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É preciso mudar alguma coisa para que fique tudo como está

por Samuel de Paiva Pires, em 09.08.18

Somos fantásticos a organizar eventos, mas frequentemente medíocres a planear quase tudo o resto, muitas vezes até coisas básicas. É uma das razões porque muitas políticas públicas não têm a eficácia desejada, a falta de capacidade de previsão e planeamento - sem falar na execução. Há décadas que o país arde todos os anos e ainda não conseguimos criar um dispositivo altamente profissional, hierarquicamente bem estruturado e comandado, de prevenção e combate aos fogos. Estudos e mais estudos, relatórios, avisos e recomendações de especialistas vários ficam arrumados numa gaveta qualquer enquanto, ano após ano, lideranças políticas medíocres e chefias operacionais de competência duvidosa anunciam investimentos de milhões de euros e, quando as coisas correm mal, atropelam-se em falhadas tentativas de spin sobre o que é mais que evidente: o caos na organização dos meios de combate ao fogo. Pelo meio, ninguém estranha nem se indigna por os bombeiros voluntários, heróis no meio disto tudo, se verem forçados a solicitar apoio em coisas básicas, como água e comida, às populações. Junte-se a isto uma sociedade civil anémica, que nem em face da tragédia que aconteceu em Pedrógão Grande pressionou devidamente as lideranças políticas, e temos as condições para continuar a praticar a célebre máxima de Lampedusa que titula este post. Para o ano há mais, como já é habitual. 

 

(também publicado aqui.)

publicado às 14:47

O silêncio pode ser ensurdecedor

por John Wolf, em 21.10.17

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Acabo de regressar da manifestação humana, de homens e mulheres, despidos de ideologia ou partidos políticos, que aconteceu na Praça do Comércio a propósito da falência ética e técnica do presente governo. Para cima de dez mil pessoas estiveram, solenes e dignos, em pose de indignação interior. Não foi necessária uma liderança vocal do protesto, não foram necessários acessórios partidários. As pessoas, toldadas e incrédulas pelo abandono do Estado em Pedrógão, Mação ou Arganil, vieram em paz, à civil. No entanto, o movimento silencioso e sereno foi contemplado por uma provocação com provável origem no governo e as suas filiais de geringonça. Bastou uma pequena seita de provocadores, que hasteou a bandeira da culpa do PS, PSD e CDS, para que alguns arrufos e socos mal orientados decorassem o terreiro do Paço. Os media, que vivem de sangue e emoções à flor da pele, para vender publicidade e comprar tele-espectadores, aproveitaram a pequena deixa para denominar a manifestação de "violenta". A RTP, pertença do Estado e do governo, apelidou o evento de "manifestação contra os incêndios", mas está a ser cínica e a obedecer aos patrões. O protesto foi mesmo contra a inexistência do governo, do Estado. Foi a favor da maior prerrogativa que um Estado deve defender - a protecção dos seus cidadãos. Mais nada.

 

fotografia: John Wolf

publicado às 19:33

Sucedâneos de demissões

por John Wolf, em 09.07.17

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O povo (e a oposição) gritava por sangue e (demissões) por causa das mortes resultantes dos incêndios de Pedrógão Grande e do assalto aos paióis de Tancos, mas o governo não respondeu à letra. Nem a ministra da administração interna nem o ministro da defesa arredaram pé. A geringonça, chica-esperta, desde a primeira hora do seu governo, vai encontrando modos de dissimular as contradições e distrair do essencial. Ao oferecer este peixe-miúdo, estes três secretários de Estado para abate de funções, pensa enganar um país inteiro com sucedâneos de demissões que deveriam naturalmente e inequivocamente acontecer. Colocar na faixa ética as viagens à pala para acompanhar a selecção nacional de futebol e não colocar a tragédia de Pedrógão e o assalto a Tancos revela o miserabilismo moral e a  total falta de escrúpulos dos actuais governantes. Mas existe ainda uma outra hipótese. Pode ser que os secretários de Estado Rocha Andrade, Costa Oliveira e João Vasconcelos saibam que vai haver chatice da grossa e que mais vale saltar do barco antes deste afundar. Parece-me muito estranho que este dossiê caia assim de paraquedas como se para calar a oposição e os detractores do governo. Deste modo a geringonça pode dizer, se perguntarem, que também sabe demitir ou exonerar, cortar ou cativar. Enfim, parecem tão certinhos e eticamente movidos, mas isto não passa de show de bola. Lamentável.

