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Gostava de ver Marcelo Rebelo de Sousa dizer na cara dos britânicos ou alemães que os mesmos são "excepcionais", mas os portugueses são melhores. Portugal não deve admitir declarações deste teor do seu Presidente da República. São as crianças recém-desfraldadas que usam esse paleio - o meu brinquedo é melhor que o teu. O mundo já não se presta a estes arquétipos de comportamentos, mas abro uma excepção - Trump é bem pior. Não estamos na Idade da Pedra. Existem dias felizes e dias menos felizes. E esta foi uma tarde menos conseguida. Eu entendo, que no mano-a-mano com António Costa, houvesse necessidade de não perder a corrida, de marcar pontos. Afinal, o primeiro-ministro aproveita, de um modo populista, as vantagens folclóricas de uma Geringonçaville. Os emigrantes estacionados nesse bidon de pólvora francês, são luso-portugueses que caem facilmente nessa categoria utilitária sempre que dá jeito, sempre que os domésticos continentais não chegam para as encomendas. Quando o Brexit chegar, espero que haja um plano de continência para bater a pala aos milhares que regressarão do Reino Unido. Enquanto Portugal não se estreia no Euro 2016, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa chupam até ao tutano o suco desse estado de graça. Nesta pré-euforia ejaculatória de bola bem metida, os que nutrem paixão pela nacionalidade portuguesa e pela ideia de identidade, estão à mercê de feiticeiros que se alimentam destas mézinhas fáceis. Terça-feira rola.
O desastre do avião da Egyptair, a confirmar-se como sendo um ataque terrorista, inscreve-se num quadro operacional e estratégico preciso. Se o inimigo pretende infligir o maior desgaste possível ao adversário, fá-lo-á de modo a dificultar a localização dos destroços e eventual recolha de corpos. O mar serve esse conceito de projecção de poder negativo. Na sua imensidão líquida registamos dimensões de natureza geomarítima e outras envolvendo diversos conflitos jurisdicionais. Os passageiros, de nacionalidade diversa, obrigam os respectivos Estados a colaborar na acção logística de busca, salvamento ou recolha de corpos. Este efeito aglutinador propõe a emergência de comunidades de interesses positivos. Serve para aliar governos de países em torno de uma mesma causa anti-terrorista. Ou seja, no longo prazo, erode os fundamentos da dispersão de actores, desejada pelo Estado Islâmico. Não será descabido reflectir sobre a intencionalidade da "escolha da zona de impacto". Estarão as células organizadas em torno de uma lógica de activação de engenhos de acordo com um mapa de desgaste? Os ataques do 11 de Setembro serviram para inaugurar novas abordagens e modelos a este respeito. A equação de origem, destino e posição relativa, deve ser relevada. O facto do voo da Egyptair ter origem em Paris tem uma importância acrescida. Planta na base um efeito psicológico acentuado, como se o Mediterrâneo fosse uma extensão da centralidade europeia, uma filial de Bataclan. São considerações que envolvem uma certo grau de elasticidade conceptual que devem ser tidas em conta. O terrorismo cavalga essa dinâmica pendular. Lockerbie, ataque continental e aparatoso, por ter sido testemunhado, inscreve-se num modelo distinto. No mar Mediterrâneo não houve observadores que pudessem confirmar o desenrolar conducente ao impacto. Confirmamos deste modo que a ausência de espectadores não constitui um detractor das intenções terroristas. Para já, e na ausência de elementos que confirmem que se trata de um ataque terrorista, devemos colocar em cima da mesa todos os vectores de análise de um fenómeno geopolítico residente. Por outras palavras, a determinação do ritmo de eventos terroristas permitirá um certo grau de calendarização. Vivemos, lamentavelmente, sob os auspícios da expectativa negativa. E isso é desejado pelo adversário.
