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Boletim de voto para tótós

por John Wolf, em 26.02.24

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  • Fez parte de um governo do passado que levou Portugal à bancarrota e à intervenção da Troika? 
  • Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Foi Ministro das Infraestruturas envolvido em escândalos com a TAP?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Concordou com a compra de ações da CTT que em nada beneficiou a empresa ou o país?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Procedeu à indemnização por "Whatsapp" de gestora no valor de 500 mil euros?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Afirma ter deixado obra feita na CP que é um "orgulho nacional"?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Encenou uma demissão para "inglês ver" para se lançar à liderança do seu partido?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Foi discípulo de um primeiro-ministro constituído arguido por corrupção? 
  • Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal.
  • É político que repete sempre o verbo "fazer"?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Sabe o que funciona e não funciona no país?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Fez parte da governação nos últimos oito que levou os portugueses à miséria económica e social?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Prometeu um novo aeroporto à revelia do primeiro-ministro?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Esteve associado a greves de motoristas que deixaram os condutores com graves problemas no abastecimento de combustíveis?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Esteve tempo suficiente no governo para deixar obra, mas não há nada que se veja? 
  • Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Tem um pai cujas empresas fizeram negócio com o Estado no valor de 1,16 milhões de euros?
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  • Pensa que reúne os atributos de um bom lider, mas não passa de um fanfarrão?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 
  • Afirma que a justiça funciona em Portugal, mas não sabe ao certo o que funciona?
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  • Irá no dia 11 de março resistir até o limite à possibilidade democrática de haver um entendimento à direita para governar legitimamente o país?
  •  Check mark, Wingdings font, character code 254 decimal. 

 

publicado às 18:29

Capitães de Março

por John Wolf, em 23.02.24

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Foram os capitães de abril que tornaram possível a revolução de 1974. O seu descontentamento em relação ao "processo colonial" terá sido uma das razões que energizou reinvindicações mais profundas, nomeadamente o fim do Antigo Regime e a transição para um regime democrático em Portugal. Em poucas palavras, certamente insuficientes, resume-se a isto. Volvidos 50 anos, escutamos rumores de que os militares iniciarão ações de protesto após as eleições de 10 de março. Existem elementos de analogia política, económica e social que possam equiparar 1974 a 2024? Sim e não. Por um lado, a deteriorização das condições de vida dos portugueses é um factor a ter em conta — o povo não se encontra bem. De que servem todas as liberdades se as garantias no acesso à habitação e a cuidados de saúde são severamente postas em causa? Por outro lado, Portugal já não é um império colonial, mas foi colonizado. Primeiro pelas políticas definidas em Bruxelas e ainda pela febre alta do turismo que aprimorou Portugal para bem receber os estrangeiros endinheirados, deixando na sarjeta os cidadãos nacionais. No meio de este turbilhão de desavenças e desalinhamentos na capacidade de definir uma estratégia de progresso para Portugal, os militares também foram deixados na beira da estrada. Existe assim um elemento simbólico poderoso que emana da intenção dos militares, o protesto, a manifestação pensada para suceder às eleições de 10 de março. A caminho das comemorações de meio século sobre o 25 de abril de 1974, a voz dos militares não pode ser ignorada. Foram os militares de 1974 que interpretaram holisticamente o fenómeno do descalabro societário. Foram os militares que corporizaram a mudança de regime político. Foram os militares que sintetizaram e expressaram o mal estar de professores, de agricultores e de todos os trabalhadores de Portugal. As revoluções não vêm contempladas em constituições ou regulamentos, mas podem eclodir quando certos limites existenciais são postos em causa. Para bem e para mal, a reflexão que se exige em relação aos últimos cinquenta anos e às escolhas deliberadas de políticos deve ser realizada sem constrangimentos ideológicos ou sentidos de revanchismo. É uma questão de sanidade política e de visão prospectiva para um país. Capitães não há muitos, mas também podem ser de março.

publicado às 19:12

Na hora da demissão de António Costa

por Samuel de Paiva Pires, em 07.11.23

Naturalmente, estamos agora focados na árvore e a pensar no que se seguirá, ou seja, se o Presidente da República, que convocou os partidos e o Conselho de Estado para os próximos dias, dará espaço a uma solução interna da maioria parlamentar do PS (com que legitimidade?), ou, o que é mais provável, dissolverá a Assembleia da República - isto numa altura de discussão do Orçamento do Estado para o próximo ano. O país político estará hoje especialmente agitado, num corrupio de telefonemas e especulação sobre cenários eleitorais, e muito provavelmente passará os próximos meses a fazer listas de candidatos a deputados à porta fechada - que os cidadãos são meramente chamados a ratificar nas urnas - e a preparar e conduzir a campanha eleitoral, onde mais uma vez o foco será nas lideranças políticas, como é timbre da personalização do poder político.

Mas talvez valha a pena olhar para a floresta. Nos últimos 23 anos, o PS foi governo durante 16. Dos seus 3 Primeiros-Ministros neste período, um saiu perante o “pântano político”, outro continua numa rocambolesca relação com a Justiça e é com esta que o terceiro inicia agora uma relação cujos contornos ainda desconhecemos. A isto acrescem ainda dezenas de casos de Ministros, Secretários de Estado, adjuntos, assessores e autarcas envolvidos em diversas suspeitas de corrupção e afins. Por mais “códigos de ética e conduta” e “estratégias nacionais de combate à corrupção” que sejam formulados, é inegável que Portugal tem um problema estrutural de corrupção e descrédito das instituições políticas, o que alimenta os populismos quer à esquerda quer à direita.

Na sua classificação das formas de governo Montesquieu explica que, quanto à sua natureza, existem três: a monarquia, a república (que pode ser mais aristocrática ou mais democrática) e o despotismo. Quanto ao princípio que anima cada forma, entendendo por tal o propósito que anima o povo, o que o faz actuar, considera que a república se fundamenta na virtude (amor à pátria e dedicação à causa pública), a monarquia na honra (baseada nos privilégios e distinções) e o despotismo no medo. O autor da fórmula final da separação de poderes admirava as repúblicas, mas considerava que a virtude cívica requer um elevado padrão moral, um espírito público por parte dos cidadãos que os motive a subordinar os interesses privados ao público.

