que queremos, especialmente se for pago, abastecido, segurado, mantido e conduzido por si. Isto é extensível não só ao seu partido, mas também a todos os outros. A todos, sem excepção."
* Afogados os portugueses em conversas do chácha de "empreendedorismo" - é assim que se diz e escreve? -, negócios, balanços, activos à disposição e outros etc da plutocracia, a decisão peregrina de colocar 85 "Mirós" num leilão por atacado, não lembra nem ao diabo. Nem sequer parece ser coisa de tão brilhantes intelectos financeiros. O que tem a dizer, Sr. Pires de Lima?
Certos ditos liberais prestam-se ao ridículo. Depois admiram-se que os apodem de ignorantes ou culturalmente analfabrutos.
Luís M. Jorge:
«O autor deste boneco é o tal Mi-ró. Ele disse que tinha demorado a vida inteira para pintar como uma criança…. Se tivesse falado antes com os meus filhos demorava… cinco minutos hihihihihi!!! A Carlota ainda ontem me pintou três Mirós na parede quando chegou das Doroteias… lol. Agora vou vendê-los à quermesse por quinze milhões d’euros e arrasar nos saldos no El Corte Inglés e comprar outro livro do papa Francisco para dar à minha sogra e ajudar os pobres. Deus no céu e eu na terra, qu’chiiiique!!!…»
Há uma década, durante uns dias algo se disse acerca do estranho roubo de jóias pertencentes à Coroa portuguesa. Peças inestimáveis pelo valor histórico, artistico e gemológico, eram testemunhos escondidos de outros tempos e de uma outra forma de organização do Estado.
Foi pago o valor do seguro acordado, uns míseros seis milhões de Euro que provavelmente, nem sequer cobrem o valor das pedras surripiadas por profissionais contando com a conivência de gente responsável pelo museu holandês, onde por infelicidade foram expostas. Surgiram petições, consecutivos programas televisivos, entrevistas a cicrano e beltrano? Não. Deu-se o caso de qualquer demissão por parte de quem autorizou a saída das peças? Não. Alguém despoletou qualquer processo para a averiguação de responsabilidades? Não me lembro. Porventura foi aventada a urgência da exposição permanente daqueles símbolos da realeza, uma forma das peças poderem ser apreciadas e valorizadas por portugueses e estrangeiros? Nunca ouvi um murmúrio acerca dessa óbvia necessidade. Pelo contrário, sempre que alguns exemplares da colecção surgiram em exposições no estrangeiro, por lá se levantou a razoável interrogação acerca das razões pelas quais as peças não eram mostradas em Portugal. Aliás, esta sugestão apresenta desde logo alguns inconvenientes, desde logo aquela incómoda e remota possibilidade de despertar ideias que de todo agradam à gente do actual esquema vigente. Em suma, durante alguns dias choramingaram à maneira do crocodilo e logo de imediato viraram as atenções para um adenovírus qualquer.
Anda por aí um tremendo berreiro a respeito da colecção Miró. Compreendo a justa indignação. Pelo que se diz, o valor atribuído às peças rondará os quarenta milhões de Euro, uma mísera gota de água naquele oceano de institucional roubalheira terceiro-republicana que foi o BPN, um perfeito símbolo do Estado que temos e do estado a que a nação portuguesa chegou.
Bem vistos os números e os factos, qualquer jackpotista do Euromilhões, por muito maguérre que seja, poderá adquirir as obras e num estalar de dedos converter-se-á num émulo do Sr. Joe Berardo. Vender as peças em leilão, consiste num disparate que em primeiro lugar prejudica quem autoriza tal coisa. A opinião pública mainstream anda sempre à cata de indignações, vistam-se elas de que roupagens forem e neste caso, umas dúzias de telas são motivo de regozijo para a jogatina política e correspondente preenchimento de telejornal. Ao mesmo tempo do apresentar desta decisão como ..."mais um crime lesa-pátria!", há quem desde logo coce a rotundona barriga e a inevitável barbicha, vendo assim confirmada a narrativa da direita estúpida, inculta, boçal. O pior é que quanto a este assunto dou-lhes razão, embora suspeite que no caso da decisão ter sido outra, as mesmíssimas vozes poderiam ter gritado "continua a roubalheira BPN, em vez de venderem activos que cubram uma parte do buraco, conservam as telas e optam pelo roubo de pensões". Seria assim, alguém duvida?
