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Hoje é um bom dia para relembrar um post que publiquei aquando da última Greve Geral, a propósito da existência de piquetes de greve, que aqui republico na íntegra:
(A minha cara se algum piquete de greve se atravessar no meu caminho em qualquer transporte público que eu consiga apanhar amanhã/hoje)
Dia de greve pretensamente geral é sempre um bom dia para relembrar os efeitos nefastos do sindicalismo salientados por Oakeshott e Hayek, e é também um dia de greve tão bom como qualquer outro para os portugueses libertarem a tensão acumulada com a crise e aviarem uns quantos piquetes de greve, que são apenas mais um repulsivo anacronismo sem lugar numa sociedade verdadeiramente democrática. Lembro que o o Art.º 57.º da Constituição da República Portuguesa apenas consagra o direito à greve, não fazendo qualquer menção a piquetes. Já o Art.º 21.º consagra o direito de resistência: "Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública."
Ou seja, o direito à greve não pressupõe piquetes de greve, e dado que a nossa liberdade acaba onde começa a dos outros, os que o desejem podem fazer greve à vontade, mas a partir do momento em que tentam impedir violentamente os que não querem fazer greve de trabalhar, legitimam moralmente que estes recorram também à violência para reparar a injustiça que lhes tentam impor. Ou não seja o trabalho de cada um uma componente primeira da sua propriedade privada e esfera de liberdade individual, as quais devem ser protegidas pelo estado da interferência de terceiros. Se este não o faz, resta aos próprios fazê-lo.
E aqui ficam duas passagens de Hayek, numa tradução livre minha:
«Os presente poderes coercivos dos sindicatos fundamentam-se principalmente no uso de métodos que não seriam tolerados para qualquer outra finalidade e que se opõem à protecção da esfera privada do indivíduo. Em primeiro lugar, os sindicatos dependem – numa extensão muito maior do que é comummente reconhecido – do uso de piquetes como um instrumento de intimidação. Que mesmo os chamados piquetes "pacíficos" são severamente coercivos e a apologia que destes é feita constitui um privilégio concedido por causa do seu suposto objectivo legítimo é demonstrado pelo facto de que estes podem ser e são usados por pessoas que não são trabalhadores para forçar os outros a formar uma união que eles irão controlar, e que também pode ser utilizada para fins puramente políticos ou para dar expressão à animosidade contra uma pessoa impopular. A aura de legitimidade que lhes é conferida porque os objectivos são muitas vezes aprovados não pode alterar o facto de representarem uma espécie de pressão organizada sobre os indivíduos que numa sociedade livre não deve ser permitida a qualquer agência privada.»
(…)
«O requisito essencial é que a verdadeira liberdade de associação seja assegurada e que a coerção seja tratada como igualmente ilegítima quer seja empregue a favor ou contra a organização, pelo empregador ou pelos funcionários. O princípio de que o fim não justifica os meios e que os objectivos dos sindicatos não justificam a sua isenção das regras gerais do direito deve ser rigorosamente aplicado. Hoje isto significa, em primeiro lugar, que todos os piquetes devem ser proibidos, uma vez que são não só a causa principal e habitual de violência, mas mesmo nas suas formas mais pacíficas são um meio de coerção.»
(A minha cara se algum piquete de greve se atravessar no meu caminho em qualquer transporte público que eu consiga apanhar amanhã/hoje)
Dia de greve pretensamente geral é sempre um bom dia para relembrar os efeitos nefastos do sindicalismo salientados por Oakeshott e Hayek, e é também um dia de greve tão bom como qualquer outro para os portugueses libertarem a tensão acumulada com a crise e aviarem uns quantos piquetes de greve, que são apenas mais um repulsivo anacronismo sem lugar numa sociedade verdadeiramente democrática. Lembro que o o Art.º 57.º da Constituição da República Portuguesa apenas consagra o direito à greve, não fazendo qualquer menção a piquetes. Já o Art.º 21.º consagra o direito de resistência: "Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública."
Ou seja, o direito à greve não pressupõe piquetes de greve, e dado que a nossa liberdade acaba onde começa a dos outros, os que o desejem podem fazer greve à vontade, mas a partir do momento em que tentam impedir violentamente os que não querem fazer greve de trabalhar, legitimam moralmente que estes recorram também à violência para reparar a injustiça que lhes tentam impor. Ou não seja o trabalho de cada um uma componente primeira da sua propriedade privada e esfera de liberdade individual, as quais devem ser protegidas pelo estado da interferência de terceiros. Se este não o faz, resta aos próprios fazê-lo.