Acontece que, como salienta Chandran Kukathas a respeito da teoria política de David Hume, “Não podemos depender da benevolência ou virtude dos actores políticos se queremos que a liberdade e a segurança das possessões sejam asseguradas”, pelo que “a única solução é ter uma constituição forte cujas regras gerais mantenham os grupos de interesse e indivíduos ambiciosos em xeque. São as regras e não os indivíduos que governam que asseguram a segurança e a liberdade da sociedade.”

No fundo, ecoa Cícero e Santo Agostinho, a propósito de quem Alan Ryan afirma que “[Cícero faz] da justiça a característica definidora de uma república que é realmente uma república, e antecipa a famosa observação de Santo Agostinho de que sem justiça um estado é simplesmente um grande gangue de ladrões: um estado corrupto não é uma comunidade. Não pode haver res publica se as instituições do governo são pervertidas para servir interesses privados. (...). Boas instituições protegem o interesse comum contra a erosão por interesses privados e evitam que os conflitos de interesses privados se tornem destrutivos.”

Enquanto comunidade politicamente organizada, temos evidentes problemas éticos, que não raro desaguam em problemas legais. Estes são particularmente notórios no PS porque a sua permanência durante longos períodos no poder acaba por potenciar vícios que conduzem à captura do Estado por determinados interesses privados e à erosão do interesse público. A forma de reduzir a elevada exigência moral colocada pela virtude cívica e levar a uma revalorização da causa pública é através do desenho institucional. Como também ensina Montesquieu, “todo o homem que tem poder é levado a abusar dele” indo até onde encontra limites.

Por outras palavras, precisamos urgentemente de reformar o sistema político nas suas diversas componentes. Sobre isto, teci algumas considerações já há quatro anos no Observador. Talvez esta seja uma boa oportunidade para reflectirmos sobre o que precisamos de fazer para melhorar a qualidade da nossa democracia liberal antes que ela se degrade ainda mais.

publicado às 15:46

Sobre a noite eleitoral

por Samuel de Paiva Pires, em 30.01.22

O PS esvaziou os partidos de esquerda (BE e CDU), porventura penalizados pelo chumbo do orçamento conducente a uma crise política em plena crise pandémica e económica, e os novos partidos de direita erodiram a direita histórica. Uma direita com um partido (PSD) tomado por um proto-autoritário que pretende controlar a justiça e a comunicação social e navega ao sabor do vento no que diz respeito a coligações com a extrema-direita, e outro (CDS) a morrer nas mãos de um adolescente tardio que julga liderar uma associação de estudantes e se insurge contra espantalhos como o marxismo cultural e a direita fofinha dos salões do Príncipe Real. Ambos abriram espaço para o crescimento de um partido racista e xenófobo (CH) e de outro (IL) alicerçado num libertarianismo yuppie. Temos assim uma direita ideologicamente mais vincada e purista, organizacionalmente escaqueirada e orfã de quem a federe. Perante lideranças incapazes e um crescente radicalismo ideológico à direita, e um comportamento irresponsável à esquerda do PS, sendo as eleições ganhas ao centro, é natural que os eleitores que oscilam entre PS e PSD tenham decidido reforçar o PS. Isto significa um certo conservadorismo em relação à preservação do regime democrático, do Estado Social, do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública. Ou seja, aquilo que foram conquistas do liberalismo, do conservadorismo, da democracia cristã e da social-democracia no pós-II Guerra Mundial. Quando perceber isto e se deixar de aventureirismos, talvez a direita consiga voltar a ganhar eleições.

publicado às 22:11

Menos estadão, mais liberdade

por Samuel de Paiva Pires, em 01.01.22

O Expresso perguntou a 12 jovens os seus desejos para 2022. Aqui fica o meu;

Menos estadão, mais liberdade

Quando os políticos nos tentam fazer crer que a mera delegação de competências administrativas nos municípios equivale a um processo de descentralização, concluímos que o Estado-aparelho de poder hierarquista, centralizador e habituado a mandar de cima para baixo continua a subjugar-nos.
Falta cumprir-se, como escreveu Alexandre Herculano, “a administração do país pelo país (...) realização material, palpável, efetiva da liberdade na sua plenitude”.

Sob pena de continuarmos enredados num debate em que se confunde deliberadamente descentralização com deslocalização e delegação de competências administrativas, torna-se desejável e necessário um sobressalto cívico que contribua para uma discussão esclarecida e conduza a um verdadeiro processo descentralizador, feito de baixo para cima. É preciso que se criem níveis intermédios de governação que tornem o sistema político mais representativo e participativo, concretizando o princípio da subsidiariedade e aproximando a decisão política das comunidades locais.

A plena liberdade poderá ser realizada pela descentralização política por via da regionalização, implicando necessariamente a reforma do actual sistema eleitoral de uma democracia sem povo, onde este é apenas chamado a ratificar as listas feitas à porta fechada pela partidocracia. Para romper com o excessivo domínio da vida pública pelos partidos, que, como também assinalava Herculano, carecem da centralização para preservar o poder, urge que a sociedade civil seja capaz de se mobilizar e de os pressionar.