publicado às 19:56

Peido suicida

por John Wolf, em 28.06.17

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São precisamente temas de pasquim como a declaração suicida de Passos Coelho ou a flatulência de Sobral que determinarão o próximo incêndio em Portugal. O povo aprecia o circo, e dispensa a essência basilar de um sistema. Rir à conta da palermice e da mediocridade afasta o ser pensante dos grandes desígnios do país. Ser profundo e consequente custa. E, in spite of it all, não se chega a bom porto com festas de auto-comiseração, espectáculos narcisistas e verberações masturbatórias. Sentar-se à mesa como adultos e encarar a música desafinada não é para qualquer um. Ao validarem a ideia de absolvição dos pecados, numa congregação de "manifesta e inequívoca solidariedade", adiam o trabalho duro, sujo. São momentos de pico como este, de libertação orgásmica, de hibridismo transformador da "dor dos outros" em esperança para "todos", que eternizam a noção de ascensão e queda, fulgor e inconsequência. Por mais que estiquem os zeros do milhão, os mesmos não tapam a parte descoberta de um país inteiro versado nas artes hedonistas, nos prazeres. Foram os deleites que mataram as florestas. Foram as extravagâncias de uns que abandonaram o interior. Foram os cosmopolitas vibrantes que deitaram fogo à ruralidade em nome da sofisticação cintilante de uma festa de arromba. A silly season está oficialmente aberta.

publicado às 12:51

Da incapacidade crónica para assumir responsabilidades

por Samuel de Paiva Pires, em 28.06.17

Se considerarmos os problemas do SIRESP recentemente revelados, nomeadamente, a cláusula de exclusão de responsabilidade da empresa que gere o sistema caso este falhe aquando de situações de emergência - que terá tido a anuência de António Costa, Ministro da Administração Interna que assinou o contrato em 2006 -, o relatório de 2014 da KPMG, solicitado pelo governo de Passos Coelho, que identificava várias falhas no sistema, e, no que diz respeito em particular ao que se passou no incêndio em Pedrógão Grande, o vergonhoso jogo de vários organismos que procuram atribuir culpas uns aos outros e não se responsabilizam pelos seus próprios erros e problemas, concluímos que não só ninguém fica bem na fotografia, como estamos perante indivíduos com uma mentalidade infantil no que concerne à assunção de responsabilidades - só falta dizer, como as crianças, que "foi sem querer".  

 

Todos os anos Portugal é assolado por incêndios. Todos os anos os políticos se lamentam, mas pouco ou nada fazem para mudar esta situação. Desta feita, morreram 64 pessoas, muitas das quais devido a terem sido encaminhadas para uma estrada que deveria ter sido cortada. O Estado falhou naquela que é a sua principal incumbência, proteger os seus cidadãos, ninguém quer assumir responsabilidades pelas falhas e erros e o pior é que, provavelmente, no próximo ano continuaremos a ver milhares de hectares do país a arder. Tudo isto é absolutamente vergonhoso.

 

(também publicado aqui.)

publicado às 09:55

Verdadeiramente espantoso e de deixar qualquer um boquiaberto

por Samuel de Paiva Pires, em 27.06.17

Deixando de lado as notórias tentativas de cobertura das falhas recentes do SIRESP, note-se o seguinte:

O contrato assinado entre o MAI e a SIRESP, S. A. – assinado em 2006, era António Costa responsável pela pasta – estabelece que a ocorrência de situações de “força maior” ilibam a empresa de responsabilidades, em caso de falha do sistema.

O contrato refere que serão considerados “casos de força maior os eventos imprevisíveis e irresistíveis, cujos efeitos se produzem independentemente da vontade da operadora ou da sua atuação, ainda que indiretos, que comprovadamente impeçam ou tornem mais oneroso o cumprimento das suas obrigações contratuais”. E enumera: “Atos de guerra ou subversão, hostilidades ou invasão, rebelião, terrorismo ou epidemias, raios, explosões, graves inundações, ciclones, tremores de terra e outros cataclismos naturais que diretamente afetem as atividades” do SIRESP.