E aqui ficam duas passagens de Hayek, numa tradução livre minha:
«Os presente poderes coercivos dos sindicatos fundamentam-se principalmente no uso de métodos que não seriam tolerados para qualquer outra finalidade e que se opõem à protecção da esfera privada do indivíduo. Em primeiro lugar, os sindicatos dependem – numa extensão muito maior do que é comummente reconhecido – do uso de piquetes como um instrumento de intimidação. Que mesmo os chamados piquetes "pacíficos" são severamente coercivos e a apologia que destes é feita constitui um privilégio concedido por causa do seu suposto objectivo legítimo é demonstrado pelo facto de que estes podem ser e são usados por pessoas que não são trabalhadores para forçar os outros a formar uma união que eles irão controlar, e que também pode ser utilizada para fins puramente políticos ou para dar expressão à animosidade contra uma pessoa impopular. A aura de legitimidade que lhes é conferida porque os objectivos são muitas vezes aprovados não pode alterar o facto de representarem uma espécie de pressão organizada sobre os indivíduos que numa sociedade livre não deve ser permitida a qualquer agência privada.»
(…)
«O requisito essencial é que a verdadeira liberdade de associação seja assegurada e que a coerção seja tratada como igualmente ilegítima quer seja empregue a favor ou contra a organização, pelo empregador ou pelos funcionários. O princípio de que o fim não justifica os meios e que os objectivos dos sindicatos não justificam a sua isenção das regras gerais do direito deve ser rigorosamente aplicado. Hoje isto significa, em primeiro lugar, que todos os piquetes devem ser proibidos, uma vez que são não só a causa principal e habitual de violência, mas mesmo nas suas formas mais pacíficas são um meio de coerção.»
(Sugestão musical para acompanhar a leitura deste texto)
Inspirado pelo meu post, o Filipe Faria escreveu um excelente texto, cuja leitura é indispensável, em que ele, como bom português à solta, observando directamente a realidade britânica contemporânea, onde o multiculturalismo coloca em risco as tradições culturais e políticas da Inglaterra, nos revela, entre várias ideias, esta: "Conhecendo bem a realidade de ambos os países, neste momento arrisco dizer que Portugal usufrui de uma maior liberdade de expressão."
Neste texto, o Filipe coloca em causa a defesa da democracia por Hayek, que se insere na tradição anglo-saxónica do liberalismo clássico, como forma de limitar o governo, consubstanciada na observação que faz do que se passa no Reino Unido. Mas Hayek estava alerta para os perigos advindos da miragem da justiça social (e do alargamento dos poderes do estado ao abrigo deste, como fiz notar no ponto 4 do meu post "Equívocos a respeito do liberalismo"), das coligações de interesses organizados que negoceiam com e sustentam os partidos políticos, e do positivismo legalista - que confunde a lei (Direito Natural) com legislação, em detrimento da primeira -, cujos efeitos combinados denomina por perversão democrática.