O estadão a que chegámos não é nem tem de ser o fim da história.

publicado às 19:23

Portugal é um inconseguimento permanente

por Samuel de Paiva Pires, em 09.12.20

Hoje, a propósito de três acontecimentos da semana passada, escrevo no Observador sobre alguns traços da cultura nacional. Termino assim:

Em suma, no nosso país imperam a “tudologia”, um debate político pobre, uma crónica incapacidade organizacional e lideranças políticas medíocres. Continuaremos certamente a pensar a cultura portuguesa, a identidade nacional e o nosso declínio em torno de temas como o sebastianismo, o pessimismo ou a saudade, mas a causa principal do nosso atraso estrutural, na esteira do que Nuno Garoupa escreveu há quase três anos, é a infelicidade de termos elites de má qualidade. Como canta Samuel Úria, “Se fosse meritocracia/ Nem serviam para comida de cão”.

publicado às 20:56

Dos Eric Cartman da direita portuguesa

por Samuel de Paiva Pires, em 06.11.20

Durante os últimos quatro anos, os partidários portugueses de Trump e quejandos líderes e movimentos populistas não só ignoraram como se regozijaram com os inúmeros ataques do ainda Presidente dos EUA aos fundamentos da democracia liberal e às mais elementares regras de decência e civilidade. Aprenderam com Trump uma táctica discursiva de contornos bastante simples, assente em duas fases, que temos observado nos últimos dias: acusam os adversários daquilo que, na verdade, são as práticas dos próprios acusadores, e quando confrontados recorrem invariavelmente à vitimização. Isto em registos constantemente marcados pela grosseria e ofensas gratuitas ao mesmo tempo que se arvoram em adeptos da elevação no debate. São constantes os ataques vis protagonizados por Trump, as acusações de que os adversários fizeram X ou Y que, na realidade, é o que o próprio faz, e a sempre previsível vitimização perante o confronto. A estratégia de Trump para as eleições é, aliás, elucidativa quanto baste a este respeito. Entre os seus aprendizes, um exemplo particularmente ilustrativo foram as críticas a Joe Biden por ter chamado “clown” a Trump no primeiro debate presidencial, tecidas por quem ignorou olimpicamente o facto de ter sido Trump a levar o debate para a lama. Mais uma vez, escamotearam a conduta miserável do seu querido líder e alguns, sem terem visto o debate, concentraram os seus ataques sobre esse momento, não tendo sequer a noção de que Biden revelou capacidade de contenção numa situação em que muitos nivelariam a sua postura pela de Trump ou abandonariam o debate.

Entretanto, por cá, à direita, a divisão entre democratas liberais e populistas tem-se tornado cada vez mais visível, sendo célebres, dos trumpistas nativos, várias ofensas, desde as mais patéticas (“a direita cobarde”, “os moderados cobardes”, “a direita fofinha”, “a direita Haddad”) às mais directas e em registo taberneiro. Recorrem com uma inusitada frequência a este estilo pela simples razão de que atrás de um computador, e no tempo das redes sociais, a propensão para a agressividade é particularmente acentuada. Ao vivo, perante aqueles que apelidam de cobardes, não se atrevem, como já pude observar várias vezes, a adoptar um vislumbre da retórica ofensiva a que recorrem nas redes, até porque a frontalidade e a coragem moral e física de muitos é inversamente proporcional à que demonstram no mundo virtual, da mesma forma que a sua noção de civilidade também é inversamente proporcional à que fica patente na internet - felizmente! Talvez mais interessante que a fase das ofensas, é a fase da vitimização. Revela a mesma postura moral do bully no recreio da escola que, quando confrontado, choraminga e vai fazer queixas aos professores e aos pais. São os Eric Cartman da direita portuguesa.

Mas esta semana trouxe-nos uma novidade nas práticas discursivas. Às acusações, ofensas e vitimização vieram acrescentar a cereja no topo do bolo: o gongorismo proclamatório em declarações sobre o fim da civilização, do debate público elevado e, no limite, da humanidade como a conhecemos. Descartados os óbvios exageros de quem se leva demasiado a sério, há que mostrar alguma compreensão. Estão desnorteados com a eventual queda do querido líder e com o que esta significaria para o futuro dos movimentos nacional-populistas. Agora que os EUA poderão entrar numa fase de regeneração, por cá a direita radical ainda está na fase de crescimento. Quando a direita radical lusa atingir o auge, em muitos outros países já os populistas estarão no espelho retrovisor. O populismo é a antítese da democracia liberal. Em vez de harmonizar contrários, alimenta-se da tribalização e da polarização. Mas quando chegarmos à fase de síntese, isto é, quando algumas críticas dos populistas tiverem sido absorvidas e respondidas pelo mainstream que descarta as soluções anti-liberais, os "moderados-fofinhos-cobardes" cá estarão, na sua infinita paciência, tolerância e, em muitos casos, caridade cristã, para acolher os que os têm ofendido.

publicado às 22:04

Sobre a app do nosso descontentamento

por Samuel de Paiva Pires, em 18.10.20

Para uma app ajudar no combate à pandemia, ou seja, para ser eficaz, tem de funcionar com base em pressupostos radicalmente diferentes das apps na Europa: imposta coercivamente, com geolocalização (para permitir a fiscalização das quarentenas e isolamentos), com os dados numa base de dados centralizada e em que os infectados são identificados pelas autoridades de saúde/governos. Ou seja, tem de ser uma ordem de organização, nos moldes das apps utilizadas em países asiáticos, onde o colectivo toma primazia, não uma ordem espontânea, por defeito centrada na liberdade e privacidade dos indivíduos. Dado que o demo-liberalismo predominante no Ocidente repudia fortemente - e por bons motivos - uma app nos moldes das asiáticas, não adianta muito andar a discutir a eficácia (reduzidíssima) da Stayaway Covid e a sua eventual obrigatoriedade (que muito dificilmente seria aprovada e implementada). Esta última questão, aliás, não passa de mais um sinal da notória tentativa, por parte do governo PS, de deslocar o centro da responsabilidade pelo combate à pandemia para o nível individual. Assim sendo, devemos concentrar-nos naquilo que já se sabe que resulta, quer ao nível individual - máscaras, higienização das mãos e distanciamento físico - quer ao nível governamental, pelo que é necessário pressionar o governo a assumir as suas responsabilidades na alocação de recursos financeiros e humanos que reforcem os testes massivos, rastreamento de contactos e fiscalização de isolamentos e quarentenas. Tudo o mais são distracções que só acabam por ter custos mais elevados, quer em termos de saúde pública, quer no que à actividade económica diz respeito.

publicado às 14:49

O novo livro do Professor José Adelino Maltez, Portugal pós-liberal, será lançado amanhã na Biblioteca da Academia Militar, em Lisboa, pelas 18:30. A apresentação estará a cargo de João Soares. O livro já pode ser adquirido através da Wook e para mais informações podem consultar a página no Facebook.

