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José Adelino Maltez, Reflexões de um herético, adepto da revolução:
«O destino de um "whig" é como o de um "girondin". Os "tories" consideram-nos jacobinos e estes utilizam contra eles a guilhotina, acusando-os de "contra-revolucionários". Eles, como liberais, contra o construtivismo das revoluções, apenas querem uma revolução evitada, isto é, querem conservar o que deve ser, com metodologias reformistas e objectivos revolucionários. Apenas são velhos liberais, contra "neocons", "neolibs" e revolucionários frustrados, incluindo os que se transformaram em situacionistas. Detestam as "révolutions d'en haut", incluindo as dos déspotas esclarecidos, a partir do ministerialismo.
Alguns ainda vão dizer que isto é maçónico. Quando é apenas paleio do Friedrich Augustus e do Karl Raimund. Isto é, liberal e iluminista. E muito austríaco. Apesar de só a partir de Londres, o terem dissertado. Meras marcas identitárias de uma concepção do mundo e da vida. Friedrich Augustus von Hayek. Karl Raimund Popper. Ou a sociedade aberta e os seus inimigos, os do caminho para a servidão.»
O meu post anterior, desta série, provocou uma interessante resposta do Pedro. De salientar, ainda, a recomendação do Manuel sobre este post onde Rui Botelho Rodrigues considera Friedman como um autor que os liberais deveriam esquecer. Deste último, destaco a afirmação de que é aliás possível reconhecer o seu papel como «porta de entrada» para a ideologia liberal. Mas, uma vez passada a porta, Friedman deve ser esquecido e renegado, porque no fundamental foi um obstáculo à, senão um inimigo da, liberdade, tanto nas suas acções como nas suas palavras.
Na verdade, para o ensaio que elaborei, considerei apenas o capítulo de abertura de Capitalism and Freedom, intitulado "The relation between economic freedom and political freedom". E este é, na minha opinião, um texto que deveria ser lido por todos os liberais, precisamente como porta de entrada para o liberalismo.
Procurarei, de forma breve, aprofundar a análise respondendo aos pontos levantados pelo Pedro, recorrendo às interpretações e conclusões a que cheguei no já referido ensaio.
Em primeiro lugar, quanto à distinção entre a liberdade económica ou individual, a conclusão a que cheguei, partindo dos ensinamentos de Friedman, Hayek e John Gray, é que a liberdade individual assenta em dois tipos de liberdade: a económica e a política, sendo a segunda um resultado da primeira. Hayek assinala-o ao afirmar que “the subsequent elaboration of a consistent argument in favor of economic freedom was the outcome of a free growth of economic activity which had been undesigned and unforeseen by-product of political freedom”1. Milton Friedman sintetiza a mesma ideia, dizendo-nos que “the kind of organization that provides economic freedom directly, namely, competitive capitalism, also promotes political freedom because it separates economic power from political power an in this way enables one to offset the other”2.
A propriedade privada é, assim, um elemento fundamental para alcançar a liberdade individual, tal como Locke já havia teorizado, e como Gray assinala ao considerá-la como “an institutional vehicle for decentralized decision-making”3 em estreita ligação com a capacidade de um indivíduo dispor de si próprio, das suas capacidades e talentos. Isto só acontece, em termos económicos, num sistema de mercado, em que a coordenação sobre as actividades económicas não é coerciva, e, em termos políticos, num sistema liberal, em que o Governo seja limitado, assegure o rule of law, e respeite as liberdades individuais.
É por isso que, não pode existir uma autoridade centralizada. Friedman, Hayek, Popper, Berlin e tantos outros, tiveram como experiências formativas das suas vidas (na expressão de George Soros), os totalitarismos nazi e/ou comunista. Neste tipo de sistemas sociais, o Estado engloba todas as áreas da vivência individual, sendo o principal agente/jogador no sistema económico, que lhe está completamente subjugado. Julgo ser este tipo de entidade que se considerada uma autoridade centralizada, que pelas suas características se impõe e coarcta a liberdade dos indivíduos. O Pedro considera que não pode haver liberdade sem autoridade. Eu, porém, prefiro pensar que não pode haver liberdade sem responsabilidade. Além do mais, o entendimento do Pedro assemelha-se ao de Rousseau, que n'O Contrato Social diz explicitamente que o Estado é uma entidade abstracta e colectiva que tem como instrumento o Governo, i.e., “um corpo intermédio estabelecido entre os sujeitos e o soberano por mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política”4 que resulta de um acto do povo enquanto soberano5.