Assim como estão vários autores britânicos, como John Gray e Roger Scruton, que entre o liberalismo e o conservadorismo, com destaque para a inspiração em Hayek e Oakeshott, alertam para os perigos destas acepções modernas. Permitindo-me fazer corresponder a ordem espontânea de Hayek à civil association de Oakeshott, e a ordem de organização à enterprise association, e sabendo que os elementos dos dois tipos de ordem ou de associação se misturam na prática, podendo ser encontrados em vários estados, torna-se útil salientar que para Oakeshott a civil association não necessita de ser culturalmente homogénea mas apenas respeitar a lei acima da identidade cultural, ou seja, a comunidade deverá fundamentar-se no respeito a princípios abstractos e formais. Acontece que, segundo Gray, esta acepção kantiana é profundamente questionável e um calcanhar de Aquiles para o liberalismo e para o conservadorismo. A História recente mostra como é difícil que o estado sustente a sua autoridade apenas sob concepções de lei formais, abstractas e processuais, que assim se torna fragmentada e fraca. Esta ideia surgiu numa altura em que a identidade cultural era dada como garantida, quer por Kant quer pelos Founding Fathers americanos, sendo a identidade em causa a da Cristandade Europeia. Com o Iluminismo francês, a Revolução Francesa e a fragmentação desta identidade, tornou-se mais fraca a autoridade do estado com base em concepções abstractas (veja-se precisamente o caso do Reino Unido, com comunidades muçulmanas que desafiam constantemente o estado e rejeitam as normas tácitas de tolerância características dos britânicos, ou ainda o caso dos EUA, em que uma horda de minorias vai progressivamente tornando o estado cativo, tendo apenas o legalismo a uni-las)[1]. Roger Scruton assinala esta fraqueza e os seus reflexos práticos sob a denominação de falácia da agregação, em que dando o exemplo do Reino Unido evidencia como o multiculturalismo e o Estado Social se combinam de uma forma que é potencialmente destrutiva para a comunidade[2]. E também Hayek faz notar que a modernidade produziu um enquadramento que é altamente destrutivo das tradições intelectuais e morais europeias, que através do racionalismo construtivista e do relativismo produz morais inviáveis, ou seja, sistemas de pensamento moral incapazes de sustentar qualquer ordem social estável, que através de teorizações sociológicas contemporâneas e da corrupção da arquitectura e das artes (como Scruton e Gray demonstram) criam um clima cultural que é profundamente hostil à tradição e também à sua própria existência. Confrontamo-nos, assim, com uma cultura que tem ódio à sua própria identidade, tornando-se, em larga medida, efémera e provisória.[3]
Inspirados pelo Projecto Iluminista, os autores modernos e pós-modernos desenvolveram um caos moral, em que o abuso da razão, o objectivismo e o relativismo criaram um ambiente cultural, social e intelectual que é inimigo da tradição. Ao proporem ancorar a moralidade no racionalismo, o positivismo, o cientismo, o historicismo e o cepticismo conduziram naturalmente ao niilismo, construtivismo e planeamento social, e, consequentemente, ao utilitarismo e emotivismo. A rejeição de qualquer tipo de instituição ou código de comportamento que não seja racionalmente justificado parece ser uma característica distintiva da modernidade[4], o que talvez possa ajudar a explicar o que se passa no Reino Unido, já que os costumes britânicos são completamente postos em causa por este quadro.
Por outro lado, esta discussão relembrou-me um texto que escrevi por altura dos motins em Inglaterra em Agosto de 2011, e de várias discussões que surgiram na blogosfera sobre estes, em que às tantas o Bruno Garschagen colocou uma hipótese que me parece particularmente útil recuperar, e que vai no sentido do pensamento de Scruton a que aludi acima: Os criminosos de Londres são filhos do Welfare State e do multiculturalismo? Não se encontrará aqui também parte da explicação para o que se passa em Inglaterra? E mais, daqui lanço o repto ao caríssimo Filipe, caso ache(s) por bem, de elaborar(es) sobre algo que conhece(s) muito bem (ao contrário de mim), a Escola de Frankfurt, que em larga medida se faz sentir na academia britânica, e de nos ajudar(es) a perceber se e de que forma as ideias desta não são também em grande parte responsáveis por este ambiente.
Só para finalizar, quanto a Hayek, este propôs uma reforma das instituições democráticas em Law, Legislation and Liberty. Para além de demonstrar a vacuidade do conceito de justiça social, para tentar recuperar e/ou evitar a confusão entre lei e legislação e os efeitos nefastos do positivismo legalista, propõe que os parlamentos sejam compostos por duas câmaras, em que uma trataria da lei (as regras de justa conduta da ordem espontânea, descobertas e em linha com a opinião pública), e outra da legislação (correspondente aos comandos específicos da ordem de organização, ou seja, à noção de vontade), o que seria complementado por um Tribunal Constitucional que teria como missão evitar a confusão entre lei e legislação, para que as duas assembleias não entrem em conflito relativamente às suas respectivas competências. Até que ponto isto será praticável, não sei. Mas fica a sugestão.
[1] John Gray, “Oakeshott as a liberal”, in John Gray, Gray’s Anatomy, Londres, Penguin Books, 2009, pp. 83-84.
[2] Roger Scruton, As Vantagens do Pessismismo, Lisboa, Quetzal, 2011, pp. 151-163.
