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(Sugestão musical para acompanhar a leitura deste texto)
Inspirado pelo meu post, o Filipe Faria escreveu um excelente texto, cuja leitura é indispensável, em que ele, como bom português à solta, observando directamente a realidade britânica contemporânea, onde o multiculturalismo coloca em risco as tradições culturais e políticas da Inglaterra, nos revela, entre várias ideias, esta: "Conhecendo bem a realidade de ambos os países, neste momento arrisco dizer que Portugal usufrui de uma maior liberdade de expressão."
Neste texto, o Filipe coloca em causa a defesa da democracia por Hayek, que se insere na tradição anglo-saxónica do liberalismo clássico, como forma de limitar o governo, consubstanciada na observação que faz do que se passa no Reino Unido. Mas Hayek estava alerta para os perigos advindos da miragem da justiça social (e do alargamento dos poderes do estado ao abrigo deste, como fiz notar no ponto 4 do meu post "Equívocos a respeito do liberalismo"), das coligações de interesses organizados que negoceiam com e sustentam os partidos políticos, e do positivismo legalista - que confunde a lei (Direito Natural) com legislação, em detrimento da primeira -, cujos efeitos combinados denomina por perversão democrática.
Assim como estão vários autores britânicos, como John Gray e Roger Scruton, que entre o liberalismo e o conservadorismo, com destaque para a inspiração em Hayek e Oakeshott, alertam para os perigos destas acepções modernas. Permitindo-me fazer corresponder a ordem espontânea de Hayek à civil association de Oakeshott, e a ordem de organização à enterprise association, e sabendo que os elementos dos dois tipos de ordem ou de associação se misturam na prática, podendo ser encontrados em vários estados, torna-se útil salientar que para Oakeshott a civil association não necessita de ser culturalmente homogénea mas apenas respeitar a lei acima da identidade cultural, ou seja, a comunidade deverá fundamentar-se no respeito a princípios abstractos e formais. Acontece que, segundo Gray, esta acepção kantiana é profundamente questionável e um calcanhar de Aquiles para o liberalismo e para o conservadorismo. A História recente mostra como é difícil que o estado sustente a sua autoridade apenas sob concepções de lei formais, abstractas e processuais, que assim se torna fragmentada e fraca. Esta ideia surgiu numa altura em que a identidade cultural era dada como garantida, quer por Kant quer pelos Founding Fathers americanos, sendo a identidade em causa a da Cristandade Europeia. Com o Iluminismo francês, a Revolução Francesa e a fragmentação desta identidade, tornou-se mais fraca a autoridade do estado com base em concepções abstractas (veja-se precisamente o caso do Reino Unido, com comunidades muçulmanas que desafiam constantemente o estado e rejeitam as normas tácitas de tolerância características dos britânicos, ou ainda o caso dos EUA, em que uma horda de minorias vai progressivamente tornando o estado cativo, tendo apenas o legalismo a uni-las)[1]. Roger Scruton assinala esta fraqueza e os seus reflexos práticos sob a denominação de falácia da agregação, em que dando o exemplo do Reino Unido evidencia como o multiculturalismo e o Estado Social se combinam de uma forma que é potencialmente destrutiva para a comunidade[2]. E também Hayek faz notar que a modernidade produziu um enquadramento que é altamente destrutivo das tradições intelectuais e morais europeias, que através do racionalismo construtivista e do relativismo produz morais inviáveis, ou seja, sistemas de pensamento moral incapazes de sustentar qualquer ordem social estável, que através de teorizações sociológicas contemporâneas e da corrupção da arquitectura e das artes (como Scruton e Gray demonstram) criam um clima cultural que é profundamente hostil à tradição e também à sua própria existência. Confrontamo-nos, assim, com uma cultura que tem ódio à sua própria identidade, tornando-se, em larga medida, efémera e provisória.[3]
Inspirados pelo Projecto Iluminista, os autores modernos e pós-modernos desenvolveram um caos moral, em que o abuso da razão, o objectivismo e o relativismo criaram um ambiente cultural, social e intelectual que é inimigo da tradição. Ao proporem ancorar a moralidade no racionalismo, o positivismo, o cientismo, o historicismo e o cepticismo conduziram naturalmente ao niilismo, construtivismo e planeamento social, e, consequentemente, ao utilitarismo e emotivismo. A rejeição de qualquer tipo de instituição ou código de comportamento que não seja racionalmente justificado parece ser uma característica distintiva da modernidade[4], o que talvez possa ajudar a explicar o que se passa no Reino Unido, já que os costumes britânicos são completamente postos em causa por este quadro.
Por outro lado, esta discussão relembrou-me um texto que escrevi por altura dos motins em Inglaterra em Agosto de 2011, e de várias discussões que surgiram na blogosfera sobre estes, em que às tantas o Bruno Garschagen colocou uma hipótese que me parece particularmente útil recuperar, e que vai no sentido do pensamento de Scruton a que aludi acima: Os criminosos de Londres são filhos do Welfare State e do multiculturalismo? Não se encontrará aqui também parte da explicação para o que se passa em Inglaterra? E mais, daqui lanço o repto ao caríssimo Filipe, caso ache(s) por bem, de elaborar(es) sobre algo que conhece(s) muito bem (ao contrário de mim), a Escola de Frankfurt, que em larga medida se faz sentir na academia britânica, e de nos ajudar(es) a perceber se e de que forma as ideias desta não são também em grande parte responsáveis por este ambiente.
Só para finalizar, quanto a Hayek, este propôs uma reforma das instituições democráticas em Law, Legislation and Liberty. Para além de demonstrar a vacuidade do conceito de justiça social, para tentar recuperar e/ou evitar a confusão entre lei e legislação e os efeitos nefastos do positivismo legalista, propõe que os parlamentos sejam compostos por duas câmaras, em que uma trataria da lei (as regras de justa conduta da ordem espontânea, descobertas e em linha com a opinião pública), e outra da legislação (correspondente aos comandos específicos da ordem de organização, ou seja, à noção de vontade), o que seria complementado por um Tribunal Constitucional que teria como missão evitar a confusão entre lei e legislação, para que as duas assembleias não entrem em conflito relativamente às suas respectivas competências. Até que ponto isto será praticável, não sei. Mas fica a sugestão.
[1] John Gray, “Oakeshott as a liberal”, in John Gray, Gray’s Anatomy, Londres, Penguin Books, 2009, pp. 83-84.
[2] Roger Scruton, As Vantagens do Pessismismo, Lisboa, Quetzal, 2011, pp. 151-163.
[3] John Gray, “Hayek as a Conservative”, in John Gray, Gray’s Anatomy, op. cit., p. 131.
[4] Edward Feser, “Hayek on Tradition”, in Journal of Libertarian Studies, Vol. 17, No. 1, 2003, p. 17.