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publicado às 13:24

Racismo, meritocracia e desigualdades

por Samuel de Paiva Pires, em 27.09.20

O caso de ontem nas redes sociais foi o novo pivô da SIC Notícias, Cláudio Bento França. Permitam-me recapitular e tecer breves comentários aos três previsíveis “argumentos” que logo começaram a ser derramados por aí contra aqueles que se regozijaram com o acontecimento:

1 - “Não é o primeiro pivô negro em Portugal”. Claro que não, mas foram e são tão poucos, devido ao que se segue nos próximos pontos, que não pode deixar de ser notícia.

2 - “A cor da pele não é relevante, o que importa é que as pessoas desempenhem cargos para os quais têm competência e que alcançaram por mérito próprio”. Assim seria num mundo ideal, que não é o nosso. Estamos perante a perniciosa ideia de meritocracia, um pilar do capitalismo contemporâneo que permite justificar e normalizar estruturas e relações de poder que contribuem para a perpetuação de desigualdades e discriminações. Nos últimos anos, vários autores têm evidenciado efeitos negativos da crença na meritocracia, sendo esta, aliás, o tema do mais recente livro de Michael Sandel (The Tyranny of Merit). Mas podem continuar a acreditar que não partimos todos de situações desiguais resultantes de diferentes condições económicas das famílias em que nascemos (que os sistemas de educação, saúde e segurança social não conseguem atenuar como seria desejável), que em sociedades capitalistas onde os brancos constituem a maioria étnica e a burguesia é a classe social dominante basta ser trabalhador e competente para se conseguir ascender socialmente sem que a classe social, a cor da pele, o sexo, a orientação sexual ou a aparência (atente-se nos comentários sobre as rastas de Cláudio Bento França) sejam barreiras ao sucesso, e, por último, podem também continuar a adoptar o pensamento mágico de que todas as pessoas em posições profissionais e políticas destacadas estão lá por mérito e devido à sua competência – as últimas duas décadas demonstraram à saciedade a imensa competência de tantos políticos, CEO’s e banqueiros portugueses. Ou seja, podem continuar a viver no vosso domínio ontológico privado e a achar que o mundo é o vosso umbigo, mas não esperem que a realidade social se conforme aos vossos simplismos intelectuais.

3 - “Lá está a esquerda a abanar a bandeira do racismo outra vez quando Portugal não é um país racista, o que se comprova, entre outras coisas, por este caso, como por outros congéneres e até por termos um Primeiro-Ministro de ascendência goesa”. Em primeiro lugar, se aceitarmos este argumento, em que a selecção de um reduzido número de casos individuais (cherry picking, falácia de atenção selectiva) aparentemente valida uma tese (“Portugal não é um país racista”), então, a contrario, teremos de aceitar igualmente a selecção de outros casos, como Marega em Guimarães ou os assassinatos de Alcindo Monteiro e Bruno Candé, para confirmar a tese contrária (“Portugal é um país racista”). Como é óbvio, ambas as teses não podem estar certas, o que indicia a presença de vícios de raciocínio impeditivos de uma discussão racional. Ora, para começarmos a vislumbrar alguma racionalidade nesta discussão, importa desde logo questionar o que se entende por “Portugal”, se é o Estado-aparelho de poder, se é o Estado-comunidade. Com efeito, o Estado-aparelho de poder não prossegue políticas públicas racistas - pelo contrário. Já o Estado-comunidade - a sociedade portuguesa - é composto por indivíduos (e estes, por sua vez, compõem e moldam instituições e estruturas sociais formais e não-formais) com os mais diversos preconceitos racistas e outros que não têm quaisquer preconceitos. Portanto, o Estado-aparelho de poder não é racista, mas na sociedade portuguesa encontramos tanto indivíduos racistas como não-racistas. A discussão tem sido feita em termos maniqueístas e absolutos, i.e., de forma errada, porque a esmagadora maioria das pessoas não compreende que a realidade social é muito mais complexa que a sua mundividência e porque os actores políticos de ambos os lados têm interesse em alimentá-la naqueles termos para poderem dela retirar ganhos políticos.

Por último, permitam-me ainda sublinhar que se a direita persistir em deixar a esquerda reclamar como suas causas que deveriam ser transversais, ou seja, se deixar o combate às desigualdades económicas e sociais para a esquerda e continuar mais preocupada com certos espantalhos e os interesses de classes sociais privilegiadas, estará a condenar-se a uma ainda mais prolongada irrelevância política - leia-se, a não governar.

publicado às 14:13

É preciso mudar alguma coisa para que fique tudo como está

por Samuel de Paiva Pires, em 02.06.20

Anda por aí uma grande agitação em torno do fait divers António Costa Silva. O governo que não conseguiu reorientar a economia quando devia e tinha poderes acrescidos para o fazer pretende agora fazê-lo por via de um plano de recuperação económica com moldes ainda por conhecer. Nada contra, mas a nossa limitada capacidade de planeamento, a memória do que por cá foram as últimas décadas em matéria de investimento público e afectação de fundos provenientes de Bruxelas para investimentos públicos e privados e ainda o que se conhece do plano da Comissão Europeia - por ora apenas uma proposta - deveriam acalmar os espíritos mais agitados. Porque continuamos a viver numa economia mista marcada por dois processos paralelos assinalados por Norberto Bobbio, a privatização do público e a publicização do privado, podem ficar descansados todos aqueles que se especializaram na indústria extractiva de recursos financeiros para projectos duvidosos e frequentemente sem quaisquer efeitos para além do very typical encher os bolsos de alguns à custa do bem comum. Das consultoras às associações empresariais especializadas em candidaturas a fundos europeus, dos agricultores à espera de comprar um Land Rover aos empresários que anseiam pelo mais recente Mercedes, BMW ou Porsche - sejam eles pequenos ou grandes empresários dos sectores mais tradicionais ou de uma startup tecnológica qualquer -, dos empresários que sem o Estado dificilmente sobreviveriam aos políticos cujo sonho é passar por uma revolving door para uma sinecura num qualquer conselho de administração, vão todos ficar mesmo bem. O mesmo é dizer que o milésimo plano para desenvolver ou reformar o país não vai afectar a nossa cultura política e empresarial e dificilmente terá impactos assinaláveis no nosso desenvolvimento económico. Não é esta, sequer, uma preocupação do Primeiro-Ministro. Como escreveu Lampedusa, é preciso mudar alguma coisa para que fique tudo como está.