[3] John Gray, “Hayek as a Conservative”, in John Gray, Gray’s Anatomy, op. cit., p. 131.
[4] Edward Feser, “Hayek on Tradition”, in Journal of Libertarian Studies, Vol. 17, No. 1, 2003, p. 17.
Orlando Braga, que ontem já havia deixado um repto a um post meu, onde recorrendo aos estatutos do partido, acaba por incorrer numa omissão quanto aos pilares ideológicos do CDS - para além da democracia-cristã, o liberalismo e o conservadorismo - e entra em considerações sobre a suposta contradição em termos entre liberalismo e conservadorismo, que não subscrevo, já que são muitas mais as semelhanças e a herança filosófica comum do que as diferenças, e é preciso não esquecer que no famoso poscripto a The Constituion of Liberty, "Why I am not a conservative", Hayek tinha em mente essencialmente o conservadorismo que não tinha sido capaz de oferecer qualquer alternativa ao colectivismo, quando não mesmo se havia aliado a este no projecto de utilizar o estado para impôr uma determinada moral (e diga-se ainda de passagem que dois ensaios de John Gray são particularmente pertinentes a este respeito, "Hayek as a conservative" e "Oakeshott as a liberal", ambos incluídos em Gray's Anatomy; e também o ensaio de Roger Scruton "Hayek and conservatism", incluído no Cambridge Companion to Hayek, e o capítulo na obra de Chandran Kukathas Hayek and Modern Liberalism, intitulado "Hayek as a conservative"), deixa também hoje uma réplica ao meu post de ontem sobre Hayek, que me merece uma breve resposta.
Não entrando sequer pela contradição epistemológica entre a influência de Hume e de Kant, que Chandran Kukathas bem salienta em Hayek and Modern Liberalism, parece-me salutar assinalar que a consideração do Orlando carece da operacionalização do conceito de coerção que, obviamente, deve aqui ser entendido em termos hayekianos.
Hayek define coerção como sendo “um tal controlo do ambiente ou circunstâncias de uma pessoa por outra que, de forma a evitar um mal maior, aquela é forçada a agir não de acordo com um plano próprio e coerente mas para servir os fins da outra”1. A coerção impede que um indivíduo possa utilizar a sua inteligência ou conhecimento e prosseguir os seus planos ou crenças, eliminando a sua liberdade de pensamento e acção e tornando-o um instrumento nas mãos de outro ou outros indivíduos. Uma acção livre pressupõe que um indivíduo determine os seus fins de acordo com o seu próprio conhecimento, que não pode ser moldado pela vontade de outro. E uma acção não pode ser verdadeiramente livre se a sua escolha for imposta por outro indivíduo2.
Claro que a coerção não pode ser totalmente evitada, já que a única forma de a evitar é através da ameaça da coerção, no caso, por parte do estado, que detém o monopólio da coerção com vista à protecção das esferas privadas individuais em relação à eventual interferência por outros. Importa, contudo, limitar o poder do estado a este respeito apenas às circunstâncias onde é necessária uma delimitação das esferas privadas, criando as condições sob as quais um indivíduo pode determinar os seus fins e acções tendo em consideração as regras gerais prescritas pelo estado. Deve, portanto, ser uma coerção reduzida ao mínimo, restringida por regras gerais e abstractas, independente da vontade arbitrária de um indivíduo, que assim se torna um enquadramento para os indivíduos prosseguirem os seus próprios fins3.
A coerção implica uma intenção de levar um indivíduo a seguir uma determinada conduta, assim como a ameaça de um dano ou mal caso esta conduta não seja adoptada pelo coagido. Embora haja a possibilidade de escolha, as alternativas são determinadas por aquele que coage. O coagido deixa de ter a possibilidade de utilizar o seu conhecimento e prosseguir objectivos por si formulados, sendo as suas acções enquadradas pela mente de outro indivíduo4.
É importante distinguir entre coerção e a condição voluntária de fornecimento de bens ou serviços. Numa sociedade livre, todos os indivíduos dependem de outros para a satisfação das suas necessidades através do fornecimento voluntário destes bens ou serviços, podendo escolher em concreto a quem os pretendem adquirir ou requisitar. Contudo, só em circunstâncias excepcionais é que o controlo sobre um serviço ou recurso essencial pode conferir a alguém ou alguma instituição o poder de coerção. Desde que não se trate de um produto ou serviço crucial à existência humana ou à preservação do que um indivíduo mais valoriza, não se pode considerar como coerção as condições que sejam colocadas por quem o disponibiliza5.