A Europa, ou mais correctamente, a União Europeia (UE), enfrenta dilemas de vária ordem. A questão securitária passou a ocupar a primeira fila do teatro de operações políticas. Enquanto escrevo estas linhas, no coração da UE, militares belgas patrulham as ruas de Bruxelas na expectativa negativa de ataques terroristas semelhantes àqueles ocorridos em Paris há uma semana serem reeditados. A Política Externa e de Segurança Comum (PESC) fora concebida como um dos pilares de sustentação do projecto de construção europeu, mas ao longo das últimas décadas, não se desenvolveu uma efectiva estrutura de defesa pan-europeia. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) existia para a eventualidade de um ataque a um dos seus Estados-membros, e o Artº 5 definia claramente o âmbito da reciprocidade do mecanismo de defesa. Os europeus, encostados à aliança transatlântica, tornaram-se desleixados e inconsequentes, e foram incapazes de atingir a maturidade e a independência securitária que seria de esperar de um projecto político desta envergadura. Mas a União Europeia está a acordar repentinamente para uma realidade que exige grandes doses de pragmatismo. Uma doutrina de segurança da UE, deve, nessa medida, ser urgentemente definida e com um intenso sentido estrutural. O acordo de Schengen, nascido no ambiente festivo do livre movimento de pessoas, capitais, bens e serviços, conhece agora alguns efeitos suspensivos colocando em causa as suas boas intenções originais. Os militares e os blindados ligeiros que patrulham as ruas da capital belga não devem causar espanto. Teremos a breve trecho grande número de paisagens urbanas europeias decoradas com semelhante aparato militar. E a questão deve ser entendida como uma extensão natural dos mais recentes desenvolvimentos geopolíticos com epicentros mais ou menos longínquos e com intensidades variáveis. O debate em torno da missão dos militares em tempos de "paz" ganha agora ainda mais relevância. Será que as sociedades europeias estarão dispostas a conviver com o policiamento realizado por militares apetrechados com armas de calibre de guerra na baixa das suas cidades? Para o cidadão comum, poupado às vicissitudes da guerra, a mera presença de unidades militares na malha urbana pode causar um sentido acrescido de insegurança, por esta lançar a suspeição da iminência de um evento violento, mas numa segunda fase, a sua aceitação será entendida como vantajosa, pela sua expressão declaradamente dissuasora de intentos desviantes e detonadores da ordem pública. A União Europeia está, deste modo, a projectar o seu poder com uma ligeira alteração do sentido conceptual inerente ao mesmo. A urgência, embora externa e geograficamente entendida, exprime-se numa dimensão endémica. A Europa está obrigada a apontar as armas aos seus próprios cidadãos. A destrinça clássica que permite identificar inimigos foi intensamente posta em causa e o modelo de gestão desta crise ainda se encontra longe de uma noção estável. Declarar guerra a um inimigo distante não produz os efeitos que os políticos desejariam obter nos seus domínios domésticos. Sabemos todos, lamentavelmente, que os adversários têm uma doutrina altamente eficaz e escandalosamente corrosiva. A Europa ainda não saiu do laboratório - ainda não tem um antídoto eficaz. A União Europeia é uma construção assimétrica, mas o perigo de contágio dos ataques terroristas terá um efeito nivelador das preocupações. O medo e a insegurança são emoções transversais a dictomias Norte-Sul, a clivagens de Direita ou Esquerda, a sistemas políticos com diferenças assinaláveis. O terrorismo, nessa medida, deve servir de catalisador da integração tantas vezes adiada por imperativos de ordem económica e financeira.
Os ataques terroristas de Paris de 13 de Novembro intensificam o debate em torno de uma questão fundamental respeitante à Democracia; de que forma governos conseguirão encontrar o equilíbrio entre a dimensão securitária dos Estados e o respeito pelas liberdades e garantias dos indivíduos? Os Estados Unidos da América (EUA), que provaram o desgosto intenso do 11 de Setembro de 2001, têm, desde essa data, vindo a incrementar o seu nível de controlo sobre o movimento de pessoas e capitais por forma a diminuir as probabilidades de semelhantes ataques terroristas. A União Europeia, que têm sido "vegetariana" no desenvolvimento de uma genuína Política Externa e de Segurança Comum, vê-se agora obrigada a implementar medidas "excepcionais". Os EUA, acusados historicamente de "intervencionistas sem convite", continuam a ser um aliado ideológico da Europa, mas a administração Obama tem sido "abstencionista", e, há poucos dias, Hillary Clinton afirmou que a questão síria seria sobretudo um desafio a ser enfrentado pelos actores "locais", pela Europa. A França, que está a ser a ponta de lança dos ataques ao Estado Islâmico, fá-lo consciente dos monstros que já está a libertar no seu país. A França parece disposta a fazer o sacrifício por uma causa maior que as suas fronteiras. As bandeiras francesas içadas nas redes sociais, e em particular no Facebook, correspondem deste modo, não apenas ao lirismo da solidariedade para como as vítimas dos ataques de Paris, mas à aceitação de que a França é o "war maker and taker" da Europa - os franceses são cada vez mais os americanos da Europa. Os mesmos individuos que cantam a marselhesa por efeito de contágio e simpatia, devem ter a consciência de que se colocam ao lado da nação europeia que está efectivamente a projectar o seu poder militar e de um modo intenso. Os cidadãos da Europa já não podem ser selectivos na escolha de apenas uma parte de uma equação geopolítica. Ao abraçarem a França, assinam por baixo na petição, autorizam que essa república batalhe em vosso nome. A União Europeia vive mais um momento de verdade, de vida, e efectivamente morte, no seu próprio quintal.