Naturalmente, para que se assegure a liberdade individual, é imperativo que a coerção seja minimizada, pelo que “o Estado só deve utilizar a força quando tal seja necessário para evitar que os indivíduos se coajam uns aos outros”6. Assim, não deve caber ao Governo a manutenção da liberdade, como defendia Rousseau, até porque tal acepção é uma contradição. O Governo constitui-se precisamente para constranger a liberdade de que os indivíduos gozam no estado de natureza mas, contudo, para assegurar que mantêm direitos e liberdades inalienáveis e se respeitam uns aos outros.
Esta interpretação está também presente no clássico ensaio de Isaiah Berlin, Two Concepts of Liberty, onde discorre sobre as concepções de liberdade negativa e liberdade positiva. Entende-se que existem duas esferas distintas, uma pública e outra privada, entre as quais deve ser demarcada uma fronteira, permanecendo inviolável uma certa área mínima de liberdade individual que nos permita prosseguir e conceber diversos fins como nos aprouver. No entanto, ao demarcarmos essa fronteira, estamos na realidade a constranger a liberdade, a sacrificar uma porção desta para preservar o resto, já que “we cannot remain absolutely free, and must give up some of our liberty to preserve the rest”7 – o que Rousseau se recusa a fazer e o levará à escravizante abstracção do bem comum e da vontade geral.
Robert Nozick, na mesma linha de Hayek, defendeu que o único modo legítimo de organização dos recursos materiais e humanos é o que resulta das actividades dos indivíduos em trocas competitivas uns com os outros. Em decorrência desta legitimidade, as únicas instituições políticas justificáveis são as que actuam com o objectivo de assegurar um enquadramento ou ambiente de liberdade, ou seja, as que contribuem para a manutenção da autonomia e dos direitos dos indivíduos8.
No seguimento, não creio que Friedman entre em contradição, como refere o Pedro. Parece-me é que, no fundo, é necessária uma clarificação discursiva do entendimento desse e da minha parte - no que, humildemente, posso interpretar do seu pensamento. Nenhum liberal prescinde do governo ou defende a extinção deste. Partindo do pensamento de Locke e de Montesquieu, autores fundacionais do liberalismo, há uma convergência por parte dos liberais quanto ao cepticismo em relação ao exercício do poder, apesar de encararem o governo como um mal necessário, pelo que se preocupam essencialmente em arquitectar checks and balances que actuem como forma de difusão do poder, salvaguardando a liberdade individual da coerção por parte de terceiros, em especial do próprio Estado.
Não se prescinde do governo. Prescinde-se, isso sim, da sua intervenção na economia. É fundamental o seu papel regulador, precisamente para assegurar o tal enquadramento ou ambiente de liberdade, já que é ao Governo que compete determinar as regras do jogo. Claro que, como refere o Pedro, as regras podem mudar. E aqui, só me posso socorrer da teoria do conhecimento de Karl Popper e também do princípio da ignorância constitutiva do ser humano, de Hayek . Sendo o nosso conhecimento inerentemente imperfeito e assentando num método dedutivo em que conjecturas e refutações servem para falsificar teorias, num diálogo que só é possível numa sociedade aberta, então é apenas legítimo que as regras mudem. Se o Estado desempenhar correctamente o papel de regulador e não de interventor na economia, prevenindo e corrigindo os desvios à liberdade como os monopólios e oligopólios, o mercado naturalmente será verdadeiramente livre.
Caso contrário, se o Estado tiver um papel determinante na organização dos recursos económicos, há um poder coercivo pendente a todo o momento sobre todos os actores - e tal situação não compreende um mercado livre. Saliento ainda que, concordando com o Pedro, a coerção não é um exclusivo do Governo. Aliás, os próprios indíviduos se coagem. É por isso mesmo que o Governo tem como uma das suas principais atribuições assegurar que os indivíduos não interferem nas esferas de liberdade uns dos outros, sendo este, de facto, um dos principais fundamentos na sua origem (pelo menos para o liberalismo de matriz anglo-saxónica).
