Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Um texto sucinto (2)

por Samuel de Paiva Pires, em 01.06.11

Caro Orlando,

 

Como lhe disse, estou com pouco tempo e não quero dispersar a minha atenção pela net, pelo que vou tentar ser sucinto e  ir directo às suas duas premissas, não sem antes dedicar alguns parágrafos a algo que me parece necessário e que recorre do seu último post: filosofia não é ciência. E quando depreende que entendo por ciência apenas o que nos chega do positivismo depreende mal.

 

Na linha de Gianfranco Pasquino, também nós consideramos que “se a Ciência Política pretende apetrechar-se devidamente para enfrentar a especulação teórica, deve confrontar-se com a Filosofia Política e redefinir-se em relação a ela”, até porque uma das componentes fundamentais desta última é a análise da linguagem política e a metodologia da Ciência Política1.

 

Para além das armadilhas do cientismo e do relativismo, importa realçar que, na realidade, aquilo que distingue a ciência da mera opinião é a metodologia científica e não o conteúdo das permanentes conjecturas e refutações que enformam o corpo de postulados e premissas de uma determinada teoria e a fazem evoluir, pelo que, naturalmente, “o conhecimento obtido através de uma dada metodologia, isto é, um sistema de regras explícitas e procedimentos em que a pesquisa se baseia”2, só é válido se essa metodologia for efectivamente científica.

 

Como ensinou Raymond Aron, a respeito da teoria da ciência de Max Weber, “a acção científica é por isso uma combinação de acção racional em relação com um fim e de acção racional em relação com um valor que é a verdade. A racionalidade resulta do respeito pelas regras da lógica e da investigação, respeito necessário para que sejam válidos os resultados obtidos”3. Desta forma, a objectividade em Ciências Sociais está intrinsecamente relacionada com a necessidade de rigor metodológico pelo que “em qualquer pesquisa complexa e de rigor a exposição e o debate do método não são questões de mero academismo”4, até porque, como ensina António Marques Bessa, “as conclusões encontram-se organicamente ligadas aos processos aplicados e por isso mesmo a metodologia costuma ocupar com justiça um lugar próprio, como átrio de toda a posterior construção, evitando a esta abater-se como vítima das primeiras fragilidades”5.

 

A este respeito fico-me por aqui senão depois queixa-se que eu escrevo textos longos e de cariz enciclopédico. E agora vou directo às suas duas premissas.

 

A respeito da questão da neutralidade do estado, é um debate em curso, em especial entre os próprios liberais, quanto à fundamentação em termos morais, que está longe de terminado. Se é uma impossibilidade lógica ou não, parece-me ser mais uma pergunta do que uma premissa definitiva. Ressalvo, contudo, que uma coisa é o estado voluntária ou involuntariamente, em maior ou menor grau, contribuir para a formatação da moralidade. Outra é fazê-lo coercivamente - e aí, o Orlando parece esquecer-se constantemente de que para ser classificado como coercivo, à indução de um determinado comportamento corresponde a ameaça de violência no caso da sua não adopção.  

 

Em relação à ética de Hayek, e se é certo que este subscreve várias e mesmo contraditórias, colocando em causa muitas das suas assumpções dadas as tensões entre correntes opostas, desde logo a começar pela irreconciliável tensão entre Hume e Kant, quanto ao utilitarismo tem muito que se lhe diga. Em traços gerais, Hayek utiliza vários argumentos de pendor utilitarista mas, no fim, não é um utilitarista, sendo um feroz crítico deste, porquanto este é uma teoria racionalista construtivista por excelência, que não se consegue reconciliar com a instância fortemente anti-racionalista do seu pensamento. E a este respeito, se assim lhe aprouver, providencie-me um e-mail que terei todo o gosto em amanhã tratar de digitalizar e enviar-lhe as páginas do livro de Chandran Kukathas de que lhe falei, dado que não o encontrei por aí em versão digital e que qualquer tentativa minha de o resumir só iria retirar capacidade explicativa à excelente exposição que o autor faz. A sua segunda premissa está rotundamente errada, ao contrário do que o Orlando pensa. 



1 - Gianfranco Pasquino, Curso de Ciência Política, 2.ª Edição, Cascais, Princípia, 2010, p. 27.

2 - Carlos Diogo Moreira, Teorias e Práticas de Investigação, Lisboa, ISCSP, 2007, pp.13-14.

3 - Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 7.ª Edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2004, p.480.

4 - António Marques Bessa, Quem Governa? Uma Análise Histórico-Política do Tema da Elite, Lisboa, ISCSP, 1993, p. 11.

5 - Ibid., p. 11.

publicado às 00:40





Posts recentes


Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2013
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2012
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2011
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2010
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2009
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2008
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2007
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D

Links

Estados protegidos

  •  
  • Estados amigos

  •  
  • Estados soberanos

  •  
  • Estados soberanos de outras línguas

  •  
  • Monarquia

  •  
  • Monarquia em outras línguas

  •  
  • Think tanks e organizações nacionais

  •  
  • Think tanks e organizações estrangeiros

  •  
  • Informação nacional

  •  
  • Informação internacional

  •  
  • Revistas