Os mais recentes ataques terroristas de Paris marcaram para todo o sempre a minha data de nascimento. Sexta-feira 13 de Novembro de 2015 precedeu a sua má-fama, excedeu-se. Mal decorreram 24 horas sobre a noite de terror, buscamos um fio condutor de explicação minimamente racional, como se para dirimir os exageros da loucura perpetrada sobre homens e mulheres, meros espectadores de um jogo de soma-zero de inocentes e culpados. Tenho dúvidas que os ataques terroristas de ontem correspondam a um 11 de Setembro da Europa. Receio que, numa lógica de encadeamento e escalada, os eventos de ontem sejam apenas uma parte de um futuro geopolítico próximo intensamente fracturante. A União Europeia está cada vez mais próxima do seu momento Homeland Security Act. A crise dos refugiados que assola o continente europeu serve de catalisador para considerações que serão exógenas à própria natureza do desafio. Elencamos, com alguma facilidade, distintos módulos operativos de interpretação da realidade. Identificamos aqueles que são solidários com o drama dos refugiados, mas que renunciam à tese de que estes virão para se tornar missionários do Estado Islâmico. Rotulamos ainda aqueles que não fazem distinção entre uma coisa e outra - ou seja, cada refugiado é um potencial suicída pronto a semear o pânico de terror nas hostes da paz europeia. Temos ainda um grupo de inspiração woodstockiana que é adepto de uma estirpe imovível de peace and love - que acredita no abraço aos párias, na desintoxicação por via da integração fraterna. A ideologia que tem servido para muitos fretes de interpretação de conflitos bélicos, já não se adequa para corrigir comportamentos com esta intensidade. O Estado Islâmico não se funda em premissas nacionais nem se restringe a um domínio territorial no sentido clássico - ontem Beirute visitou Paris de um modo particularmente avassalador, tornando a capital francesa o local da cimeira que opõe o Ocidente ao Estado Islâmico. A França enfrenta alguns desafios de índole conceptual no que concerne ao seu modelo de sociedade. Francois Hollande rotulou os ataques terroristas de "acto de guerra", pelo que essa afirmação pressupõe, na centralidade europeia, a prossecução de medidas securitárias extremas. Um acto de guerra implica a confirmação de que já nos encontramos em situação de conflito continuado, numa guerra com todas as despesas que decorrem desse facto. Nessa medida, e ampliando o âmbito dessa afirmação, significa que França irá ripostar longe e perto, e estará disposta a suportar ainda mais dor caso esta venha a ser infligida. A epicentralidade do conflito na Síria parece ter sido deslocalizada de um modo intencional pelos estrategas do Estado Islâmico. Os ataques terroristas de ontem já não obedecem necessariamente à lógica de célula adormecida que se desperta a toque de comando de uma entidade longínqua, uma hierarquia afastada muitas vezes mantida em anonimato. Neste momento dispomos de elementos de análise que nos permitem especular que uma doutrina de Do It Yourself seja aquela que esteja a ser difundida pelo Estado Islâmico. Portugal, que não tem grande papel nas considerações de fundo da presente situação, tem a lamentar duas vítimas mortais resultantes dos ataques terroristas. Esperemos que esse facto não seja apropriado indevidamente pelas partes envovidas no processo político nacional conducente à formação de um governo estável. Já ouvimos, aquilo que teria sido dispensável, de indivíduos com alegadas responsabilidades no espectro político nacional - Ana Gomes já deu o seu contributo para a ideia da excepcionalidade governativa dos socialistas e o seu particular talento para gerir crises terroristas. Francois Hollande deve ser a figura que serve de inspiração, o socialista-modelo a partir do qual se pode obter o decalque perfeito de administração interna. Francamente, Portugal não precisava disto.
