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Gentinha

por Samuel de Paiva Pires, em 20.08.16

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Gente que me criticou por reivindicar uma bolsa de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, afirmando que eu estava a querer viver à custa do erário público, mas que nunca se preocupou em saber o que acontece ao dinheiro público investido em Ciência e quais os resultados dos projectos de investigação colectivos ou individuais financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

 

Gente que me criticou por lançar uma campanha de crowdfunding para financiar as propinas do meu doutoramento, argumentando que há pessoas a passar fome ou a viver na rua que são mais merecedoras de apoio financeiro do que um doutoramento, e que certamente deve dedicar parte do seu tempo e dinheiro a ajudar estas pessoas pouco afortunadas ou a praticar a caridade em geral.

 

Gente que critica os atletas portugueses por não ganharem medalhas nos Jogos Olímpicos, afirmando que o país não é devidamente recompensado pelo investimento que faz nestes atletas, quando o desporto em Portugal é parcamente financiado pelo dinheiro dos contribuintes, sendo a participação dos atletas nos Jogos Olímpicos resultado, em primeiro lugar, do esforço e do investimento dos próprios atletas.

 

Gente que passa a vida a falar em empreendedorismo, a exaltar as virtudes do sector privado, a diabolizar o sector público e o Estado e a criticar os que recebem dinheiro do erário público, mas que anda sempre de mão dada com o Estado para que este contrate a sua empresa ou lhe arranje uns contratos noutros países ou de mão estendida para que o Estado financie a sua empresa com dinheiro dos contribuintes.

 

Gente que ainda não percebeu que nem tudo o que o sector privado faz é mau, nem tudo o que o Estado faz é bom e vice-versa.

 

Gente que defende o princípio de que o Estado deve cumprir os seus compromissos internacionais, mas que não se importa que este incumpra os compromissos que tem para com os seus cidadãos e empresas, excepto se disserem respeito ao financiamento estatal de algo que seja do seu agrado, como, por exemplo, colégios privados, pelo que aí o pacta sunt servanda volta a ser um princípio inviolável.

 

Gente que quando a direita está no governo brada aos céus que essa governação enferma do pecado de ser ideológica, como se a da esquerda não o fosse – ou qualquer governação.

 

Gente que julga ter contactos imediatos com “a realidade” e que o seu conhecimento sobre o que esta é valida as suas posições e invalida as dos outros.

 

Gente que ainda não percebeu que nem tudo o que é legal é lícito e continua a cometer actos que o mais elementar bom senso desaconselharia, justificando-se com o argumento de que a lei o permite, esquecendo-se ou ignorando que o Estado de Legalidade não é o mesmo que o Estado de Direito.

 

Gente que exalta a meritocracia, mas não hesita em accionar cunhas para si, para os amigos ou para os familiares e que ainda é capaz de acusar terceiros de amiguismo e nepotismo.

 

Gente que clama contra a corrupção, mas que é corrupta até mais não.

 

Gente que afirma seguir elevadíssimos valores morais, mas que sempre que lhe é conveniente não hesita em metê-los na gaveta, se é que alguma vez seguiu os valores que proclama.

 

Gente que não é capaz de seguir a conduta moral que exige dos outros.

 

Gente que não hesita em fazer aquilo que critica que outros façam.

 

Gente que defende ou critica determinada decisão consoante a pessoa que a toma seja ou não da mesma cor política, clube, religião ou qualquer outro tipo de afiliação.

 

Gente que acha que quanto mais alto gritar, mais razão terá.

 

Gente que acha que se repetir muitas vezes uma mentira, nas mentes de outros passará mesmo a ser uma verdade.

 

No fundo, gente que faz da hipocrisia, do cinismo, da indignação selectiva e dos double standards um modo de vida.

publicado às 01:08

Algo a que assisti com curiosidade ao longo do último ano e meio foi a forma como muitos indivíduos, alguns dos quais até tinha em estima e na conta de seres vertebrados, comprovaram o que Schumpeter descreveu de forma magistral em Capitalismo, Socialismo e Democracia«O cidadão típico, por conseguinte, desce para um nível inferior de rendimento mental logo que entra no campo político. Argumenta e analisa de uma maneira que ele mesmo imediatamente reconheceria como infantil na sua esfera de interesses reais. Torna-se primitivo novamente. O seu pensamento assume o carácter puramente associativo e afectivo.»