Pouco ou nada entendo de arte e muito menos ainda de mercados, leilões, trendysmo, instalações de ferragens, canned shit, tampaxes decorativos, tijolos empilhados ou vidros partidos. Muito a sério, apenas me parece que esta colecção Miró deveria ser aproveitada para exibição permanente em Portugal. Saiu-nos caríssima, tem um valor ínfimo quando comparada com o buracão financeiro em que o Estado voluntariamente se atolou e pasme-se, decerto fará as delícias de muita gente ansiosa por passar a considerar o catalão como um já-quase português de gema. Imaginem a possibilidade dominical de uma dona Judite de Sousa, risonhamente comentando o artista como ... "o mais português pintor espanhol! Teremos mirosistas profissionais para todos os gostos, capazes de fazer escancarar as espantadas bocas de quem nunca ouviu a estória do rei que ia nu. Talvez o Sr. Sócrates tenha algo de filosofal a acrescentar daqui a uns dias, até porque para alguns, é o tudólogo do momento: ..."ahuéra, Miró és él más pórtuguês pintór espánhuél!"
No meio desta balbúrdia, apenas os ingleses parecem ter tino. Se é certo consistir numa asneira a concentração de todas as peças no museu do Chiado - que nesse caso deveria denominar-se Museu Miró & Outros - , não existe qualquer dúvida de poder ser a colecção incluída no agora recorrente rol de produtos de valor acrescentado, enfim, num chamariz de turistas. Com um bocadinho de sorte, a EDP que já anda a erguer um "Centro Cultural" mesmo diante do persistentemente vazio novo Museu dos Coches, poderia ser persuadida a albergar a mostra.
O argumentário que tem por base a insuficiência do dinheiro tem, a miúdo, uma larga precedência sobre os restantes argumentos utilizados no debate público, mais que não seja pelo facto de, como sói dizer-se, não se fazerem omeletas sem os indispensáveis ovos. Para que fique bem claro para o grosso dos leitores que me acompanham, não pertenço, como decerto já repararam, ao campo dos que preconizam o envolvimento do poder estadual em tudo o que gira em torno do sol, mas há, em certas circunstâncias e em certos contextos, excepções à regra. O caso dos 85 Miró em mãos do BPN é, a este respeito, um magnífico exemplo das sobreditas excepções à regra. Como foi extensamente noticiado nos media, o Estado português, representado pelo discretíssimo Jorge Barreto Xavier, entende que a colecção de Miró pertencente ao BPN, que irá brevemente a leilão, não é, sublinhe-se, uma prioridade. Reparem que não estou, propriamente, a advogar uma política global de subsidiação da arte ou do património artístico, mas a verdade é que a saída desta colecção para o estrangeiro, feita, como se sabe, com o objectivo de colmatar financeiramente as roubalheiras dos antigos patrões do BPN, é, atendo-me à mais pura das verdades, uma asneira de proporções diluvianas. A venda desta colecção é, no fundo, o resumo perfeito de uma gestão criminosa que, não obstante a indignação social que legitimamente gerou, permanece judicialmente intocada. Porém, o que verdadeiramente releva desta venda bêpêneira é o total descaso que os nossos governantes fazem da cultura artística. Hoje, a política quotidiana faz-se, as mais das vezes, com uma folha de excel mui polida, na qual as contas dos teres e haveres de cada um surgem assepticamente bem esgaravatas. Num universo deste calibre, não há, manifestamente, espaço para prioridades mais comezinhas. É certo que este problema não é um exclusivo de Portugal, pois em Espanha, para dar um pequeno exemplo, os responsáveis políticos governativos têm-se debatido, ultimamente, com problemas similares, devido ao facto de colecções artísticas de alto gabarito estarem, sem a menor oposição pública e privada, a "fugir" para cantos financeiramente mais desafogados. Há quem diga que isto é a globalização do mercado coleccionista, em que uns, inteligentemente, põem e dispõem, e outros, sobretudo os arruinados, comem e calam. A lógica é pungente, mas oblitera um aspecto fundamental: a saída destas colecções é, inegavelmente, um estupro na identidade cultural dos países afectados por esta contabilidade mecanicista. O que mais irrita no caso destes Miró é a leviandade com que se utiliza o argumento económico, deixando automaticamente de lado considerações de outra ordem. Se a secretaria de Estado da cultura servisse, realmente, para algo de útil, é óbvio que esta colecção, pertencente a uma instituição nacionalizada (logo, pública), estaria, neste preciso momento, a ser reconduzida para algum museu nacional. Mas não, Barreto Xavier, trazendo à liça, pela enésima vez, a sua crudelíssima irrelevância política, prefere dizer que o Estado português dispõe de outras prioridades. E assim se vai desfazendo o acervo cultural de um país.