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O Onik Sahakian era um incontornável protagonista de episódios picarescos. Fosse onde fosse, quando menos esperava era colocado em situações imprevistas e a colecção de episódios é tão vasta que seria capaz de encher um volume com estorietas mais ou menos surrealistas.
Isto passou-se em Nova Iorque, em plena Park Avenue. Desde que se estabeleceu em Portugal, tornou-se num ávido consumidor de tudo aquilo que era próprio da nossa terra, mesmo que isso apenas correspondesse a estereótipos pela imensa maioria ignorados. Homem de talhe pequeno, resolveu-se a comprar um capote alentejano e numa das visitas à Big Apple, aproveitou a oportunidade para se passear com o abafo "tipicamente português". Infalivelmente atraiu a atenção de alguns transeuntes, entre os quais, três garotos que durante alguns minutos cirandaram à sua volta, fixamente olhando para o capote. Já um tanto ou quanto incomodado, Onik resolveu parar por uns momentos e perguntou-lhes o que pretendiam.
Timidamente, um deles avançou e apontando para o capote, deixou a enigmática questão.
- Excuse me Sir, do you fly?
A coroa imperial dos Qadjar
Durante os perto de vinte anos de amizade, o Onik foi o central protagonista de inúmeros episódios que para sempre ficarão gravados na minha memória. Um deles aconteceu na sua famosa cozinha, centro nevrálgico do seu apartamento na Rua do Salitre. Ali frequentemente se reuniam os amigos em fartas comezainas e conversas que duravam horas infindas. Existe uma lista infindável de histórias onde o burlesco, o drama e o fait-divers bastas vezes surrealista, andam demasiadas vezes numa tão improvável como normal companhia.
Já há alguns anos, o Onik telefonou-me todo entusiasmado, exigindo a minha urgente comparência em sua casa. De Nova Iorque chegara um amigo de muitas décadas, de seu nome Ali Mumtaz, persa de gema e segundo uma esperada e fidedigna garantia onikiana, ..."absolutely royalist like we are". Eu residia a uns quinhentos metros de distância e em pouco minutos lá toquei na campainha, deparando com um sorridente recém chegado, já fatalmente dedicado aos labores culinários que prenunciavam uma longuíssima conversa. Como seria de esperar, as palavras rapidamente enveredaram por aquele infalível caminho que o mútuo interesse pela História obriga e logo me apercebi da invulgar bagagem cultural que Ali carregava, centrando a Pérsia como ponto de interesse exclusivo da nossa conversa. O homem infatigavelmente ia cozinhando à medida que devorávamos o que nos servia e com esta ou aquela provocação do desde sempre sarcástico Onik, surgiam atalhos ou caminhos desavindos no decorrer das falas. O repasto, lauto como poucas vezes tive o prazer de degustar, consistia num infindável número de delícias persas, onde o arroz, o frango, queijos frescos e todo o tipo de vegetais, especiarias e frutos secos, testemunharam aquela esmagadora presença de uma cultura forte de milénios, a única que a par da China, ainda hoje prossegue o seu caminho desde a Antiguidade. Que manjares, que harmonia de sabores, um refinamento inigualável, digno dos melhores conhecedores da matéria!
Horas depois, quase estourando devido a um providencial pantagruelismo a que raramente me faço rogado, comentava-se a deposição da dinastia Qadjar e a ascensão dos Pahlavi ao Trono do Pavão. Como sinal para um breve interregno destinado à reposição de forças, deixei cair a questão:
- Ali, mas finalmente o que aconteceu a essa gente, os Qadjars?
De imediato Onik teve um daqueles frequentes lampejos em que se notava o prazer por me ter apanhado num indesejável pé em falso. Com uma sonora gargalhada entre o diabólico e o condescendente, retorquiu:
- Nuno, they are closer than you can imagine!
Era verdade. O cozinheiro e diluviano contador de histórias e mitos, era um dos bisnetos do Xá da deposta dinastia. Como estocada final, sublinhava a sua total lealdade aos Pahlavi, os sucessores dos seus avoengos.
Por umas horas fiquei prostrado, até todo o processo recomeçar. Assim foi durante três dias.
Na próxima quinta-feira 2 de Junho, pelas 19.00H, inaugura-se a exposição de Onik Sahakian na galeria MAC, à Av. Álvares Cabral 58-60, Lisboa.
Conheci Ohannes Fard Sahakian há uns vinte anos, exactamente no hall de S. Carlos. Tinha acabado de fixar residência em Portugal e foi-me apresentado por um colega de trabalho. Embora não tivéssemos mantido regularmente o contacto, encontrei-o muitas vezes, geralmente em exposições ou espectáculos. A sua história pessoal é muito interessante e está recheada de episódios picarescos, onde surgem nomes conhecidos de uma época já desaparecida, outros regimes e até impérios que também deixaram de existir.
Há cerca de uma década, tornei-me visita regular de sua casa e já estamos habituados a longas horas de conversas, onde histórias da vida pessoal, análise da obra de artistas ou meras considerações sobre a actualidade, são temas frequentes. O Onik - assim prefere ser chamado -, é um excelente anfitrião e cozinheiro e posso garantir já ter provado fantásticos pratos da cozinha persa, russa e arménia, aos quais dedica um esmero especial, pois faz questão em satisfazer os mais exigentes gastrónomos.
Foi o Onik quem me incentivou a voltar a usar os pincéis, reforçando as admoestações familiares que me perseguiam sem resultado, já há tanto tempo. Encorajou-me, deu-me ideias e apresentou-me a galeristas. Muito lhe devo e jamais esquecerei a sua intrínseca generosidade e total disponibilidade para frequentemente me ouvir, dissipar indecisões e apontar caminhos.
Apresento-vos o seu site pessoal, que muito melhor que as minhas palavras, poderá elucidar-vos acerca da sua personalidade multifacetada, onde uma vida rica de experiência e vontade, continua a dar-me a honra da sua amizade.