Infelizmente, a política em Portugal acaba por se concentrar mais em pessoas do que valores ou ideias. À volta dos líderes políticos há, no fundo, claques de futebol. Sabendo-se que o mais das vezes temos os mesmos agentes políticos que criticam determinadas políticas enquanto na oposição, a implementar políticas iguais ou idênticas quando no governo, não deixa de ser espantoso que as claques consigam acompanhar este movimento, muitas das vezes quase sem hesitação. Claro está que muitos o fazem porque têm interesse directo em tal - querem manter o emprego no governo, no parlamento, na câmara municipal etc. Quanto a estes, o facto de venderem desbragadamente os seus próprios princípios já diz quanto baste sobre a sua verticalidade. Já os outros, que não dependem directamente do governo, apenas o apoiando por mera identificação ou simpatia com as cores partidárias, constituem para mim um enigma. O que é que terão a ganhar em defender pessoas acima de ideias, pessoas que frequentemente levam à prática ideias que consideram erradas? Mero reconforto afectivo, porventura, de acordo com Schumpeter. Afinal, o espírito de manada é algo que há muito se apoderou das sociedades democráticas. Defender pessoas quando estas mudam de opinião em relação ao que antes professavam parece ser algo a que, dado o carácter associativo e afectivo do indivíduo típico no campo político, estamos fadados a assistir. Porém, em certos casos, e porque o homem vai fazendo a história sem saber que história faz, as mudanças de opinião até podem ter implicações positivas e saudáveis.  

 

Mas há algo que é mais preocupante no concernente a este espírito de manada. Se no campo da opinião impera em larga medida o relativismo, o mesmo não se pode dizer nos campos da honestidade, da correcção moral, da conformidade a certas normas sociais e legais. Dando um exemplo prático e muito actual, que alguém que criticava violentamente José Sócrates pelas suas abjectas trapaças consiga defender Miguel Relvas, cujo rasto de trapaças já se tornou nauseabundo, é apenas revelador já não só de falta de verticalidade, mas de uma gritante pulhice. Mais, que muitos dos que enveredam por semelhantes atitudes critiquem e ataquem os que o não fazem, especialmente quando estes até podem encontrar-se politicamente na mesma área ou partido, revela já não só a falta de verticalidade e a pulhice de que sofrem, mas aquilo que verdadeiramente são: vermes.

 

Aqui chegados, parece fazer sentido actualizar a tocquevilliana preocupação com a tirania da maioria. O que me parece ser bem mais preocupante é a vermocracia, a tirania dos vermes.

 

Há quem pareça incomodar-se com o facto de alguns indivíduos, como é o meu caso, poderem em dado momento defender uma posição à qual se aproximam ora a esquerda, ora a direita partidárias, consoante estas estejam no governo ou na oposição. O problema é que não são aqueles indivíduos que mudam de posição. Não sou eu que ando de um lado para o outro. Eu estou sempre no extremo centro, que apenas obedece à independência da minha consciência. Há muito que aprendi que a essência do homem livre é ser do contra, preferindo resistir à massa - já Jung assinalou que «A resistência à massa organizada só pode ser efectuada pelo homem que tem a sua individualidade tão bem organizada quanto a própria massa» - e não me preocupando com as apreciações dos que pensem diferentemente de mim, rejeitando o consequencialismo para que possa, como aprendi com um dos meus mestres, viver como penso em vez de pensar como vivo, às vezes de bem com uns e mal com outros, outras vezes de mal com uns e bem com outros, quando uns nunca estão bem com outros. Há quem lhe chame radicalismo. Eu chamo-lhe apenas independência de espírito e força de carácter. 


Felizmente, há bastantes indivíduos que alinham pelo mesmo diapasão, embora em muito menor número que os vermes. Mas há que resistir e continuar a travar os combates que possam permitir que um dia o Portugal político seja um local mais recomendável, com um ar mais respirável. É que, seguindo os ensinamentos de La Boétie, que inspiram o cabeçalho do blog do Professor José Adelino Maltez, «n'ayez pas peurNa servitude volontaire o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá.»

publicado às 21:05






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