Por último, pego no início do post do Pedro, quando refere que o Estado deve ser uma autoridade a ter em conta pelo mercado, no seu aspecto jurídico e constitucional. Estes, por sua vez, devem exercer a sua autoridade tendo como fim a defesa da soberania e dos princípios da moral cristã-católica e não quimeras igualitárias nem papel redistributivo da riqueza.
Peço desde já desculpa ao Pedro, pelo atrevimento, mas espero que me permitas a inversão do argumento. Se o Estado tem como fim a defesa da soberania e dos princípios da moral cristã-católica, presidindo estas ao seu edifício jurídico e constitucional, e se o mercado deve ter em conta a autoridade do Estado, significa, portanto, que o mercado deve ter um determinado quadro moral e fins fixados de acordo com este.
E se assim é, estou em total desacordo. Em primeiro lugar porque deve caber aos indivíduos a fixação dos fins que bem entendam que devem prosseguir, e não ao Estado. Se for o Estado a fixar os fins, esse é apenas um dos muitos caminhos para a servidão. Em segundo lugar porque da liberdade individual faz parte a liberdade de escolher os quadros éticos que se deseja prosseguir, bem como religiosos. Em terceiro lugar, porque não se devem estender concepções éticas ou morais ao mercado. Por ser amoral, e não imoral, é que o mercado é tão eficiente a criar riqueza, como assinala George Soros, numa das suas cinco palestras na Central European University, intitulada "Capitalismo vs. Sociedade aberta" (disponível em livro, editado pela Almedina, e também online).
Nos mercados em concreto, os actores são considerados individualmente, tendo cada qual o seu quadro ético e os seus fins. Numa realidade económica globalizada em que os mercados e os sistemas económicos e financeiros estão extremamente interligados, integrados, entrelaçados, tornando-se uma realidade demasiado complexa para qualquer ser humano conseguir compreender na sua totalidade, há, certamente, valores e quadros morais diversificados que servem de referência aos indivíduos. Contudo, não são estes valores, que decorrem precisamente da esfera da ética, e portanto, da esfera política e/ou religiosa, que estão em questão num mercado - a concepção de interesse nacional, utilizada para justificar a utilização da golden share pelo governo socialista é um exemplo paradigmático do quão desastrosa pode ser a intervenção estatal no mercado assente em determinadas concepções valorativas; ainda para mais, neste caso, tratando-se de uma conceptualização confrangedora, já que, como aqui salientei, não havendo Conceito Estratégico Nacional, o interesse nacional se torna uma abstracção de carácter demasiado volátil, convidando a utilizações e manipulações indevidas, que desvirtuam o próprio conceito.
Como Soros aponta, "os mercados são apropriados apenas para as escolhas individuais, e não para as decisões sociais. Permitem que os participantes individuais se dediquem à livre troca, mas não foram concebidos para o exercício de escolhas sociais, como o estabelecimento de regras que devem reger a sociedade ou governar o mecanismo do mercado. Isto pertence à esfera da política". E o inverso é também verdade, ou seja, alargar a concepção do mercado livre à política é um erro, pois ao tornar a política amoral, descaracteriza-a e coloca-a em causa, até porque não há qualquer possibilidade de neutralidade ética nesta esfera. Por isso, o mesmo autor aponta que "Estender a ideia de um mercado livre, que se governa e corrige a si próprio à esfera política é profundamente ilusório, pois retira as considerações éticas da política, sem as quais não pode funcionar correctamente"9.
Notas
1 - Cfr. F. A. Hayek, The Road to Serfdom: text and documents – The Definitive Edition, Bruce Caldwell (ed.), Chicago, The University of Chicago Press, 2007, p. 69.
2 - Cfr. Milton Friedman, Capitalism and Freedom, Chicago, The University of Chicago Press, 2002, p. 9.
3 - Cfr. John Gray, Liberalism, 2.ª Edição, Minneapolis, The University of Minnesota Press, 1995, p 62.
4 - Cfr. Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2003, p. 62.
5 - Cfr Idem, ibidem, p. 100.
6 - Cfr. Manuel Fontaine Campos, “ Friedrich A. Hayek: Liberdade e Ordem Espontânea”, in João Carlos Espada e João Cardoso Rosas, Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução, Lisboa, Bertrand, 2004, p. 37.