E se várias situações podem, à primeira vista, parecer situações de coerção, não o são efectivamente se não forem preenchidas as duas condições referidas, a ameaça e a indução de um comportamento a um indivíduo com vista a servir os propósitos de outro. Hayek faz notar isto mesmo utilizando exemplos de diversas situações quotidianas e conclui que “Desde que um acto que me coloque em determinada situação não tenha como objectivo forçar-me a fazer ou não fazer coisas específicas, desde que a intenção do acto que me prejudica não seja a de servir os fins de outra pessoa, o seu efeito na minha liberdade não é diferente daquele de uma calamidade natural”6.
Dado que a coerção implica o controlo das acções de um indivíduo por outro, esta só pode ser prevenida através da garantia de uma esfera privada onde cada indivíduo está protegido da interferência de terceiros. Esta garantia só pode ser providenciada por uma instituição que tenha o poder necessário para tal, e é nesta situação é que a coerção a um indivíduo pode ser evitada através da ameaça de coerção por parte desta instituição7.
Para que o reconhecimento destas esferas individuais não se torne ele próprio uma ferramenta de coerção, o seu alcance e conteúdo devem ser determinados pelos próprios indivíduos, sendo variáveis em função da utilização dos seus conhecimentos e capacidades - e não fixados a priori como Stuart Mill, que o Orlando refere, tentou fazer. Ou seja, não deve o conteúdo das esferas individuais ser deliberado a priori e de forma definitiva por qualquer instituição – o que não passaria de uma forma de coerção. O que acontece é que existem regras gerais que “governam as condições sob as quais objectos ou circunstâncias se tornam parte da esfera protegida de uma pessoa ou pessoas. A aceitação de tais regras permite a cada membro da sociedade moldar o conteúdo da sua esfera protegida e permite a todos os membros reconhecer o que pertence à sua esfera e o que não pertence”8.
Hayek faz notar que a primeira e mais básica condição para a prevenção da coerção é o reconhecimento do conceito de propriedade privada9. A propriedade privada é um elemento fundamental para alcançar a liberdade individual, tal como Locke já havia teorizado, e como Gray assinala ao considerá-la como “um veículo institucional para um processo de decisão descentralizado”10 em estreita ligação com a capacidade de um indivíduo dispor de si próprio, das suas capacidades e talentos. E a este respeito já aqui elaborei por diversas vezes, sendo esta a mais relevante.
Talvez o maior incómodo para aqueles que se dizem nacionalistas, conservadores e que pretendem utilizar o aparelho estatal para impôr a sua própria moral a todos os outros seja o facto de Hayek repudiar o nacionalismo - esse filho da Revolução Francesa - , ser agnóstico e um pluralista no que diz respeito aos valores. Acontece que, precisamente neste sentido, e ao contrário do que o Orlando afirma noutro postal, Hayek enfatizou a importância da tradição como fonte de moralidade, inspirando-se em Burke, Hume e Smith, embora o seu agnosticismo religioso o levasse a não poder aceitar que Deus deseja ou comanda o estado. Como Linda Raeder faz notar "to his mind, such a conception too readily lends itself to the dangerous interpretation that some particular human will or wills should direct the course of social life. In other words, he feared that the attribution of the source of order to the Divine Will may lead to the anthropomorphic interpretation of that Will as the ‘will of society’ (which must, in reality, be the will of particular human beings) and inspire misguided efforts to control the spontaneous social process by conscious direction. Such, he believed, would be fatal not only to human liberty but to the survival of advanced civilization".
Mais, Hayek é, como Oakeshott, um conservador abstracto, por oposição ao conservadorismo substantivo advogado por Roger Scruton. E a este respeito, "On Being Conservative" providencia talvez a melhor definição do conservadorismo abstracto, que se dedica a limitar o poder do estado e a manter as regras gerais que permitem aos indivíduos prosseguir os seus fins sem entrar em colisão com outros, seguindo na tradição anglo-saxónica da tolerância e do governo limitado.