Assim que Charlie Hebdo foi alvo do ataque terrorista, o chavão "liberdade de expressão" foi aclamado como salmo sagrado por um sem número de vozes que grita pelos direitos inalienáveis da prática jornalística. Desde esse momento, tenho vindo a pensar sobre o assunto e cheguei às seguintes conclusões; os meios de comunicação social e os jornalistas não são sacerdotes da independência de pensamento, e muito menos são donos da verdade. Os jornais, as revistas (mesmo as satíricas), as televisões, as rádios, assim como as editoras, pertencem todos a grupos económicos que por sua vez são controlados por governos. Deixemo-nos destas tretas, deste bullshit humanista com laivos de Esquerda esclarecida ou Direita carente, para enfrentarmos de frente os desafios que se nos apresentam. Não nos encontramos num mundo rasgado por linhas de precisão ideológica. Não. Vivemos num mundo de percepções fabricadas, alibis alimentados por agendas políticas, fundamentos resgatados de manuais com forte poder de doutrinação. A rápida ascensão de slogans, com intenso valor de mobilização, são a prova de que as nossas sociedades vivem sob os auspícios da vulnerabilidade da sua própria ignorância. Parece-me, que no contexto de falta de juízo individual, é mais fácil saltar para um comboio em andamento. O terrorismo, condenável sem resquícios de dúvida, está a servir para acomodar passageiros numa toada visceral, regrada pelas emoções e pela ausência de pensamento mais profundo. Temo que já tenhamos ido para além da estação de destino. Não me falem de liberdade de expressão assim sem mais nem menos. Falem de autorizações concedidas por conselhos de administração para publicar aquilo que convém a uns e menos a outros.
O primeiro-ministro decerto tem uma ideia do número de portugueses e luso-descendentes residentes em França e principalmente, sabe bem o que estes ataques significam para todo o ocidente. Assim sendo e para que não restem dúvidas, faça a sua obrigação, participando na manifestação do próximo domingo. Paris vale bem uma missa.
Dois ex-cooperantes estratégicos
Claro que não tem a força daquele outro de tempos passados, nem sequer pode contar com selvagens à solta pelas ruas, vasculhando casas para espancar ou prender adversários. Tal como o sonhado precursor, também foi para Paris e de telemóvel em riste, faz a sua política e diz o que bem lhe apetece, pondo e dispondo do Partido que pelos vistos, ainda lhe pertence.
Imagine-se o que um telemóvel teria propiciado ao "parisiense" Afonso Costa...
Há gente sumamente parva que ostenta a ociosa e convencida idiotia, como rutilante medalhinha do 10 de Junho. Os comentários dos "engraxates de corte", em nada ficam a dever aos pesporrentos e ignorantes ditos de sapiente gastrónomo de boulevard. Ora leiam lá.
Quando da ocorrência do golpe de Estado de 1910, a Europa vivia os derradeiros momentos da Belle Époque, sem suspeitar que poucos anos depois, todo um mundo desapareceria, vítima da voragem da Grande Guerra. Até ao verão de 1914, as notícias divulgavam o carnet mondain parisiense, as visitas de Estado dos monarcas europeus, o escândalo Calmette-Caillaux e inevitavelmente, a desastrosa situação social, política e económica em Portugal. As correrias nas ruas de Lisboa, as bombas, assassínios e as consecutivas quedas de governos, ofereciam aos leitores interessados, a imagem de toda uma sociedade em conturbada crise identitária, onde uma república fora imposta violentamente pela vontade de associações secretas e de um partido considerado minoritário no arco constitucional português. Com as prisões abarrotando de presos políticos, à Europa chegavam informações de tortura, atropelo aos direitos, ilegalidades e arbitrariedades das autoridades que coagiam uma justiça, que condicionada por grupos de rufiões a soldo dos caciques políticos, desprestigiava os tribunais.
Num cenário de catastrófica anarquia, a imagem que os europeus tinham de Portugal, era negativa, pois ainda estava presente no espírito de muitos, o regicídio de 1908, onde a autoria moral e material dos republicanos, não oferecia dúvidas a ninguém. Curiosamente, a imprensa francesa era uma das mais críticas e virulentas na análise da situação portuguesa, surpreendendo desagradavelmente os incondicionais francófilos do prp que na França viam o modelo a copiar pelo regime instaurado a tiro na Rotunda.