7 - Cfr. Isaiah Berlin, “Two concepts of Liberty” in Isaiah Berlin, Four Essays on Liberty, Oxford, Oxford University Press, 1969. Disponível online em http://www.nyu.edu/projects/nissenbaum/papers/twoconcepts.pdf. Consultado em 01/07/10. P. 5.
8 - Cfr. David Held, Models of Democracy, Cambridge, Polity Press, 2008, p. 202.
9 - Cfr. George Soros, As Palestras de George Soros na Central European University, Coimbra, Almedina, 2010, p. 92.
(imagem picada daqui)
Às segundas-feiras, tendo aulas até às 22h, hora a que o 723 para o Desterro já não funciona, acabo por chamar um táxi para me deslocar da faculdade até casa. Hoje, como normalmente, assim fiz. E já há muito tempo que não apanhava um taxista culto e com um português escorreito e correctíssimo. Tão bem falado, que numa única frase traduziu por miúdos o que Popper enunciou como um dos problemas do nosso tempo, o relativismo moral e intelectual. Disse o taxista V. que o problema da democracia é que "qualquer "bonzo" com um mínimo de carisma consegue ter milhares de seguidores, mesmo que só diga merda". Pois é.
Por aqui não fizemos balanços de 2009, e quanto à minha pessoa ainda bem, até porque isso me parece cada vez mais banal. Convenção "social-blogosférica", quase forçada, e no que a este blog diz respeito, parece-me que mais vale continuar na senda de Le Goff ou de Agostinho da Silva, porque o que é verdadeiramente importante é entender o passado para perceber o presente e projectar o futuro, como diria o primeiro, e também porque o que é verdadeiramente tradicional é a invenção do futuro, como diria o segundo. Ademais, e talvez seja a maior justificação para tal, falta-me a paciência e o tempo para fazer balanços. Prefiro continuar na senda do Professor Maltez, esperando que possamos seguir estes princípios verdadeiramente liberais.
E prefiro também continuar a desconstruir as certezas absolutas que entre nós continuam a fazer escola. Por isso, a começar o ano, aqui deixo a última parte e a conclusão de um paper que recentemente terminei, e a que já havia aludido aqui, em que analiso a forma como Schumpeter evidencia as falácias jacobinas do bem comum e da vontade geral.
Desconstruindo a Doutrina Clássica da Democracia
Aquilo que Popper ou Schumpeter consideram como a doutrina ou teoria clássica da democracia, vimos já, assenta essencialmente nos conceitos de bem comum, vontade geral e soberania popular, teorizados por Rousseau. Embora David Held considere que não há uma teoria clássica da democracia, mas sim diversos modelos clássicos[1], tomaremos em consideração a denominação de Popper e Schumpeter, no que diz respeito à democracia de inspiração francesa.
Tendo como principal preocupação elaborar uma teoria explicativa que pudesse permitir uma melhor compreensão do funcionamento das democracias, a sua obra mais conhecida, Capitalismo, Socialismo e Democracia, viria a ter um grande impacto na Ciência Política e na Teoria da Democracia em geral, surgindo no mesmo patamar de nomes como Giovanni Sartori, Norberto Bobbio ou Robert Dahl. Em larga escala, este reconhecimento deve-se a uma elaborada desconstrução dos princípios de Rousseau.
Para Schumpeter, a democracia é um processo, um método, que ele próprio visa explicar em termos realistas e empíricos. Começa por definir a doutrina clássica da democracia rousseauniana, baseada no bem comum e na vontade geral, precisamente como um método com determinados objectivos: “the democratic method is that institutional arrangement for arriving at political decisions which realizes the common good by making the people itself decide issues through the election of individuals who are to assemble in order to carry out its will”[2].
Acontece que, na realidade, não há nenhuma acepção única de bem comum sobre a qual todos os indivíduos concordem ou possam concordar pela força de um argumento racional. Não apenas porque os indivíduos têm interesses e desejos diferentes mas principalmente porque a concepção sobre o próprio bem comum varia consoante os indivíduos e grupos[3].