publicado às 11:56

Most things may never happen: this one will

por Samuel de Paiva Pires, em 28.04.20

Philippe de Champaigne - Still Life With A Skull (

(Philippe de Champaigne,  Vanité)

Os sinais vinham sendo emitidos há vários dias, pelo que dificilmente poderíamos ter sido surpreendidos pela decisão de terminar o estado de emergência e levantar o confinamento, ainda que passemos à situação de calamidade pública prevista na Lei de Bases da Protecção Civil. Ao contrário do que inicialmente pensei e advoguei, o Governo não teve engenho nem arte para reorientar a actividade económica, sendo apenas de esperar que, pelo menos, tenha conseguido assegurar o reforço da capacidade instalada do SNS para dar resposta à pandemia e aos restantes cuidados de saúde.

Por outro lado, as decisões titubeantes da União Europeia continuam a não ser especialmente tranquilizadoras, deixando a resposta à crise económica em grande medida do lado dos Estados. Setenta anos de paz, o desgaste da autoridade do Estado soberano, o peso exagerado do mercado nas decisões políticas, uma moeda única que é um colete-de-forças e a hegemonia alemã no processo decisório europeu deixaram-nos numa situação de fragilidade para lidar com o que actualmente enfrentamos.

Nesta crise originada pela pandemia, pelas suas particularidades, chegámos então ao momento que provavelmente levará a um aumento do número de casos e de mortes, a tal segunda vaga que eventualmente nos devolverá ao confinamento daqui a não muito tempo. Haverá uma solução óptima para os dilemas que enfrentamos? Provavelmente não. E como não podemos recriar em laboratório a totalidade da realidade social, resta-nos proceder por tentativa e erro, o que terá custos humanos e económicos - não sendo despiciendo recordar que todos os custos económicos são custos humanos e todos os custos humanos têm custos económicos. Muito provavelmente, acabará por sair mais caro, quer em vidas, quer financeiramente.

Diria um resignado que as coisas são o que são e que, numa altura em que o anormal começa a parecer um novo normal, é preciso tentar restaurar a normalidade do sistema (aquilo que em teoria dos sistemas se chama homeoestase). Talvez assim seja. Mas não deixa de me recordar a imagem de soldados a sair das trincheiras da I Guerra Mundial e a avançar para uma morte quase certa e o poema Aubade de Philip Larkin:

I work all day, and get half-drunk at night.   
Waking at four to soundless dark, I stare.   
In time the curtain-edges will grow light.   
Till then I see what’s really always there:   
Unresting death, a whole day nearer now,   
Making all thought impossible but how   
And where and when I shall myself die.   
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.

The mind blanks at the glare. Not in remorse   
—The good not done, the love not given, time   
Torn off unused—nor wretchedly because   
An only life can take so long to climb
Clear of its wrong beginnings, and may never;   
But at the total emptiness for ever,
The sure extinction that we travel to
And shall be lost in always. Not to be here,   
Not to be anywhere,
And soon; nothing more terrible, nothing more true.

This is a special way of being afraid
No trick dispels. Religion used to try,
That vast moth-eaten musical brocade
Created to pretend we never die,
And specious stuff that says No rational being
Can fear a thing it will not feel, not seeing
That this is what we fear—no sight, no sound,   
No touch or taste or smell, nothing to think with,   
Nothing to love or link with,
The anaesthetic from which none come round.

And so it stays just on the edge of vision,   
A small unfocused blur, a standing chill   
That slows each impulse down to indecision.   
Most things may never happen: this one will,   
And realisation of it rages out
In furnace-fear when we are caught without   
People or drink. Courage is no good:
It means not scaring others. Being brave   
Lets no one off the grave.
Death is no different whined at than withstood.

Slowly light strengthens, and the room takes shape.   
It stands plain as a wardrobe, what we know,   
Have always known, know that we can’t escape,   
Yet can’t accept. One side will have to go.
Meanwhile telephones crouch, getting ready to ring   
In locked-up offices, and all the uncaring
Intricate rented world begins to rouse.
The sky is white as clay, with no sun.
Work has to be done.
Postmen like doctors go from house to house.

publicado às 20:54

Para grandes males, grandes remédios

por Samuel de Paiva Pires, em 27.03.20

Infelizmente, um artigo que escrevi em 2014, publicado na Revista Portuguesa de Ciência Política, do Observatório Político, envelheceu bem. Intitulado "A crise do euro e o trilema do futuro da União Europeia", nele procedi a um diagnóstico das falhas estruturais da União Económica e Monetária (UEM) e a um arriscado exercício de prospectiva sobre o futuro do Euro e da União Europeia.

A grande diferença para o momento actual é que o coronavírus afecta todos os países, mas as falhas estruturais existentes desde a criação da UEM permanecem, independentemente dos instrumentos entretanto criados. A UEM não é uma Zona Monetária Óptima e é uma união monetária incompleta - sem uma união orçamental com mecanismos de correcção de desequilíbrios nas balanças correntes e uma união fiscal que permita uma gestão macroeconómica conjunta - que retirou aos países instrumentos de política monetária autónoma, mormente a taxa de câmbio e a capacidade de emissão de moeda e controlo da massa monetária em circulação, bem como a emissão de dívida numa moeda própria - algo que Paul De Grauwe assinalou ser essencial para compreender a então crise do Euro. Juntando-se a isto um Banco Central Europeu desenhado à imagem do Bundesbank - um banco central independente, com uma política monetária centrada na estabilidade de preços e na proibição do financiamento monetário dos défices públicos – bem como um Pacto de Estabilidade e Crescimento que limita os défices orçamentais a 3%, a UEM é, na verdade, um colete-de-forças.

