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São precisamente temas de pasquim como a declaração suicida de Passos Coelho ou a flatulência de Sobral que determinarão o próximo incêndio em Portugal. O povo aprecia o circo, e dispensa a essência basilar de um sistema. Rir à conta da palermice e da mediocridade afasta o ser pensante dos grandes desígnios do país. Ser profundo e consequente custa. E, in spite of it all, não se chega a bom porto com festas de auto-comiseração, espectáculos narcisistas e verberações masturbatórias. Sentar-se à mesa como adultos e encarar a música desafinada não é para qualquer um. Ao validarem a ideia de absolvição dos pecados, numa congregação de "manifesta e inequívoca solidariedade", adiam o trabalho duro, sujo. São momentos de pico como este, de libertação orgásmica, de hibridismo transformador da "dor dos outros" em esperança para "todos", que eternizam a noção de ascensão e queda, fulgor e inconsequência. Por mais que estiquem os zeros do milhão, os mesmos não tapam a parte descoberta de um país inteiro versado nas artes hedonistas, nos prazeres. Foram os deleites que mataram as florestas. Foram as extravagâncias de uns que abandonaram o interior. Foram os cosmopolitas vibrantes que deitaram fogo à ruralidade em nome da sofisticação cintilante de uma festa de arromba. A silly season está oficialmente aberta.
José Adelino Maltez, "Democracia sem povo?":
O desafio que se apresenta à comunidade não é apenas uma questão financeira, mas antes um desafio total à própria democracia representativa, porque o representante não é apenas o que recebeu uma autorização para agir por outro, mesmo que seja o povo. Impõe-se que ele tenha uma responsabilização a posteriori, comaccountability, com prestação de contas em sentido amplo, porque há uma diferença entre o que o representante faz (acting for) e o que o representante é (standing for), para referirmos o que ensina Hanna Finichel Pitkin. O Orçamento pode ser aprovado em reuniões técnicas com a troika, ou com os agentes das forças vivas, nomeados para comissões técnicas de acompanhamento, mas uma democracia sem povo não passa de mera democratura.
Há pouco, numa das minhas contumazes deambulações feicebuqueiras, deparei-me com uma agudíssima análise do Jorge Nascimento Rodrigues, que permito-me citar aqui no blogue: "A verdadeira divisão é entre os que ainda aceitam jogar segundo as regras da troika em diversos graus (Bersani e Monti) e os que, por demagogia populista ou convicção, se opõem, como todos os grupos e partidos que se integram na coligação liderada por Berlusconi ou os integrantes do movimento de Beppe-Grilo (verdadeira surpresa eleitoral, game changer no atual contexto, sendo o segundo partido mais votado, à frente do próprio partido de Berlusconi) (...) Um membro do Partido de Bersani já disse que por este andar haverá novas eleições, como na Grécia. Só que Beppe Grillo não é Siryza e Berlusconi e seus apoiantes não são o PASOK para servir de muleta a Antonis Samaras. È um contexto radicalmente diferente". O cerne destas eleições prende-se exactamente com o facto, estranho para alguns, de Berlusconi e Grillo não serem comparáveis aos actores políticos da desgraça grega. Há diferenças notáveis entre os eurocépticos italianos e os eurocépticos gregos, ainda que a semelhança principal entre ambos reconduza-se ao firme repúdio da actual arquitectura de gestão macroeconómica do euro. O que as eleições italianas patentearam foi uma divisão radical entre os que partilham os postulados merkelianos e eurocráticos de gestão do euro, e os que preferem uma via autonomista que recupere soberania e voz activa na resolução dos problemas políticos e económicos nacionais. Sim, caríssimos leitores, o que está em causa é tão-só saber até que ponto os italianos aderiram ao federalismo aditivado dos eurocráticos de Bruxelas e Berlim. Pelos vistos, a adesão não foi em massa, e por mais que se critique Berlusconi - e eu estou longe, bem longe, de ser um admirador do Casanova cantor -, e muitos fá-lo-ão, uma coisa é certa, o senhor renasceu das cinzas, qual fénix perdida nas ladeiras da proscrição judicial. O futuro será incerto, e as próximas horas, dias e meses revelarão se os italianos estão ou não dispostos a suportarem, silente e calmamente, a dureza austeritária. Algo me diz que não. Mais: esta crise porá a nu, definitiva e derradeiramente, a pobreza política que domina as estruturas políticas europeias. Com que consequências? Só o futuro o dirá.