João Chagas é um homem típico da sua época. Medianamente culto, seguidor dos princípios do politicamente correcto do quotidiano, enfastiava-se facilmente quando era obrigado a prescindir dos círculos aristocráticos ou da alta burguesia parisiense que assiduamente frequentava. Os seus diários são eloquentes quanto ao turbilhão social em que mergulhou durante a sua estadia na capital francesa. Festas, bailes, chás, jogos de sociedade, beija mãos a condessas e princesas, ou tráfico de influências junto ao poder político e da imprensa. Pouco nos diz acerca da sua visão - segundo um programa criteriosamente estabelecido - de um Portugal que pretende inserir-se no século XX das maravilhas técnicas, do progresso social e da liberdade. Não. Entre 1914 e 1921, escreve centenas de entradas que relatam a sua preocupação pelas aparências, as suas dogmáticas e sebastianistas certezas na etérea visão de uma república que é república formalmente e apenas isso. Espanta-se pela revolta latente em Portugal, indigna-se pela pressão das hostes monárquicas e corrobora na necessidade de perseguição às vozes discordantes da situação. Parece que se esquecera dos trinta anos que antecederam o 5 de Outubro, durante os quais o seu partido de tudo se serviu para destruir o regime constitucional - um dos mais livres da época - legalmente estabelecido.
O que se torna paradoxal nesta obra, consiste na falta de um projecto, na perfeita inconsciência da realidade, negativa para todos, em que Portugal se encontrava. A sua exclusiva preocupação, resumia-se a uma indisfarçável vanglória, na ânsia de se ver equiparado aos seus colegas diplomatas das potências europeias e, claro está, numa furiosa e constante diatribe contra os seus correligionários do regime, neles vendo a causa do insucesso da sua mirífica ilusão de uma república restauradora de glórias passadas. O resto do texto, é um longo rol de preconceitos, dichotes, intrigas, boatos e campanhas difamatórias - onde uma vez mais a rainha D. Amélia se torna um alvo apetecível - e, finalmente uma exaustiva e interessante informação acerca das casas da alta sociedade parisiense, onde a gastronomia, o luxo e a trivialidade dos fait-divers senhoriais o impressionaram fortemente.
A opinião que tem do regime dos seus, é má, pois "...a República...dá-me a impressão de uma desordem que cada vez mais se agrava, em que já há facadas, em que já corre o sangue, e a que eu assisto de longe, com o coração aos pulos, mas de braços cruzados". Entre um jantar de gala onde brilhavam senhoras altas, bem vestidas e ostentando portentosos decotes e uma amena charutada com homens públicos, Chagas encontra palavras de incontornável desprezo relativo aos representantes de nações extra-europeias "... à minha direita uma grande mulata que não sabe uma palavra de francês, mulher do ministro de San Domingos... a pobre mulher acha muito boa la comida del palacio e bebe todos os vinhos que o criado lhe serve". Tudo o mais consiste na enumeração dos convivas para os habituais ágapes, onde pontificavam príncipes, condes, duques e alguns homens do Estado francês, zelando de forma obsessiva a sua aparência, onde o bem vestir era, segundo facilmente se depreende, uma condição incontornável para se ser considerado.
Chagas sente um nítido desdém pela qualidade intelectual e moral dos seus pares e acalentou ódios que duraram até ao fim dos seus dias. António José de Almeida, Brito Camacho, Bernardino Machado, entre muitos outros - afinal o essencial do regime republicano -, são crismados com epítetos que fazem empalidecer aqueles outrora outorgados à classe política da monarquia. De resto, a imprensa francesa não lhe dá tréguas, relatando detalhadamente as greves, levas de presos, perseguições e abusos de poder em Portugal, o que perturbava a sua ronda pelos bailes do Eliseu, as visitas ao fotógrafo Nadar, as idas ao teatro ou furtivas espreitadelas aos roliços colos das damas do corpo diplomático. Facto espantoso, é a sua surpresa perante o estilhaçar do serviço diplomático português, queixando-se amargamente da falta de contacto com o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa, do qual raramente recebia notícias ou directivas, dependendo totalmente da imprensa internacional. De facto, o novo regime não podia prescindir dos quadros oriundos do seu predecessor, pois a imensa maioria dos membros do prp, não era gente capaz ou idónea para preencher os requisitos para a normal gestão do Estado, nem se encontrava inserida na vital rede de contactos e relações pessoais da diplomacia internacional. Os jornais estrangeiros são a constante