A isto acresce que o Euro é uma moeda que não reflecte a economia real dos países europeus, sendo subvalorizada para as economias do norte e sobrevalorizada para as do sul, o que potencia as exportações do norte. Em virtude das fragilidades da UEM, e dadas as grandes diferenças em termos de produtividade e competitividade entre os países que a compõem, estes estão sujeitos a divergentes tendências económicas, sendo os défices comerciais de uns a contrapartida dos excedentes de outros. Isto explica que os excedentes comerciais da Alemanha fossem então os maiores do mundo, incluindo a China, e 40% destes excedentes provinham do comércio com países da Zona Euro.

Ora, perante a actual crise do coronavírus, o suporte à economia europeia e o seu relançamento têm de ser feitos de forma coordenada, sob pena de desintegração da Zona Euro e da União Europeia. Não basta accionar a cláusula de exclusão do Pacto de Estabilidade e Crescimento e eliminar o limite de 3% para o défice, e talvez nem sequer os eventuais eurobonds sejam suficientes para lidar com a crise económica - embora sejam essenciais. Se países como a Alemanha, Holanda, Finlândia e Áustria insistirem numa postura míope e na ausência de visão estratégica que tem caracterizado os seus governos ao longo da última década, poderemos vir a assistir ao fim do Euro e da União Europeia como a conhecemos. Se finalmente forem capazes de perceber o que até há uns anos era uma platitude sobre o projecto de integração europeia, a ideia de que este se aprofundava em resultado das crises, talvez a UE possa ser a tal ever closer union e permanecer um actor global relevante.

Caso estes países mantenham a lamentável postura que conduziu ao agravamento da crise do Euro e à imposição de pacotes de austeridade excessiva, então estará na hora de sairmos do colete-de-forças, por mais difícil que seja. O trilema que elaborei no artigo supramencionado colocava então como futuros cenários a manutenção do statu quo, com os países do sul subjugados aos interesses da Alemanha e afins, o fim do Euro (em duas vertentes, que desenvolverei de seguida) ou o aprofundamento do processo de integração por forma a completar a união monetária com a união política. Por ora, deixo um excerto do que então escrevi:

A segunda opção é a já referida possibilidade do fim do euro, recuperando os países da Zona Euro a capacidade de emitirem moedas próprias, ou, pelo menos, o seu fim nos moldes em que o conhecemos, através da cisão da actual Zona Euro, que se pode dar pela saída dos países do Sul ou dos países do Norte, e que poderá levar ao eventual estabelecimento de uma segunda zona monetária no seio da UE. Neste caso, ambas seriam, em princípio, ZMOs, pelo que não seria estritamente necessário aprofundar a integração no plano político – este argumento poderá ser particularmente cativante para os anti-federalistas –, ainda que esta até possa ser prosseguida. Esta solução, na sua primeira variante teria resultados muito incertos e potencialmente catastróficos. Na sua segunda variante, que podemos considerar como de mudança relativamente moderada, se comparada com a terceira solução, que já veremos, no curto prazo seria favorável aos países do Sul e desfavorável à Alemanha. Porém, evitaria os resultados que adviriam da primeira opção do trilema, sendo favorável à Alemanha a longo prazo, pelo que acabaria por beneficiar a UE no seu todo. Todavia, dificilmente a Alemanha poderá ser persuadida a declarar o fim do euro ou para a criação de uma segunda zona monetária. Em qualquer das suas variantes, esta proposta parece-nos irrealista em termos práticos, embora pudesse ser a solução economicamente mais racional. Acontece que a Alemanha está actualmente numa posição muito confortável, com um euro fraco que favorece as suas exportações, tornando-a a economia mais competitiva da Zona Euro. Ademais, encontra-se, em parte em resultado disto, de forma indisputada na liderança política da UE, tendo a cooperação entre países soberanos sido relegada em favor de uma dominação de facto por parte de Berlim. Estamos em crer que não há registo histórico de uma potência hegemónica ter abdicado voluntariamente da sua posição.

(...)

Por outro lado, muito se tem falado de uma união entre os países do Sul contra os do Norte, com vista a procurar minorar a austeridade excessiva. Talvez esta ainda não tenha acontecido porque não só alguns governos dos países do Sul acreditam que o diagnóstico está correcto, como também não têm um objectivo político comum bem definido que possa subjazer a uma frente contra os países do Norte. 

No momento actual, talvez a necessidade de fazer face à crise económica resultante do coronavírus seja o objectivo político comum de que os países do Sul necessitam para rebentar o colete-de-forças em que se encontram. 

publicado às 17:06

Forças Armadas aceitam voluntários

por Samuel de Paiva Pires, em 20.03.20

O Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), face à realidade que o país está a viver, associada à propagação do vírus COVID-19, aceita inscrições de voluntários da Família Militar (militares na reserva e na reforma e respetivos familiares, bem como civis e ex-militares que se identifiquem com a instituição e/ou respetivos familiares) que pretendam auxiliar as Forças Armadas, nas ações que estas vão desenvolver em apoio dos Portugueses, em reforço do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

publicado às 11:18

Da necessidade do estado de emergência

por Samuel de Paiva Pires, em 19.03.20

Há várias pessoas a questionar a necessidade do estado de emergência atendendo a que estamos a cumprir voluntariamente as medidas de isolamento, como o próprio Primeiro-Ministro tem salientado. Acontece que nós e os nossos familiares,  amigos e conhecidos somos apenas uma pequena parte da realidade.

Pelo que já conhecemos do vírus e do que tem acontecido noutros países, conseguimos antecipar que esta fase não durará apenas quinze dias, nem um mês. E embora muitas pessoas já estejam habituadas a passar a maior parte do seu tempo em casa e várias, antes desta crise, já fizessem grande parte do seu trabalho a partir de casa, esta não é a realidade da larga maioria da população. Em Itália, até há dois dias já tinham sido emitidas quase 30 mil multas por violação do isolamento. Por cá, e quando apenas estamos no início, ainda anteontem a PSP teve de localizar e deter um doente com coronavírus que fugiu do Hospital de Coimbra. Escusado será dizer que este tipo de comportamentos representa um enorme risco. Não será, portanto, surpreendente se durante a vigência desta crise assistirmos a episódios de desrespeito das orientações do Governo.