Ou seja, muitas (se não todas) as situações anormais em que se esperaria que o sistema de comunicações de emergência garantisse os contactos entre as autoridades que precisam de articular a ação no terreno — uma vez que os utilizadores do SIRESP vão dos bombeiros à Proteção Civil, passando pelos militares, câmaras municipais, serviços de informações, portos, entre outros — estão previstas no contrato como casos em que, falhando o SIRESP, a empresa fica isenta de responsabilidades.

publicado às 11:12

Se Pedrógão fosse no Texas

por John Wolf, em 26.06.17

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Sou apenas mais um que ignora os factos. Sou um mero papalvo que aceita as patranhas. Sou um sobrevivente da calamidade - e estou à mercê do estado de graça de Portugal. Se fosse no Texas seria bem diferente. Ao mero indício de falha de um sistema de comunicações, e à luz dos cidadãos mortos pela incompetência e irresponsabilidade políticas, os familiares das vítimas já tinham movido um processo ao Estado Português. O governo da república sabe que do outro lado da barricada está gente pequena, minifundários, almas sem grande poder de fogo para ripostar. Mas há bastante mais. Há o negócio volumoso que o SIRESP envolve; os contratos, os financiamentos, as contrapartidas. Não sei quantas centenas de milhões de euros este matrix das emergências já consumiu, mas "algum" do dinheiro tem proveniência externa. A União Europeia (UE), essa entidade reguladora por excelência, parece o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português - não se pronuncia sobre putativas responsabilidades políticas. O esclarecimento cabal de que fala António Costa não pode nascer a partir de uma comissão de inquérito de um concelho socialista como Pedrógrão Grande. Tem de ser a Comissão Europeia a iniciar um processo que extinga todas as dúvidas sobre o SIRESP; quanto dinheiro foi lá metido? E quanto terá escorrido para bolsos alheios? Finda essa parte instrutória, a "judicialidade" da UE deve determinar o grau de culpa do Estado Português e distribuir sanções e multas. Com os da casa isto não vai lá. Querem enrolar-nos a todos.

publicado às 10:46

O que importa perguntar

por Samuel de Paiva Pires, em 21.06.17

Rui Ramos, "Um país entregue à sua sorte":

 

Não, não é a altura para discutir a limpeza das matas e das bermas da estrada, a desertificação do interior, a propriedade rural, o aquecimento global e a relação dos seres humanos com a natureza. Tudo isso são temas muito interessantes, mas desta vez temos de resistir à mania nacional de fazer derivar as conversas. Neste momento, há apenas uma questão relevante: o Estado tem um sistema de protecção civil, e esse sistema falhou tragicamente. Porquê? A “natureza” e os “problemas estruturais”, como o mitológico ordenamento do território, não ilibam o sistema, porque a protecção civil existe para defender as populações nas condições existentes, mesmo quando tudo é “muito rápido”, e não apenas em condições ideais, como fossem aquelas em que o país se tivesse desenvolvido de outra maneira ou a progressão dos fogos fosse sempre muito lenta.

 

(...).

 

Os oligarcas não querem que se “faça política” com a tragédia. Mas se não “fizermos política” com a morte evitável de 64 pessoas, para que serve então a política? Só para festejar vitórias no Festival da Canção? A oligarquia convenceu-se recentemente de que a política são uns abraços. Mas a política não devia ser um programa televisivo da manhã, mas o debate sobre o estado de um país onde desta vez faltou a sorte que houve noutras ocasiões. Porque com esta oligarquia política, só a sorte nos pode valer.

publicado às 12:10

SIRESPonsáveis

por John Wolf, em 20.06.17

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Os promotores do magistério intocável do luto podem transmitir às famílias das vítimas que o sistema de comunicações SIRESP provavelmente falhou e que alegadamente resultou na morte trágica dos seus parentes. Não existe árvore criminosa nem trovoada delinquente que possa ilibar a responsabilidade de políticos desprovidos de sentido ético. O luto, interpretado por todos menos os próprios inflamados, deixou de ser de pesar. O luto é indignação. O luto é raiva. O luto é exigir responsabilidades. O luto é pedir demissões. O luto não é um alibi para encapotar as verdades. O luto não é atribuir a culpa à natureza feroz. O luto não é silenciar aqueles que defendem a reserva natural da verdade e respectivas consequências. Não querem assumir a SIRESPonsabilidade? Deveriam ter vergonha na cara. Todos eles. Os governantes do passado, do presente e provavelmente do dia de amanhã. Em vez disso colocam paninhos quentes no eucalipto queimado.

publicado às 09:28

Como ajudar os bombeiros neste momento (2)

por Samuel de Paiva Pires, em 19.06.17

Haverá certamente que apurar responsabilidades, debater estratégias e actuar no sentido de melhorar o dispositivo de prevenção e combate aos fogos. Até lá, é ajudar os bombeiros que estão no terreno e as populações afectadas por este flagelo. Entre as várias louváveis iniciativas, destaco a da Uber, que permite utilizar a aplicação para solicitar gratuitamente recolhas de donativos como água e bens não perecíveis.

