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Berlim, 1 de Setembro de 1986
Há momentos, o telejornal da RTP mostrava a Portugal, o semblante ácido e despeitado do sr. Jerónimo de Sousa, denunciando as comemorações que hoje se realizam em Berlim. Se hoje ainda existisse a URSS, aquele que seria o potencial Quisling controlado pelos senhores da Lubianka, manifesta toda a sua revolta por essas comemorações da queda do Muro da Vergonha, terem um carácter "marcadamente anti-comunista". Mais, fala de um mundo hoje "mais perigoso e injusto, com menos democracia e igualdade". Como se aquilo que nos reserva fosse outra coisa senão isso mesmo: a miséria, a opressão e a morte a prazo?!
Mas quem são estes anormais - é o termo mais suave - que insistem na prepotência, na relativização do extermínio de dezenas de milhões? Quem é este homem que alterna uma oportuna bonomia em períodos eleitorais, com o mais profundo rancor para com uma sociedade infinitamente mais livre e justa que aquela que ele próprio e os seus sequazes insistem em querer obrigar a esmagadora maioria que os rejeita?
Visitei Berlim-leste em 1986. Uma cidade plena de ruínas da II Guerra Mundial, triste, cinzenta e onde era impossível estabelecer qualquer tipo de diálogo com habitantes que nos olhavam à distância com uma mescla de medo e curiosidade. Uma cidade policiada a cada esquina, com poucas lojas cheias de prateleiras vazias. Jamais esquecerei a experiência à saída daquele "supermercado" reservado a quem possuía numerário ocidental - os poucos turistas e a gente do Partido SED -, quando tendo comprado alguns chocolates, batatas fritas e alguns outros snacks provenientes do Ocidente, deparei com três miúdos que olhavam fixamente o meu prometedor saco de plástico. Ofereci-lhes tudo quanto comprara e não me arrependi, tendo há muito a certeza de que pouco tempo faltaria para que eles próprios pudessem ter uma vida normal, sensivelmente idêntica à dos seus irmãos da Alemanha Ocidental.
Quantas discussões na faculdade, quando em Reuniões Gerais de Alunos da FLL, alertava os garotos da Juventude Comunista para o fim próximo das suas ilusões e esperanças de engrandecimento pessoal às custas daqueles que nas ruas venceram os seus pais em 1975. Não se informavam, não liam os relatórios económicos internacionais, nem queriam saber do fortíssimo movimento dissidente que minava os alicerces do poder soviético. Aqueles meninos que gostavam de bajular os professores do PC, não acreditavam e acompanhados por docentes que hoje fazem parte do sistema rotativo, ameaçavam com a violência física e pior que isso, com folhas volantes directamente saídas das policopiadoras da Associação de Estudantes do PC. Nelas, escarradas a tinta preta que sujava os dedos de quem manuseava os papéis e as mentes de quem conseguia chegar ao fim dos textos, liam-se o tipo de calúnias que envolviam famílias inteiras, rebaixando os seus autores ao nível mais sórdido imaginável.
Era esta, a superioridade moral comunista. A RDA que em 1986 proporcionava aos seus cidadãos um nível de vida que era apenas de perto de 30% daquele que os seus compatriotas do ocidente viviam, deixou de existir. Abjecto simulacro de Estado apenas comparável ao protectorado que outrora o Reich exercera sobre a "independente Boémia-Morávia" do presidente Hacha (1939-45), a RDA coinsistia num monturo de todas as indignidades, esmagada pelo exército de extorsão e de ocupação que tudo controlava e que tinha a última palavra nos negócios do Estado. Cidades onde a decadência extrema contrastava com a opulência exibida pelos comparsas locais de Álvaro Cunhal, a RDA foi um caótico desastre ambiental, plena de lixeiras a céu aberto, terrenos e rios quimicamente contaminados, autobahns dos anos trinta que ainda acusavam as marcas dos bombardeamentos da II Guerra Mundial: ruínas a perder de vista, demolição de preciosos edifícios do rico passado arquitectónico da desaparecida Prússia e uma intencional política de submissão ao ocupante, eis a verdade que a zona de ocupação soviética expunha aos olhos do mundo.