A este propósito, não é despiciendo salientar que a percepção individual da ameaça não é igual entre todas as pessoas e, ainda, que a existência de assimetrias informativas nos coloca em patamares diferentes no que diz respeito aos comportamentos a adoptar - basta atentar nos exemplos de pessoas integrantes de grupos de risco no atinente ao contágio pelo vírus que continuam a levar a cabo as suas rotinas sem que nada as convença da gravidade da situação que vivemos.

Ainda que as medidas até agora decretadas pelo poder executivo pudessem tê-lo sido ao abrigo da figura de calamidade pública prevista na Lei de Bases da Protecção Civil, o enquadramento constitucional do estado de emergência permite que o Governo não se veja juridicamente manietado de actuar no teatro operacional rápida e eficazmente se e quando surgirem situações que o obriguem a fazê-lo de uma forma que poderia ferir a normalidade constitucional. Citando o decreto do Presidente da República, a declaração do estado de emergência "confere às medidas que se traduzam em limitações de direitos, liberdades e garantias o respaldo constitucional que só o estado de emergência pode dar, reforçando a segurança e certeza jurídicas e a solidariedade institucional."

Por outras palavras, neste momento, é melhor prevenir que remediar e, por isso, justifica-se plenamente não só o estado de emergência como o gabinete de crise que o Governo hoje criou e a necessidade de reorientarmos a actividade económica no sentido de debelarmos o vírus. Para que, colectivamente, consigamos achatar a curva e evitar que o sistema de saúde colapse é fulcral que, numa situação em que o mercado não pode nem consegue funcionar normalmente, o Estado assegure às empresas que têm de fechar portas e/ou enviar os seus funcionários para casa em regime de teletrabalho meios e apoios para o restabelecimento da normalidade possível. Caso contrário, assistiremos rapidamente à insolvência de grande parte do tecido empresarial nacional após esta crise.

Certamente não estamos numa situação de guerra convencional e, pelo que se sabe até agora (vide artigo publicado na Nature), o vírus terá mesmo origem numa zoonose, ficando excluída a possibilidade aventada pelos teóricos da conspiração de um ataque por parte da China - que poderia ser enquadrado nos conceitos de guerra biológica e/ou bioterrorismo. Ainda assim, não é por acaso que nos textbooks de estudos de segurança encontramos normalmente um capítulo sobre saúde pública e epidemias junto aos capítulos dedicados à guerra biológica e ao bioterrorismo. É que os efeitos, no que nos importa em termos de política doméstica neste momento, são congéneres. Se a isto juntarmos a já conhecida dinâmica do vírus, com efeitos prolongados no tempo que poderão ter consequências imprevisíveis no comportamento dos indivíduos, fica claro que o estado de emergência configura uma medida necessária, adequada e proporcional à ameaça que enfrentamos.

Ana Rodrigues Bidarra

Samuel de Paiva Pires

publicado às 20:50

Prevaleceremos

por Samuel de Paiva Pires, em 18.03.20

Ainda que devessem ter sido tomadas mais cedo, as medidas ora adoptadas são necessárias para reorientar o país para o esforço de combater esta pandemia. Por isso, hoje, há que reconhecer justamente que tanto o Primeiro-Ministro como o Presidente da República estiveram bem. O caminho é longo e penoso, mas prevaleceremos.

publicado às 20:26

Não vos perdoarei

por Samuel de Paiva Pires, em 16.03.20

Ao anunciar a primeira baixa desta guerra, a Ministra da Saúde aludiu aos tempos da II Guerra Mundial e do Blitz alemão contra o Reino Unido. Acontece que isto é mesmo uma guerra e, como já defendi aqui, deveria ser criado um gabinete de crise, um War Cabinet como o de Churchill, reunindo pessoas melhor preparadas para lidar com esta crise, liderado pelo governo mas integrado também pelos outros partidos políticos com assento parlamentar. Um verdadeiro governo de unidade nacional, era o que se impunha neste momento.

Infelizmente, julgo que isto não virá a acontecer. Estamos a combater uma guerra contra um inimigo invisível e sem a termos colocado no nosso horizonte, sem a termos preparado (de que é sintomático o Governo ainda não saber quantos ventiladores estão disponíveis), mesmo tendo Portugal sido um dos últimos países europeus a ser atingido, porque o Governo andou a mentir-nos e a mentir a si próprio durante dois meses. A ameaça foi tardiamente percepcionada e entrámos nesta guerra com a esmagadora maioria das instituições e da população sem consciência do que se avizinha. Todas as decisões já tomadas foram tíbias e tardias, e o processo decisório em curso para a passagem ao estado de emergência está a ser igualmente demorado, tendo o Conselho de Estado que irá apreciar esta questão sido convocado ontem pelo Presidente da República para a próxima Quarta-feira, pois aparentemente Marcelo Rebelo de Sousa não considera que esta questão tenha "excepcional urgência", conforme previsto no Regimento do Conselho de Estado

Artigo 5.º
(Convocatória)

1. As reuniões devem ser convocadas, salvo caso de excecional urgência, com a antecedência mínima de 3 dias.

Contra as evidências científicas da eficácia  de medidas fortes e tomadas rapidamente, estamos a seguir o caminho de Espanha e Itália em vez de Singapura, Taiwan, Hong Kong ou Coreia do Sul. Tendo um sistema de saúde mais frágil que o dos parceiros europeus, andamos a meio caminho entre a estratégia britânica, altamente desaconselhada, de deixar que o vírus se espalhe para se criar imunidade de grupo, e a estratégia de quarentena, porque continuamos a deixar janelas abertas (continuam a entrar milhares de pessoas no país sem qualquer controlo de temperatura sequer). Sabendo-se que o número de casos oficialmente confirmados não corresponde ao número de casos reais, e que estão a ser testadas poucas pessoas (contrariando as recomendações da Organização Mundial de Saúde), cenários como o traçado por Jorge Buescu tornar-se-ão reais, especialmente porque uma série de questões continuam inexplicavelmente sem resposta, imensas medidas estão por tomar e até os nossos soldados da linha da frente não compreendem o que o resto do país anda a fazer. Por último, no que diz respeito à economia, até vários economistas, num manifesto endereçado às autoridades europeias, alertam que "O preço de atuar hoje será muito menor do que o de atuar amanhã." 

