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Não valerá a pena tentarem agora disfarçar. Durante umas semanas, os crânios da nossa imprensa escrita e televisiva garantiram que apenas a "mudança" interessaria a Itália. Fazendo contas traduzidas em termos de uma nossa oportunidade caseira, isso traduzir-se-ia numa clara vitória da esquerda do sr. Bersani. Em simultâneo, o sr. Monti era apresentado como um homem sério e afastado da partidocracia e assim sendo, uma parte da solução. O bunga-bunguês Berlusconi ressurgia como o pérfido palhaço do sistema e desde já condenado a uma esmagadora derrota. Mas terão os nossos comentadeireiros escutado uma única vez aquilo que o Balsemão transalpino disse durante toda a campanha? Parece que não, pois se assim fosse, talvez tivessem sido obrigados a imaginosos artigos e a outro tipo de charlas.
Na Itália, o negregado Berlusconi disse precisamente aquilo que em Portugal, o agora levado em ombros Seguro tem repetido até à exaustão. A grande diferença é que um é de "direita", um imbecil. O outro é de "esquerda" e portanto, um santinho.
Há pouco, numa das minhas contumazes deambulações feicebuqueiras, deparei-me com uma agudíssima análise do Jorge Nascimento Rodrigues, que permito-me citar aqui no blogue: "A verdadeira divisão é entre os que ainda aceitam jogar segundo as regras da troika em diversos graus (Bersani e Monti) e os que, por demagogia populista ou convicção, se opõem, como todos os grupos e partidos que se integram na coligação liderada por Berlusconi ou os integrantes do movimento de Beppe-Grilo (verdadeira surpresa eleitoral, game changer no atual contexto, sendo o segundo partido mais votado, à frente do próprio partido de Berlusconi) (...) Um membro do Partido de Bersani já disse que por este andar haverá novas eleições, como na Grécia. Só que Beppe Grillo não é Siryza e Berlusconi e seus apoiantes não são o PASOK para servir de muleta a Antonis Samaras. È um contexto radicalmente diferente". O cerne destas eleições prende-se exactamente com o facto, estranho para alguns, de Berlusconi e Grillo não serem comparáveis aos actores políticos da desgraça grega. Há diferenças notáveis entre os eurocépticos italianos e os eurocépticos gregos, ainda que a semelhança principal entre ambos reconduza-se ao firme repúdio da actual arquitectura de gestão macroeconómica do euro. O que as eleições italianas patentearam foi uma divisão radical entre os que partilham os postulados merkelianos e eurocráticos de gestão do euro, e os que preferem uma via autonomista que recupere soberania e voz activa na resolução dos problemas políticos e económicos nacionais. Sim, caríssimos leitores, o que está em causa é tão-só saber até que ponto os italianos aderiram ao federalismo aditivado dos eurocráticos de Bruxelas e Berlim. Pelos vistos, a adesão não foi em massa, e por mais que se critique Berlusconi - e eu estou longe, bem longe, de ser um admirador do Casanova cantor -, e muitos fá-lo-ão, uma coisa é certa, o senhor renasceu das cinzas, qual fénix perdida nas ladeiras da proscrição judicial. O futuro será incerto, e as próximas horas, dias e meses revelarão se os italianos estão ou não dispostos a suportarem, silente e calmamente, a dureza austeritária. Algo me diz que não. Mais: esta crise porá a nu, definitiva e derradeiramente, a pobreza política que domina as estruturas políticas europeias. Com que consequências? Só o futuro o dirá.
O descalabro europeu, visionado em directo por todos os povos europeus forçosa e coercivamente congregados nesta (des)união, está atingir o clímax do ridículo espampanante. Em França, país conhecido pelo seu apego por engenharias sociais construtivistas pouco consentâneas com a realidade, vive-se um ambiente de caça às bruxas em torno dos "ricos". Depardieu é ostracizado pela sua coragem em dizer não ao confisco predatório das elites francesas. O affaire Depardieu tem uma certa semelhança com o affaire Dreyfus: a acusação fácil e complacente a um indivíduo subitamente erigido como a representação mais sublime dos males existenciais da velha pátria francesa. Foi assim no final do século XIX, num ambiente de profunda crise política da corrupta III República francesa, é, também, assim nesta V República francesa dominada agora pelo socialismo recalcitrante. A fúria fiscal hollandista, retintamente merceeira como no famoso quadro de Brueghel o Jovem, é o prenúncio do fim. As trevas do caos económico adensam-se furiosamente, inclementes às vozes da razão.
Pieter Brueguel o Jovem, O Cobrador de Impostos
Se andarmos um pouco mais para sul deparar-nos-emos com um cenário igualmente grotesco. Mario Monti anunciou a sua demissão recolocando a política italiana no seu trilho habitual: intriga, espectáculo e insídia, servidos em doses homeopáticas. O regresso do berlusconismo à cena política é uma espécie de confirmação fársica do mito do eterno retorno nietzscheano. Os italianos não se cansam do espectáculo, mais, parece que vivem do e para o espectáculo. O espírito "meridionalista" parece ter infectado sem dó nem piedade todo o estamento político, não poupando, também, alguns analistas económicos abonados por uma lucidez que, pelos vistos, encontra-se agora em debandada. Há dias o sempre pertinente Ambrose Evans-Pritchard dizia que a saída de Monti será a única forma de salvar a Itália do precipício económico, porém, o inteligente jornalista olvidou o facto nada despiciendo de a saída do actual primeiro-ministro italiano poder instigar um crescendo na instabilidade política. Itália dispõe indiscutivelmente de alguns dados macroeconómicos positivos - facto pouco mencionado na imprensa de referência -, que, num hipotético cenário de saída do euro, seriam, sem dúvida, de um préstimo assinalável na recuperação futura do país, sem embargo duvido da benignidade de um abandono unilateral agitado pelo populismo mais corrupto e demagogo. É terrível verificar quão distante está a Itália contemporânea da tão ansiada utopia patriótica de Giacomo Leopardi, brilhantemente vertida no famoso poema "All' Italia". Talvez o bardo italiano tivesse razão quando escreveu que "Ma la gloria non vedo, Non vedo il lauro e il ferro ond'eran carchi, I nostri padri antichi." O que falta à política italiana é um gesto de glória, um veio de patriotismo que proteja e indique um desígnio: o desígnio do bem comum.
Os dois exemplos acima citados são um sinal bem evidente da fraqueza de liderança que perpassa o edifício europeu. Draghi, na sua tão costumeira língua de pau, veio agora, ao referir-se à periferia sulista, falar em progresso doloroso. A novilíngua bancocrática é particularmente repugnante. Esconde o óbvio e omite a crueza da realidade, tudo isto em nome do sacrossanto princípio da inviolabilidade das prerrogativas de uma finança desnacionalizada. Se, num assomo de realidade, Draghi dissesse que o que verdadeiramente tem ocorrido nos países da periferia é um retrocesso doloroso talvez o assalto fosse menos descarado. França e Itália não pertencem inteiramente à periferia habitada por Espanha, Portugal e Grécia, mas, a deriva política de ambos é um sinal da débâcle que aguarda a União desunida a curtíssimo prazo. O sovietismo de antanho voltou, sob novas vestes, para dividir e reinar. Perante isto, o melhor e mais avisado é suspirar com Liszt, tentando esquecer o imperium dos tolos menores que lideram, hoje, dois países que, queira-se ou não, não merecem isto.