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Eric Voegelin, The New Science of Politics:
The theoretical issue of positivism as a historical phenomenon had to be stated with some care; the variety of manifestations themselves can be listed briefly, now that their uniting bond is understood. The use of method as the criterion of science abolishes theoretical relevance. As a consequence, all propositions concerning facts will be promoted to the dignity of science, regardless of their relevance, as long as they result from a correct use of method. Since the ocean of facts is infinite, a prodigious expansion of science in the sociological sense becomes possible, giving employment to scientistic technicians and leading to the fantastic accumulation of irrelevant knowledge through huge "research projects" whose most interesting feature is the quantifiable expense that has gone into their production.
Samuel, reconhecendo a valia da reflexão do Mark Vernon, não deixo de sentir perplexidade com a abordagem quase utilitarista que tem da religião. A Fé não tem um propósito em si mesmo, no sentido em que não é proclamado que "o sujeito A deve ter Fé, para poder fazer uma melhor introspecção de si". Reconheço a valia do exercício, e admiro o exame de consciência e a noção das limitações que a proposta do texto potenciam. Mas não é um caminho de validação da religião: conferir-lhe uma utilidade. Precisamente porque a verdadeira Fé não procura ter uma utilidade.
Daí o meu desconforto com o texto anterior em que se citava o mecanismo: a salvação. Pobre daquele que tem fé porque acha que assim se salva. Tem-se Fé, no meu enquadramento religioso, que sabes ser católico romano, porque se adere à Graça: Deus confere-nos a possibilidade de acreditar, e acreditamos. Não esperando nenhum tipo de recompensa por acreditar. A Salvação é a aspiração de uma comunhão eterna com o Deus que amamos: o perpétuo mergulhar da alma no Seu Amor, nas palavras de Bento XVI. E deverá decorrer de uma vida em que se caminhe na imitação da vivência da Caritas. No modelo do Bom Samaritano, que, enquanto teólogo, Joseph Ratzinger, identificou com o próprio Cristo: Deus que se fez homem para vir assistir a sua criatura caída na estrada nesta existência terrena, vergada pelos pecados e males do mundo.
As limitações do humano face ao Criador são enquadráveis no seio da própria religião. Seria interessante, a meu ver, que Vernon reflectisse também sobre a natureza do pecado original. Que contrariamente ao senso comum, não tem uma acepção estritamente sexual: antes resulta do homem, Adão, que tentado a comer da Árvore da Sabedoria, não resistiu, porque iludido de que assim seria conhecedor das mesmas coisas que Deus. A tentação de Adão é querer substituir-se a Deus, podendo governar o mundo com o conhecimento de Deus. Vernon aponta correctamente para a percepção da humildade do homem face ao divino, mas ignora que a tradição judaico-cristã assimila desde o Génesis, essa mesma necessidade de humildade. Nas Escrituras, a condenação do homem não é pela percepção da nudez, mas pela necessidade de se substituir a Deus.
Miguel de Unamuno, "De Portugal", in Portugal, povo de suicidas:
"«Ideias não se encontram... a não ser a que esses homens beberam nos livros franceses mais vulgares e triviais.» Isto é hoje aqui tão verdade como era quando Herculano o escreveu há meio século. Do livro terrível e triste de Oliveira Martins, de que lhes tenho dado passagens, leiam o que diz da ciência desordenada das classes médias portuguesas. Sim; esta pseudociência, este positivismo pseudo-progressista, é pior, muito pior, do que esses fatídicos oitenta por cento de analfabetos de que tanto falam os afrancesados portugueses partidários do positivismo. «A fortuna dos ricos, a sorte dos pobres, vão pois guiadas por uma coisa pior ainda do que a ignorância - a ciência falsa, sempre pedante.»"
Caro Orlando, este vai ser ainda mais sucinto.
1 - Episteme - Apesar de velha, não deixa de ser uma ideia importante. E uma coisa é a epistemologia enquanto ramo da filosofia, de que o Orlando fala, outra é efectivamente a distinção entre doxa e episteme que se for feita apenas e só em termos de conteúdo corre o risco ou de enveredar pelo dogmatismo, ou pelo relativismo e/ou pelo construtivismo racionalista, caindo no mesmo tipo de tentativas de imposição mais assente em argumentos ideológicos. Para algo ser científico tem que ter um corpo/conteúdo sistematizado mas sem método (para os gregos, caminho) não é possível alcançar esse conteúdo e sistematizá-lo.
