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Caro Orlando,
Como lhe disse, estou com pouco tempo e não quero dispersar a minha atenção pela net, pelo que vou tentar ser sucinto e ir directo às suas duas premissas, não sem antes dedicar alguns parágrafos a algo que me parece necessário e que recorre do seu último post: filosofia não é ciência. E quando depreende que entendo por ciência apenas o que nos chega do positivismo depreende mal.
Na linha de Gianfranco Pasquino, também nós consideramos que “se a Ciência Política pretende apetrechar-se devidamente para enfrentar a especulação teórica, deve confrontar-se com a Filosofia Política e redefinir-se em relação a ela”, até porque uma das componentes fundamentais desta última é a análise da linguagem política e a metodologia da Ciência Política1.
Para além das armadilhas do cientismo e do relativismo, importa realçar que, na realidade, aquilo que distingue a ciência da mera opinião é a metodologia científica e não o conteúdo das permanentes conjecturas e refutações que enformam o corpo de postulados e premissas de uma determinada teoria e a fazem evoluir, pelo que, naturalmente, “o conhecimento obtido através de uma dada metodologia, isto é, um sistema de regras explícitas e procedimentos em que a pesquisa se baseia”2, só é válido se essa metodologia for efectivamente científica.
Como ensinou Raymond Aron, a respeito da teoria da ciência de Max Weber, “a acção científica é por isso uma combinação de acção racional em relação com um fim e de acção racional em relação com um valor que é a verdade. A racionalidade resulta do respeito pelas regras da lógica e da investigação, respeito necessário para que sejam válidos os resultados obtidos”3. Desta forma, a objectividade em Ciências Sociais está intrinsecamente relacionada com a necessidade de rigor metodológico pelo que “em qualquer pesquisa complexa e de rigor a exposição e o debate do método não são questões de mero academismo”4, até porque, como ensina António Marques Bessa, “as conclusões encontram-se organicamente ligadas aos processos aplicados e por isso mesmo a metodologia costuma ocupar com justiça um lugar próprio, como átrio de toda a posterior construção, evitando a esta abater-se como vítima das primeiras fragilidades”5.
A este respeito fico-me por aqui senão depois queixa-se que eu escrevo textos longos e de cariz enciclopédico. E agora vou directo às suas duas premissas.
A respeito da questão da neutralidade do estado, é um debate em curso, em especial entre os próprios liberais, quanto à fundamentação em termos morais, que está longe de terminado. Se é uma impossibilidade lógica ou não, parece-me ser mais uma pergunta do que uma premissa definitiva. Ressalvo, contudo, que uma coisa é o estado voluntária ou involuntariamente, em maior ou menor grau, contribuir para a formatação da moralidade. Outra é fazê-lo coercivamente - e aí, o Orlando parece esquecer-se constantemente de que para ser classificado como coercivo, à indução de um determinado comportamento corresponde a ameaça de violência no caso da sua não adopção.
Em relação à ética de Hayek, e se é certo que este subscreve várias e mesmo contraditórias, colocando em causa muitas das suas assumpções dadas as tensões entre correntes opostas, desde logo a começar pela irreconciliável tensão entre Hume e Kant, quanto ao utilitarismo tem muito que se lhe diga. Em traços gerais, Hayek utiliza vários argumentos de pendor utilitarista mas, no fim, não é um utilitarista, sendo um feroz crítico deste, porquanto este é uma teoria racionalista construtivista por excelência, que não se consegue reconciliar com a instância fortemente anti-racionalista do seu pensamento. E a este respeito, se assim lhe aprouver, providencie-me um e-mail que terei todo o gosto em amanhã tratar de digitalizar e enviar-lhe as páginas do livro de Chandran Kukathas de que lhe falei, dado que não o encontrei por aí em versão digital e que qualquer tentativa minha de o resumir só iria retirar capacidade explicativa à excelente exposição que o autor faz. A sua segunda premissa está rotundamente errada, ao contrário do que o Orlando pensa.
1 - Gianfranco Pasquino, Curso de Ciência Política, 2.ª Edição, Cascais, Princípia, 2010, p. 27.
2 - Carlos Diogo Moreira, Teorias e Práticas de Investigação, Lisboa, ISCSP, 2007, pp.13-14.
3 - Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 7.ª Edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2004, p.480.
4 - António Marques Bessa, Quem Governa? Uma Análise Histórico-Política do Tema da Elite, Lisboa, ISCSP, 1993, p. 11.
5 - Ibid., p. 11.