 

Entretanto, para os que estão em Lisboa, podem entregar soro fisiológico (unidoses), compressas, ligaduras e adesivos, a qualquer hora do dia e da noite, no quartel dos Bombeiros Voluntários de Lisboa, no Largo Barão de Quintela.

publicado às 16:21

Como ajudar os bombeiros neste momento

por Samuel de Paiva Pires, em 18.06.17

Ver aquiaqui ou aqui.

publicado às 18:28

Portugal, Pedrógão e o ambiente mental

por John Wolf, em 18.06.17

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in Portugal Traduzido, Edições Cosmos 2008

 

Ambiente Mental

 

Para lidar com a primeira entrada do abecedário, teremos de reconhecer os diferentes significados e aspectos do conceito de ‘ambiente’. Por exemplo, efectuar uma distinção entre ambiente natural, natureza ou ecossistema, e ambiente humano. As dimensões a que nos referimos são indissociáveis, pelo que em Portugal tem sido difícil estabelecer a relação de parentesco entre o indivíduo e o ambiente. A natureza em Portugal é um filho bastardo e mal amado.

A natureza não é assumida enquanto propriedade colectiva ou património nacional, de forma activa e inquestionável. Talvez o nascimento de cada indivíduo e a consequente atribuição de nacionalidade deveria implicar a propriedade de um qualquer enésimo do território do país. Esta forma de cidadania proprietária teria um efeito psico-simbólico intenso, gerando uma espécie de auto-estima territorial.

Não reconhecer o valor do espaço de inserção geográfico, significa praticar uma forma de ‘geo-fobismo’, expulsando a terra, tornando cada indivíduo um membro voluntário de um movimento sem-terra. Talvez devido ao seu passado histórico colonial, Portugal tenha subvertido a importância do conceito de espaço vital imediato, com a excessiva disponibilidade além-mar a incutir uma nefasta atitude perdulária. Nem mesmo a Conferência de Berlim de 1884, que instituiu o princípio de ocupação efectiva dos domínios coloniais, e que retirou territórios e capacidade de projecção de poder a Portugal, terá servido para um ‘regresso’ a limites geográficos proporcionais à dimensão nacional. Poderemos legitimamente perguntar: como e quando se inicia um processo de desrespeito pela dimensão física e natural de Portugal? Não encontraremos na literatura ou na pintura a exaltação da geo-pátria? Terá sido o antigo regime um solitário proclamador do alto da montanha? Não será possível aproveitar alguns elementos edificantes em detrimento de outros com forte carga política? E será que o 25 de Abril libertou o homem para este voltar a ser um bom selvagem?

Assistimos ao tabu do domínio da terra sobre o homem, porque, de forma deturpada, o cuspir sobre o passeio ou a queimada incendiária serão expressões da interpretação desequilibrada do sentido de poder ou liberdade, fortemente entranhado na prática quotidiana. A análise do fenómeno anti-natureza em Portugal tem de seguir um critério mais estrutural e sociológico. A modernidade, promovida pelos governos pós 25 de Abril, apoia-se em imagens de betão armado, carros velozes e roupa de marca. Ironicamente, a imagem exterior dos indivíduos alcançou uma expressão notável em detrimento da preservação do ambiente. Mesmo perseguindo um idealizado parcelamento da propriedade latifundiária, tal não serviu a salvaguarda de um sentido ecológico. Esta indiferença em relação ao ambiente reflecte um desapego pelo abstracto, na medida em que os vínculos afectivos não se estabelecem em relação a um ideal de espírito livre ou natureza selvagem. Assim, a floresta é apropriada enquanto fenómeno de massas, colectivo e irracional, mas não por uma vontade individual.

Um olhar possível sobre um processo de evolução (que obedece alternadamente a mecanismos de auge e declínio, êxito ou tragédia) pode limitar-se à aceitação do destino, sem intervenção humana praticável. Ou seja, o cidadão é um mero espectador do fenómeno natural ou, no limite, um interventor negativo. Outra leitura admissível diz respeito ao modo como a rejeição da procedência provinciana pode significar o cortar de relações afectivas com o atraso estrutural do interior não-urbano. Uma vez que os centros urbanos são habitados pelos que abandonaram as suas origens humildes e campestres à procura de melhores condições de vida, verifica-se uma tomada de consciência deturpada de modernidade, através da qual se procura dissimular a proveniência, simulando sofisticação. Os eventos que afligem a floresta não comovem porque já representam factos distantes da neo-urbanidade adquirida pelos migrados do campo.