De resto, não entro sequer na discussão da definição da liberdade dos outros, cujos argumentos do Orlando recaiem numa tradição em que não me inscrevo, de liberdade como autonomia (inspirada em Hegel) e de libertação pela razão (inspirada em Rousseau, que Isaiah Berlin desmontou com uma mestria sem paralelo).
E, para finalizar, uma última nota em réplica ao último parágrafo do post do Orlando de inspiração platónica. Não por acaso, todos os grandes liberais clássicos foram tanto filósofos como economistas. Não por acaso, a metodologia hayekiana assenta na interdisciplinaridade, na qual a Ciência Política, ainda que sendo uma disciplina autónoma, se fundamenta. E também, não por acaso, no mundo anglo-saxónico existem cursos bastante reputados que dão pelo nome de Politics, Philosophy and Economics (PPE). Além do mais, julgo que Popper estava certo na formulação de sociedade aberta que aplica à ciência, pelo que é discutindo e revendo os nossos argumentos que todos aprendemos, ainda que nem todos possamos ser especialistas em tudo. E se é certo que cada qual tem a sua área de estudo primordial, certo é também que cada qual é livre de se debruçar sobre outras matérias. Porque senão, muito provavelmente corremos o risco de ser incoerentes e que nos partam os nossos telhados de vidro. O mesmo é dizer que assim como o Orlando é livre de advogar uma prática proteccionista completamente descabida e que só quem não conhece um mínimo do pensamento e da história económica pode advogar (ler o clássico e bastante simples Economics in One Lesson de Henry Hazlitt é talvez a forma mais rápida de o perceber, em especial os capítulos XI a XIV), também eu sou livre de me debruçar sobre matérias como a ética e a filosofia. E ninguém está livre de errar. É essa a beleza da ciência, como da vida: a imperfeição.
[1] F. A. Hayek The Constitution of Liberty, Londres, Routledge, 2010, p.19.
[2] Ibid., p.19.
[3] Ibid., pp. 19-20.
[4] Ibid., p. 118.
[5] Ibid., p. 119.
[6] Ibid., p. 121.
[7] Ibid., p. 122.
[8] Ibid., p. 122.
[9] Ibid., p. 123.
[10]John Gray, Liberalism, 2.ª ed.,Minneapolis, The Universityof Minnesota Press, 1995, p 62.
Michael Oakeshott, On Being Conservative:
It is said, for example, that conservatism in politics is the appropriate counterpart of a generally conservative disposition in respect of human conduct: to be reformist in business, in morals or in religion and to be conservative in politics is represented as being inconsistent. It is said that the conservative in politics is so by virtue of holding certain religious beliefs; a belief, for example, in a natural law to be gathered by human experience, and in a providential order reflecting a divine purpose in nature and in human history to which it is the duty of mankind to conform its conduct and departure form which spells injustice and calamity. Further, it is said that a disposition to be conservative in politics reflects what is called an “organic” theory of human society; that it is tied up with a belief in the absolute value of human personality, and with a belief in a primordial propensity of human beings to sin. And the “conservatism” of an Englishman has even been connected with Royalism and Anglicanism.
Now, setting aside the minor complaints one might be moved to make about this account of the situation, it seems to me to suffer from one large defect. It is true that many of these beliefs have been held by people disposed to be conservative in political activity, and it may be true that these people have also believed their disposition to be in some way confirmed by them, or even to be founded upon them; but, as I understand it, a disposition to be conservative in politics does not entail either that we should hold these beliefs to be true or even that we should suppose them to be true. Indeed, I do not think it is necessarily connected with any particular beliefs about the universe, about the world in general or about human conduct in general. What it is tied to is certain beliefs about the activity of governing and the instruments of government, and it is in terms of beliefs on these topics, and not on others, that it can be made to appear intelligible. And, to state my view briefly before elaborating it, what makes a conservative disposition in politics intelligible is nothing to do with natural law or a providential order, nothing to do with morals or religion; it is the observation of our current manner of living combined with the belief (which from our point of view need be regarded as no more than an hypothesis) that governing is a specific and limited activity, namely the provision and custody of general rules of conduct, which are understood, not as plans for imposing substantive activities, but as instruments enabling people to pursue the activities of their own choice with the minimum frustration, and therefore something which it is appropriate to be conservative about.