preocupação de Chagas que por todos os meios tenta mitigar a opinião desfavorável que tinham da república, pois o relato das constantes ocorrências em Portugal, destruíam a imagem ideal e propagandeada de um país renovado e aberto ao futuro. Estava em causa, afinal, a sua própria reputação em Paris. No entanto, como o autor expressamente declara, a maioria das publicações trazem "...artigos tremendos contra a República. Em appoio das suas affirmações esses jornaes reproduzem opiniões de republicanos portugueses". A imprensa lisboeta vai divulgando as "tumultuosas e escandalosas sessões na Camara. O senador João de Freitas disse ao Alexandre Braga: v. Exa. é um miserável apache. O Braga não se mostrou sensível à affronta. O João de Menezes pegou-se ao socco com o presidente da Camara. Foi preciso separá-los. Um horror". Estes episódios eram recorrentes e assim, Chagas vai reproduzindo aquilo que a imprensa publica, como os escândalos de corrupção "...a crise (...) provocada pela questão da concessão das águas do Rodam, feita em favor de António Maria da Silva, deputado (...) que chamou canalha a um deputado. Este por sua vez chamou-lhe tolerado (...) as galerias intervieram na contenda e deram morras a Affonso Costa. Nos Passos Perdidos houve bofetões. Toda a gente andava armada" (17 de Junho de 1914). Um mês depois, a 15 de Julho, Chagas escrevia que "...em Portugal novos acontecimentos anormaes de que a imprensa de Paris esta manhã se occupa. Os amigos de António José d'Almeida, reunidos aos anarchistas, promoveram em Lisboa um comício durante o qual se comparou o Affonso Costa ao Diogo Alves e ao José do Telhado. À noite desordens no Rocio. O Café da Brazileira foi assaltado por um grupo (...) aos gritos de - Abaixo a formiga branca! Dispararam-se muitos tiros de revólver. Parte do café ficou em estilhas". Os pequenos compadrios e situações de nepotismo, mereceram inúmeras referências "...o António Bandeira (...) vai (...) occupar finalmente o seu logar de ministro em Berne, que conquistou sem grande esforço. Apenas o trabalho de ser primo do Bernardino Machado". Na necessidade premente de encontrar quadros afectos ao novo regime "... fui eu o primeiro homem que em Portugal lembrou este Teixeira Gomes (...) um pouco poseur (...) e que não se arranjava mal (...) Bernardino Machado (...) não gostou d'elle, por lhe parecer impertinente, ou desrespeitoso. O amor próprio de B. Machado não suporta aparencias altivas (...) como sempre, porém, fez uma tolice e em vez de o collocar em Madrid, onde elle não estaria muito fora do seu logar, no meio um pouco cigano da Hespanha, colocou-o em Londres, onde está inteiramente deplacé. Teixeira Gomes é uma especie de Oscar Wilde, com alguns vícios d'este e sem o seu talento (...) não é feio homem, mas falta-lhe nobreza (...) parece um clown enfarinhado". Brito Camacho é outro dos ódios pessoais de Chagas, chamando-lhe "...estúpido até à torpeza".
Os relatos do seu diário dos primeiros sete meses de 1914, focam genericamente os mesmos temas: a imprensa estrangeira, bastante cáustica em relação ao desvario político, económico e social imposto pelo novo regime em Portugal; a imprensa portuguesa, uma preciosa fonte de informação - e de aflição -, para um diplomata que carecia das mais elementares directivas para a prossecução da defesa dos interesses nacionais em Paris; e uma infinidade de almoços, jantares, visitas a teatros, clubes privados, casas da nobreza, ao palácio presidencial, além de uma vertiginosa agenda de festas bailes, soirées lúdicas e apreciação da moda feminina. A profunda antipatia para com os menos bafejados pela fortuna denota o seu carácter, preocupado em alcandroar-se a um lugar cimeiro, de onde julgava impiedosamente o valor de outrém, disso dependendo a sua apresentação física, os seus gostos, modos e maneira de vestir. João Chagas era um impenitente dandy, mais impressionado pelos roçagantes fru-frús das sedas e rendas das merveilleuses da época, que com aquilo que verdadeiramente interessava: a procura de um rumo e de um projecto para Portugal. Tal como o regime implantado com o tiroteio na Rotunda, dava mais relevo ao acessório, porque de facto, o essencial desvanecera-se na meramente virtual demagogia dos seus pares. Nunca compreendeu que era parte integrante de um sistema e de uma forma despreocupada e irresponsável de conduzir os destinos de um país. Portugal pagaria bem caro esta incompetência e neste centenário da república, urge desvendar factos que ao longo das décadas foram sendo esquecidos ou habilidosamente adulterados pela propaganda oficial.
(continua).