A única forma de corrigir comportamentos eco-destrutivos parece ser através da instituição de um sistema sancionatório implacável, em simultâneo com mecanismos que reconheçam os esforços de reposição do equilíbrio ambiental. Os filhos menores devem reconhecer aos pais o esforço que estes desenvolvem para separar o lixo e respeitar os eco-pontos. A adopção de uma ‘agenda ambiental’ significa co-responsabilizar governos indivíduos, crianças e proprietários de cães que lançam os seus dejectos nos passeios.

A promoção de objectivos concretos poderá representar uma janela de oportunidades para converter adversidades em mais-valias. Por exemplo, à semelhança da recente legislação que obriga as novas construções a instalar sistemas de energia solar, a instalação de redes de cisternas ou depósitos para aproveitamento de águas das chuvas poderia representar uma primeira solução para o problema de escassez de água, que terá de ser confrontado seriamente e a breve trecho. Esta solução, não original, foi concebida e instituída pelos árabes durante a sua permanência na Ibéria. Um ‘plano tecnológico’ não significa necessariamente novidades sofisticadas, e por vezes o próprio traçado histórico oferece algumas soluções. A tecnologia comporta na sua génese uma ideia de optimização e simplificação. Uma sociedade desenvolvida garante a sua continuidade pela manutenção dos seus elementos naturais, através de um status quo que em certa medida contradiz a ideia de alteração dinâmica, mudança e progresso. Nesta acepção, o desenvolvimento corresponde à capacidade de manutenção dos factores de equilíbrio herdados do passado.

Associamos a esta noção uma outra, de historicidade natural, através da qual poderemos aceitar a evolução política que altera profundamente a configuração mental e cultural da população, mas que não afecta dramaticamente a expressão física ou geográfica do território.

A ideia de reserva natural em Portugal assemelha-se a uma wasteland, sem utilidade perceptível para as populações. A noção de qualidade de vida dos indivíduos não integra o factor natureza enquanto um elemento determinante. O ‘cidadão-tipo’ prefere eleger a propriedade de um bom carro ou casa, os fins-de-semana no Algarve do betão, ou um horário laboral flexível como elementos definidores de qualidade de vida. Parece ter-se tornado um síndrome nacional o vínculo a matérias ou factos que representem novidade, daí que a natureza ‘eternamente silenciosa’ não consiga oferecer nenhum estímulo adicional relevante.

Este quadro ainda se torna mais negro pela ausência de debate sobre a protecção ambiental, sendo que me refiro àquele desenvolvido espontaneamente pelos indivíduos, e não pelas associações de defesas do ambiente ou autoridades nacionais. Enquanto a ‘consciência de ambiente’ não se democratizar e popularizar, no espírito de cada um, não se vislumbra uma evolução favorável para a paisagem natural. Do mesmo modo que cada contribuinte tem a noção do imposto ou taxa que paga pela propriedade de uma viatura ou casa, seria conveniente integrar nessa consciência fiscal a quota devida ao ambiente.

A operacionalidade de uma ‘polícia do ambiente’, eficiente e percepcionada como tal pelas populações, constitui uma obrigação moral dos governos. Uma forma de contrariar a primitiva prática de abandono de frigoríficos ou baterias no matagal, seria instituir um sistema de registo de propriedade dos equipamentos, que delimitaria os tempos de vida útil, comprometendo os proprietários com o depósito no termo da sua utilidade. Uma espécie de banco ambiental contra a poluição.

O mais importante será socializar e politizar a questão ambiental, e que a problemática faça parte do domínio doméstico das preocupações existenciais de cada indivíduo. A lei do frigorífico, enquanto exercício exemplar, poderá servir de nota de lembrança para as transgressões ambientais, e fazendo uso de um efeito de spill-over, estaremos a contribuir para a tomada de consciência da importância do ambiente.

Outra forma de induzir o respeito pelo ambiente, poderia materializar-se na criação de um cadastro ambiental que registasse as transgressões em relação ao ambiente, perpetradas por cidadãos ou empresas. Depois, num segundo momento, a informação resultante do cadastro seria cruzada com o sistema fiscal no sentido de penalizar os prevaricadores em sede de IRS ou IRC.