Proveniente do até então considerado "país mais pobre da Europa Ocidental", chocou-me a quase indigência de uma população cabisbaixa, mal vestida e medrosa. Discos de música clássica a preço de saldo, sessões quase gratuitas de teatro de Brecht, uebbermensch DDR nas Olimpíadas, trabalho para todos a 300$00 por dia, eis o curto e incisivo resumo daquilo que durante mais de três décadas foi a zona soviética da Alemanha. O regime do SED, protector e financiador de terroristas de várias cambiantes, além de vigiar toda a população, conseguiu a proeza de de encerrar na sede da STASI, processos incriminadores de 6.000.000 de alemães-orientais, recorrendo a todo o tipo de violência, fosse ela moral ou física. O descarado nepotismo, o incentivo à delação, a tortura, o pagamento de testemunhos inventados, a paranóia controleira e finalmente, a criação de uma polícia política - a Staatssicherheit - que era doze vezes mais vasta que a Gestapo, garantia o despótico poder de gente que como Honnecker, no plano pessoal enriquecia com o tráfico de armas e de estupefacientes. Após a curta visita ao "mais poderoso e próspero país do leste europeu", passei a ver Portugal de outra forma e senti-me infinitamente mais rico, livre e afortunado que qualquer um dos súbditos do gauleiter de Pankow, o sr. Erich Honnecker.
Com a apressada fuga de Honnecker para a protecção do Chile do general Pinochet, a chamada RDA volatilizou-se em menos de um ano e hoje, embora existam claras discrepâncias entre os antigos habitantes ocidentais e orientais, o poder de compra atinge 70% daquele que é auferido pelos alemães da RFA. O progresso foi impressionante e sem paralelo na Europa do pós-guerra. As cidades reconstruídas, um inegável crescimento económico, o fim do medo e das perseguições e sobretudo, a auto-determinação de cada um e a reparação da injustiça da divisão imposta por americanos, ingleses, franceses e soviéticos, eis o balanço a fazer.
Os comunistas de Jerónimo de Sousa, atrevem-se a falar das "claras desigualdades" entre os alemães, procurando esconder a evidência do fracasso do modelo que os seus tutores de Moscovo impuseram ao país ocupado. Como se a humilhação da menoridade mental, o laxismo, a prepotência, a ausência de liberdade de pensar, circular, escrever ou criar fosse o que fosse, não tivesse sido da inteira responsabilidade dos comunistas? Países onde os PC's impuseram a pena de morte, o controle da circulação, a proibição do crescimento pessoal de cada um, o acesso à preferência por este ou aquele conforto, devido à apropriação dos recursos gerais por uma ínfima minoria de tiranos impostos pelo invasor de 1945. Como foi possível transformar a Prússia, a antiga e poderosa cabeça do Império Alemão, numa terra escalavrada pela humilhação, pobreza e atraso? Os comunistas conhecem a receita e o privilegiado sr. Jerónimo de Sousa - que decerto pode ter beneficiado de visitas pagas pelos seus tutores soviéticos - deve ter conhecido a verdade que ainda hoje quer esconder.
Pouco tempo após a muito aguardada e feliz morte da RDA, caía o regime de outro assassino de massas, o ditador Nicolae Ceausescu. Ladrão, torcionário, escandalosamente inepto e humanamente péssimo, caiu varado pelas balas de um pelotão de fuzilamento. O espectáculo oferecido pela TV a um mundo estupefacto, escandalizou-me, ficando a suspeitar da viabilidade da inauguração de uma democracia engendrada naqueles moldes. Hoje, ao ouvir Jerónimo de Sousa, sinto-me por uma fracção de segundo, tentado a compreender a pressa dos romenos em enterrar aquele letal passado de vergonha.
Desde sempre julguei os dirigentes comunistas, como gente cujo coração se encontra amuralhado por rolos de arame farpado. No entanto, a verdade é outra e bem mais trágica, porque o órgão afectado é afinal, o cérebro.
À parte alguns oportunistas de sempre, o dia de hoje pode muito bem ser considerado - como diz Angela Merkel -, como do Dia da Felicidade.
E aqui vos deixo o belíssimo Hino que foi do Sacro Império Romano-Germânico, do Império Austro-Húngaro e que hoje simboliza a Alemanha. Inicialmente chamou-se Deus Salve o Imperador e hoje é o Deutschland Uebber Alles. Composto por Joseph Haydn.