Não me recordo de alguma vez ter tido uma sensação tão frustrante, que julgo alargada a muitas pessoas, de percepcionar uma ameaça, saber que tínhamos uma janela temporal em que poderíamos diminuir a sua gravidade e assistir à grosseira incompetência e negligência de quem nos lidera. Como escreveu Jorge Buescu, "Cada dia que passa sem nada fazermos é um dia, dentro de duas semanas, com mais mortos desnecessários."

Senti o anúncio da primeira morte como um murro no estômago. Pensei imediatamente na minha família, onde sou um dos poucos que não fazem parte de qualquer grupo de risco. Não estou preocupado comigo, mas estou extremamente preocupado com eles. Se algo lhes acontecer, nunca vos perdoarei por não terem feito o que podiam quando deviam. 

publicado às 17:28

Lançamento do International Affairs Network

por Samuel de Paiva Pires, em 20.11.19

Amanhã será oficialmente lançado o think tank International Affairs Network, liderado por Inês Calado Lopes Domingos, que muito simpaticamente me convidou a contribuir para a primeira publicação desta organização, subordinada à temática do Brexit. Trata-se de uma associação que, numa época de turbulência à escala global, se propõe reflectir sobre o futuro da ordem internacional liberal e o papel de Portugal nesta. Aqui fica o site, onde entre artigos de Nuno Sampaio, Carlos Coelho e outros autores, podem encontrar o da minha autoria, "The United Kingdom in the balance of Europe and of the international liberal order", em que procuro enquadrar o Brexit na longa história da política externa britânica e mostrar por que razões é uma no-win ou lose-lose situation.

publicado às 23:02

Assobiar para o lado

por Samuel de Paiva Pires, em 20.08.19

A emergência do populismo no seio das democracias liberais, a perda de hegemonia dos EUA no sistema internacional, a ascensão da China e o ressurgimento da Rússia, ambas potências revisionistas e claras ameaças à zona de paz liberal, o Brexit e o futuro de uma União Europeia dominada por uma Alemanha encantada com Putin, as alterações climáticas, a crise dos refugiados, a cibersegurança e as guerras de informação e desinformação no ciberespaço fomentadas pela Rússia e China e nós o que discutimos? Petições a favor e contra um museu dedicado a Salazar, já depois da crise dos combustíveis, dos incêndios sempre reveladores da nossa aversão ao planeamento sistematizado, da importação dos espantalhos racistas dos estudos pós-coloniais, da sempre presente ideologia de género e da restante espuma dos dias alimentada pelos ciclos noticiosos e pelas shitstorms nas redes sociais. Sem embargo de a esfera pública numa sociedade livre dever comportar os mais diversos temas, entretanto, num mundo cada vez mais globalizado e perigoso, cá continuamos, neste cantinho à beira-mar plantado dominado por certa sociedade de corte composta por caciques e carreiristas partidários e umas quantas dúzias de famílias, sem darmos prioridade à política externa e andando essencialmente a reboque dos parceiros europeus. Já dizia Rodrigo da Fonseca que "nascer entre brutos, viver entre brutos e morrer entre brutos é triste”.

publicado às 17:11

Rescaldo da noite de eleições europeias

por Samuel de Paiva Pires, em 27.05.19

Lá fora, ainda não foi desta que a onda populista se tornou tsunami.

Cá dentro, à esquerda, se um partido no governo, com um péssimo cabeça de lista, consegue este resultado, imagine-se o que não conseguirá nas legislativas se as circunstâncias sociais e políticas se mantiverem estáveis; à direita, se esta não for capaz de se entender, de gerar um projecto inovador e agregador, de concorrer a eleições em coligações amplas, dificilmente voltará a ser governo nos próximos anos - e não será com as lideranças de Rio e Cristas, ambos sem ideias para o país e com o carisma de uma couve de Bruxelas, e ignorando ou descurando o potencial da Aliança e da Iniciativa Liberal, que conseguirá conquistar o poder. 

A grande vencedora, porém, continua a ser a abstenção, que, como é habitual, foi vilipendiada durante toda a noite por vários políticos e políticos-comentadores. A este respeito, e em modo telegráfico, saliento apenas que os sistemas partidário e eleitoral portugueses são bastante elitistas, fechados, pouco representativos da sociedade portuguesa e avessos à participação política. Podemos sempre colocá-los em perspectiva histórica e levar em consideração as condicionantes com que se defrontou uma recente e frágil democracia nos anos seguintes ao 25 de Abril de 1974. Mas passados 45 anos, temos partidos-cartel que dificultam a entrada de novos partidos no jogo democrático, não há a possibibilidade de candidaturas independentes à Assembleia da República, o mandato livre dos deputados é, na verdade, um mandato imperativo pertencente aos partidos que impõem uma profundamente anti-democrática disciplina de voto, não há eleições primárias nos partidos, não temos voto preferencial, não temos círculos uninominais e a tão propalada reforma do sistema eleitoral é mero ornamento de programas eleitorais de partidos que, obviamente, nunca irão abdicar voluntariamente de um sistema que lhes dá o poder que detêm e lhes permite continuarem a desdenhar a sociedade civil. A representação é cada vez mais ténue e a participação política para a generalidade da população, porque os partidos assim o querem, limita-se ao voto em listas previamente feitas pelas máquinas partidárias, ou seja, a uma mera ratificação do que os partidos decidem à porta fechada. É claro que há pessoas que têm pouco ou nenhum interesse pela política, mas colocar inteiramente o ónus da abstenção na generalidade dos portugueses, demitindo-se os partidos de quaisquer responsabilidades pelo actual estado de coisas, é, no mínimo, incorrecto e injusto. Por tudo isto, de cada vez que oiço da boca de políticos, em noites eleitorais, a ladainha da abstenção e do desinteresse dos portugueses pela política, apetece-me logo puxar da pistola. Isto é assim e continuará a ser assim porque os partidos querem que assim seja. 

publicado às 20:17






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