Ainda assim, mesmo que se pudesse considerar uma acepção única de bem comum, suficientemente aceitável por todos, tal não implica que as respostas às necessidades, vontades e assuntos individuais sejam igualmente definidas e definitivas. E mesmo que eventualmente o fossem, os indivíduos continuariam a discordar sobre a forma como alcançar os objectivos definidos e derivados dessas respostas[4]. Criticando Rousseau pelo seu utilitarismo, Schumpeter faz notar os problemas que surgem do dilema da avaliação entre respostas satisfatórias presentes e futuras, exemplificando que a questão socialismo vs. capitalismo ficaria sempre em aberto, mesmo se todos os indivíduos pensassem em termos utilitaristas. Por outras palavras, os teóricos utilitaristas da doutrina clássica da democracia falharam ao não considerar que mudanças substanciais a nível económico alteram os hábitos dos indivíduos e da sociedade, pelo que é impossível ter uma resposta definitiva e aceite por todos sobre o que é o bem comum[5]. Pode definir-se num dado momento e numa determinada sociedade consoante o contexto e circunstâncias presentes, mas num outro dado momento a resposta não será a mesma, nem terá necessariamente um nível de aceitação idêntico.
Destes considerandos, decorre naturalmente que a vontade geral também não existe, já que a sua formulação advém da concepção única do bem comum discernível por todos. Para tal é necessário que exista na sociedade um centro em torno do qual gravitam todas as vontades individuais, com vista a gerar o bem comum e a vontade geral. E é esse centro que unifica as vontades individuais, as imputa racionalmente à vontade geral, e confere a esta última “the exclusive ethical dignity claimed by the classic democratic creed”[6]. Como já vimos, essas vontades são demasiado fragmentadas para que se possam gerar estas acepções rousseaunianas. Como resume Schumpeter, “both the existence and the dignity of this kind of volonté générale are gone as soon as the idea of the common good fails us. And both the pillars of the classical doctrine inevitably crumble into dust”[7].
Schumpeter prossegue, utilizando um exemplo de uma decisão de Napoleão Bonaparte, estabelecida de forma satisfatória, aceite por todas as partes como benéfica a longo prazo, embora tenha sido formulada por meios ditatoriais, para demonstrar que as decisões de agências não-democráticas podem, por vezes, ser mais aceitáveis para os indivíduos do que decisões alcançadas por via de um processo democrático, até porque essas decisões poderiam ser rejeitadas ou alvo de discórdia por parte de instituições ou actores do processo de decisão democrático[8]. Logo, assinala que “if results that prove in the long run satisfactory to the people at large are made the test of government for the people, then government by the people, as conceived by the classical doctrine of democracy, would often fail to meet it”[9].
O seu argumento final contra o bem comum está relacionado com a sua concepção da natureza humana, e a observação dos comportamentos dos indivíduos no que concerne às necessidades económicas e aos seus hábitos de consumo. Estes são originados através de uma construção social, com uma carga muito pouco racional e independente. O mesmo acontece no campo da política. Esta não se encontra no centro das preocupações da maior parte das pessoas, o que não lhes permite efectuar juízos totalmente racionais sobre ideologias e políticas em competição. Além do mais, a maioria dos indivíduos é susceptível de ser manipulada por grupos de pressão e de interesses, o que, mais uma vez, retira dos seus juízos qualquer independência ou racionalidade[10].
Neste ponto, Schumpeter tem um raciocínio magistral, perpassado por um certo pessimismo antropológico: “Thus the typical citizen drops down to a lower level of mental performance as soon as he enters the political field. He argues and analyzes in a way which we would readily recognize as infantile within the sphere of his real interests. He becomes a primitive again. His thinking becomes associative and affective”[11].
Este pressuposto tem duas consequências. A primeira é que mesmo que não seja influenciado por quaisquer grupos políticos, o cidadão típico tenderá a ceder a preconceitos ou impulsos irracionais ou extra-racionais, muitas vezes obscuros e com base em fracos padrões morais, já que o seu processo de pensamento na esfera política é associativo, primário, muito pouco lógico e detém um controlo muito pouco efectivo sobre os resultados das decisões tomadas. Mas mesmo que aconteça o contrário, ou seja, que se manifeste de forma generosa e indignada, nada garante que a sua análise e perspectiva seja a mais correcta, embora ele se possa convencer de que corresponde de facto à vontade geral. Desta forma, corre-se o risco do indivíduo se tornar ainda mais obtuso e irresponsável, o que poderá ser fatal à nação em determinadas circunstâncias[12].