Uma das grandes dificuldades que Portugal encara, prende-se com um sentido de orgulho nacional fortemente dependente da expressão física da riqueza. A intelectualidade em Portugal é rejeitada porque integra uma dimensão não materialista e porque colide com aquilo que poderemos designar por ‘expressionismo’ físico. A afirmação social pode no entanto levar a que se faça a dupla demonstração do nível cultural e o grau de riqueza, através da compra de tomos de enciclopédias com lombadas douradas que têm lugar cativo nas estantes das salas de estar, e que fazem o regalo de observadores pouco exigentes.

Uma interpretação parcial do próprio significado ou alcance da era de informação pode conduzir-nos a um juízo reducionista definido em termos de atributos logísticos ou de transporte de informação, através do qual se atribui maior importância à rapidez da entrega de mensagens ou conteúdos. Os excessos de velocidade que se registam nas estradas portuguesas e que conduzem a acidentes desnecessários, encontram analogia na forma como se transportam conteúdos na era de informação. Uma noção ecológica e cultural poderia estabelecer uma hierarquia na escala de valores de informação, o que significa que os produtores de informação devem procurar obedecer a critérios de qualidade, objectividade, veracidade e não necessariamente a rapidez. Nessa medida, um país ecológico investe no terreno fértil do conhecimento e cultura, e na educação dos seus cidadãos, que representa sempre um processo lento e geracional. A era da informação poderá tornar-se numa era de conhecimento se um plano tecnológico não for vendido como destino final, mas um elo de um processo muito maior. O esforço de prossecução de equilíbrio ambiental associa-se inequivocamente à ideia de paridade entre as dimensões intelectual e cultural, relegando para segundo plano a tecnologia e a ideia de vanguarda.

A excessiva estratificação social do país é também responsável por vários desequilíbrios estruturais e ambientais, incluindo o desnível cultural e intelectual, pela forma como as elites se apropriam dos meios de desenvolvimento à custa do progresso colectivo. Este fenómeno observável noutras sociedades, assume contornos especiais em Portugal porque o ‘povo’ não demonstra capacidade para produzir factores de contrapeso. A não partilha de conhecimentos na sociedade portuguesa constitui uma prática contra-produtiva e geneticamente comprometedora pela forma como contraria a teoria de evolução das sociedades, construída sobre a premissa da comunicação entre os diferentes segmentos ou classes da sociedade. Uma noção, porventura herdada do corporativismo, instigou uma actuação compartimentada, sem trocas ou comunicação efectiva. A experiência de um sector ou domínio dificilmente transborda para um ecossistema distinto, apenas porque subsiste uma atitude conservadora pouco aberta a códigos diferentes. Questionamos se Portugal aproveitou a experiência histórica da multiculturalidade, das línguas e costumes distintos do império colonial. E nesse contexto observamos uma forma de desequilíbrio ambiental histórico. Neste momento o quadro mental de defesa do círculo restrito de conhecimento implica desconfiar continuamente de qualquer tentativa de incursão da parte de elementos excêntricos ou imigrados. Esse quadro social de defesa de interesses específicos compromete um sentido de desenvolvimento alargado e colectivo, capaz de integrar a diferença e a mudança, o que em última análise implica o progresso da sociedade.

Na natureza, as novas espécies resultam da evolução genética forçada pelas condições adversas do meio envolvente. As sociedades, que são macróbios (grandes formas de vida), evoluem através de processos de ruptura e equilíbrio entre os diferentes agentes que as integram. Nessa medida, enquanto a prática da dialéctica entre indivíduos não ocorrer em todos os fóruns e numa sociedade aberta, a ideia, conceito ou as práticas, nunca atingirão um grau de maturação suficiente para se converterem em matéria de desenvolvimento para uma sociedade.

As ideias, ao contrário dos ideais, que nascem na intangibilidade do espírito humano, são também fruto da experiência dos outros, transcritas em obras metodologicamente organizadas e que podem ser alvo de leitura e interpretação. Apenas uma fundamentação sólida do conhecimento poderá permitir ulteriores desenvolvimentos de um ideal de progresso. Se uma sociedade não promove a inteligência e a cultura de forma sustentada estará a contribuir para o desequilíbrio ambiental, pelo défice e peso da representação de uma população inculta ou analfabeta. Ter a expectativa de que a ferramenta tecnológica poderá preceder e estimular o aumento do nível cultural da população é contrária à lógica de desenvolvimento humano, em Portugal ou qualquer outro destino.

publicado às 16:57






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