2 - Argumento ad Verecundiam - Já esperava que dissesse isso. Não foi lá muito original. Mas está errado. Ao contrário do que o Orlando afirma, eu não incorro nesta falácia (são mais as vezes que a denuncio que outra coisa), porquanto não me interessa a autoridade de Kukathas enquanto estudioso de Hayek mas sim os seus argumentos - que já confrontei com outros como o do utilitarismo indirecto de que Gray fala e ao qual Kukathas se refere, com a diferença entre act-utilitarianism e rule-utilitarianism de Erick Mack (que Gray e Kukathas também referem), e com os de Arthur Diamond, que mostra que as quatro éticas a que Hayek recorre - relativismo, contratualismo, darwinismo social e utilitarismo - são criticáveis nos termos anti-racionalistas (referindo-se ao racionalismo construtivista) da sua epistemologia, o que representa um problema para a sua teoria política que, de qualquer das formas, não pretendia ser normativa - nem poderia, com as tensões inerentes entre as éticas em causa. Porém, como Kukathas demonstra, o anti-racionalismo construtivista de Hayek e a sua inserção num racionalismo crítico ou evolucionista (mais próximo de Popper) acabam por refutar o aparente utilitarismo de Hayek. Contudo, isto são argumentos que, julgo, o Orlando desconhece. E que eu já me disponibilizei para lhe fornecer. O que seria da academia sem a possibilidade de citações, referências e confrontação de pontos de vista? Ainda para mais em ciências sociais. Falo de argumentos, não de autoridade de autores. Sou novato nestas andanças mas não assim tão ingénuo. Não me confunda com pseudo-engenheiros domingueiros "cainesianos" ou "krugmanianos".
3 - Então antes era o princípio da felicidade do maior número e agora já é o princípio do interesse próprio que é a base do utilitarismo? Convinha rever isso com alguma humildade, que é coisa que lhe parece faltar em demasia. Em ciência, interessam mais os problemas do que as definições ou respostas definitivas (sendo ainda impossível ter a certeza acerca da possibilidade de serem definitivas). E porventura até podem ser vários os princípios e várias as correntes utilitaristas, como o meu ponto anterior deixa antever.
Alguma abertura de espírito, pensamento crítico e humildade intelectual é o que se pede a qualquer académico digno dessa qualificação. Eu não me importo de sair da minha zona de segurança e reconhecer as deficiências inerentes à tradição filosófica onde me inscrevo. O mesmo não acontece com o Orlando, que utiliza argumentos de pretensa autoridade científica ou filosófica sem sequer se mostrar disponível para os ver confrontados. Isso não é uma postura filosófica mas sim político-ideológica e dogmática - que o Orlando me tenta imputar. Como lhe disse, se assim entender por bem, enviar-lhe-ei o material de que falo. Caso contrário, não vale a pena continuar a alimentar esta discussão. Ainda tenho muito que ler e aprender até poder argumentar com a autoridade que desejo e mesmo assim duvido que o possa fazer. Estou sempre mais no ponto de partida (de quem tem mais dúvidas que certezas) do que outra coisa e não vai ser por agora, muito menos através da blogosfera, que vou passar a ter mais certezas. E também não será através desta que chegaremos a conclusões que só um debate demorado e alongado permite. Ainda para mais quando eu assento na dúvida humilde e o Orlando na certeza arrogante, onde os alegados iluminados racionalistas-construtivistas frequentemente parecem encontrar-se - sem nunca, na verdade, discutirem entre si no concreto as suas ideias e crenças, posto que sabem no seu intímo que rapidamente começariam a entrar em desacordo (ler a desconstrução que Schumpeter faz do conceito de bem comum ajuda a entender o que digo) e perceberiam que estão mais próximos da ideologia do que pensam, filosoficamente mais próximos dos seus inimigos ideológicos do que desejariam e que, ironicamente, acabam por negar a posteriori com a sua teorização, que rapidamente degenera em autoritarismo, colectivismo e imposição coerciva de uma moral, a premissa de liberdade individual de que supostamente partem. O sempre muito citado pseudo-filósofo Olavo de Carvalho é um mestre a entrar nesta incoerência, e os seus discípulos, como o Orlando, seguem-lhe as pisadas. Gray explica bastante bem este tipo de processos e contradições em "A Morte da Utopia". É por isso que prefiro as concepções negativas do liberalismo - e do conservadorismo abstracto - em muito baseadas na ideia da sociedade aberta popperiana. Continuo a preferir as deficiências deste aos perfeccionismos dos auto-proclamados iluminados que nem sequer se apercebem das falácias em que incorrem. Se se apercebem, então são intelectualmente desonestos.