Em segundo lugar, quanto mais débil o elemento lógico nos processos de pensamento do público, e a ausência de um racionalismo crítico, maiores as oportunidades para os grupos que queiram explorar estas fraquezas. Estes grupos podem, de facto, modelar e até mesmo criar a vontade dos indivíduos, dentro de limites bastante amplos. Schumpeter conclui de forma bastante assertiva, afirmando que “what we are confronted with in the analysis of political processes is largely not a genuine but a manufactured will. And often this artefact is all that in reality corresponds to the volonté générale of the classical doctrine. So far as this is so, the will of the people is the product and not the motive power of the political process”[13].
A afirmação de que a vontade geral é o resultado e não a causa do processo político é certamente uma das ideias mais desconcertantes para os defensores da doutrina clássica da democracia. É, a nosso ver, a pièce de résistance na desconstrução de Schumpeter dos postulados de Rousseau.
É ainda a partir de tal que vai elaborar a sua teoria da democracia, postulando o processo democrático em termos bem mais realistas: “The democratic method is that institutional arrangement for arriving at political decisions in which individuals acquire the power to decide by means of a competitive struggle for the people’s vote”[14].
Como David Held assinala, dada a diversidade de desejos e vontades individuais, e das demands amplamente fragmentadas que estes colocam ao governo, é necessário que exista um mecanismo capaz de seleccionar os que são mais capazes de chegar a um conjunto de decisões genericamente aceite pela maioria, ou, pelo menos, do qual se discorde o menos possível. A democracia é a única forma de alcançar este objectivo, mesmo que de forma remota[15].
Para Schumpeter, a democracia tem na sua base a competição pela liderança política. Grupos organizados apresentam-se perante os eleitores, competindo pelos votos destes, de forma semelhante aos empresários que competem pelos clientes num dado mercado. Aos eleitores compete produzir o governo, seleccionando aqueles que consideram mais capazes para a governação, mas também desapossá-lo, retirando-lhe o apoio concedido previamente.
Contudo, Schumpeter considera que qualquer tipo de democracia corre o risco de se tornar administrativamente ineficiente. Mesmo que a sua função principal, i.e., produzir e estabelecer a liderança política, seja alcançada, a governação pode não ser a melhor do ponto de vista da gestão administrativa. Isto pode decorrer, por exemplo, da adaptação das políticas públicas aos interesses dos políticos a longo prazo, nomeadamente, em termos eleitoralistas[16].
Para minimizar este risco, há a considerar um conjunto mínimo de condições para que um regime democrático tenha um funcionamento satisfatório. Em primeiro lugar, a qualidade dos políticos tem que ser elevada. Em segundo, a competição entre líderes e partidos rivais deve dar-se apenas em relação a um conjunto relativamente restrito de questões, delimitado pelo consenso generalizado em relação às políticas a seguir, decorrentes do programa do governo aprovado pelo parlamento e das matérias constitucionais. A terceira condição é a existência um aparelho burocrático independente e de qualificações elevadas, que possa auxiliar os decisores políticos na formulação das políticas e na administração. O quarto factor é o auto-controlo democrático, segundo o qual, todos os grupos da sociedade devem estar dispostos a aceitas as medidas governamentais, conquanto estejam restringidas à luz da segunda condição, devendo evitar-se criticismos excessivos ou oposições a todas as medidas, o que pode levar a comportamentos imprevisíveis e violentos. Por último, tem de existir uma cultura de tolerância e respeito pelas diferenças de opinião, pelo que a liberdade de expressão e de imprensa é um dos fundamentos do método democrático[17].
Resta assinalar que a visão de Schumpeter corresponde a muitas daquelas que são as características das democracias liberais ocidentais, como faz notar David Held, nomeadamente, a competição entre partidos pela liderança política; o importante papel da administração burocrática; a semelhança entre as técnicas da competição comercial e as técnicas da competição eleitoral e política; a forma como os eleitores estão sujeitos a muita informação e como apesar disto permanecem mal informados sobre as questões políticas[18].
Conclusão
Considerando a interacção entre os diversos elementos das duas grandes teorias da democracia por nós analisados, cuja relação nos parece gerar dinâmicas que se encontram no âmago das duas correntes, importa realçar como estas dinâmicas se materializam articulando os vários factores, para dar resposta à nossa pergunta de partida.
Por um lado, a democracia de matriz rousseauniana, assente na teorização do bem comum, vontade geral e soberania popular, vai recorrer essencialmente a um postulado de liberdade positiva, em estreita ligação com uma crença no poder da razão que leva à centralização do poder político sob a égide de uma ordem social e política organizada de cima para baixo, por um indivíduo ou conjunto de indivíduos, que inevitavelmente assenta num sistema económico planificado. Por outro lado, a corrente anglo-saxónica, assente num liberalismo que tem no cepticismo em relação ao exercício do poder um dos seus traços característicos, pauta-se pela assumpção da liberdade negativa, a que melhor serve uma ordem social liberal, óbvia e naturalmente espontânea, que em termos políticos vai assumir os princípios do governo limitado e da limitação e dispersão de poder, salvaguardando a liberdade individual e a possibilidade de cada indivíduo prosseguir os seus fins como melhor lhe aprouver, o que em termos económicos só é possível numa economia de mercado.
De forma mais resumida e objectiva, José Adelino Maltez considera que “A democracia primitiva, de matriz jacobina, tendia para a unidade concentracionária do poder, para o monismo e para a centralização, com base na perspectiva da soberania una, inalienável, imprescritível e indivisível, modelo que só pôde ser contrariado pelos pontos de vista do pluralismo e da divisão e distribuição da soberania, assumidos tanto pelo federalismo como pelo liberalismo ético, movimentos que retomaram a ideia de liberdade como autogoverno e divisão do poder, na linha do tradicional consensualismo”[19].
De um ponto de vista valorativo, entendemos que a doutrina anglo-saxónica é a que melhor salvaguarda a liberdade individual e permite aos indivíduos prosseguir os seus fins dependendo apenas das suas capacidades e conhecimentos. A doutrina jacobina, amplamente difundida na Europa Continental e com evidentes repercussões nas experiências reais do marxismo, parece-nos um logro, uma teoria que não corresponde a uma acepção verdadeira, em termos popperianos, sendo mais semelhante a uma crença religiosa – e daí, talvez, o seu sucesso -, até porque, como Schumpeter demonstra magistralmente, os seus pressupostos base são falaciosos. Não existe bem comum nem vontade geral, e esta é, quanto muito, o resultado e não a causa do processo político. E se assim é, a melhor forma de esta ser produzida é colocando o indivíduo no centro do processo político, dotando-o de uma esfera pública e privada de acção, e de direitos naturais e civis, e não o governo ou o estado como o centro em torno do qual têm de gravitar todas as vontades individuais, que congregadas numa vontade geral conferem aos decisores um espaço de manobra e capacidade de acção extremamente amplo, assente numa crença no poder ilimitado da razão.
Considerando que a natureza humana é, como Schumpeter demonstra, irracional, primária e pouco lógica, e tendo em consideração os ensinamentos de Popper, Hayek e Berlin sobre os limites do conhecimento, parece-nos que o constitucionalismo liberal, assente no governo limitado e num sistema político cuja arquitectura deve ser institucionalizada e não sujeita a manipulações em “nome do povo”, como é apanágio do jacobinismo, se apresenta como o melhor garante da liberdade individual e o baluarte do funcionamento da democracia anglo-saxónica.
Notas
[1] Cfr. David Held, Models of Democracy, Cambridge, Polity Press, 2008, p. 152.
[2] Cfr. Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy, Nova Iorque, Harper Perennial, 2008, p.250.
[3] Cfr. Idem, ibidem, p. 251.
[4] Cfr. David Held, ob. cit., p. 147.
[5] Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 255.
[6] Cfr. Idem, ibidem, p. 252.
[7] Cfr. Idem, ibidem, p. 252.
[8] Cfr. David Held, ob. cit., p. 148.
[9] Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 257.
[10] Cfr. David Held, ob. cit., p. 149.
[11] Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 262.
[12] Cfr. Idem, ibidem, p. 262.
[13] Cfr. Idem, ibidem, p. 263.
[14] Cfr. Idem, ibidem, p. 269.
[15] Cfr. David Held, ob. cit., p. 143.
[16] Cfr. Idem, ibidem, p. 150.
[17] Cfr. Joseph A. Schumpeter, ob cit., pp. 290-296 e David Held, ob. cit., pp. 150-151.
[18] Cfr. David Held, ob cit., p. 152.
[19] Cfr. José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996, p. 149.