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Era o nosso último ano na casa da Avenida Princesa Patrícia. Os meus pais tinham arrendado outra não muito distante, sensivelmente mais espaçosa e próxima da zona das escolas preparatórias e dos liceus de Lourenço Marques. Acabada a quarta classe, a Escola Preparatória General Machado ficava lá para as bandas da 24 de Julho e a Rua Dr. J. Serrão possibilitava a ida e vinda a pé.
Estávamos muito longe dos dias em que os miúdos se interessavam por pequenos envelopes propiciadores de reforços das colecções de jogos online e vivia-se numa época em que um presente dado pelos pais já era coisa de solene importância, com alguma sorte a ele se juntando outros oferecidos pelos avós, tios, primos e amigos, num pequeno simulacro da abundância destes nossos dias em que a bonecada recebida vai enchendo caixotes e caixotes bem depressa esquecidos nas arrecadações.
Aquele Natal de 1969 prometia. Logo no início de Dezembro, tínhamos visto o nosso pai chegar com um enorme embrulho, uma caixa de cartão embrulhada num papel lustroso onde sorridentes Pais Natal, renas e trenós em paisagens escandinavas, anunciavam algo que apenas a nossa imaginação poderia conceber. Dia após dia rondámos aquela caixa proveniente da Modelândia, parecendo ela cada vez maior. Procurando descolar um bocadinho de papel para termos uma ideia do que ali vinha, foi com decepção que verificámos a impossibilidade do assalto antes de tempo. Decerto avisada pelo nosso sempre precavido pai, a lojista fizera a coisa a preceito e era impossível a nossa já programada cara de falsa surpresa na noite da consoada.
Chegado o grande dia, esperámos ansiosamente pelo rápido cair da noite que como todos os anos, seria longa. Após uma refeição ligeira, lá nos encaminhámos para a Igreja de Santo António da Polana onde cantávamos no grupo coral. Não cantava grande coisa e a minha mãe costumava dizer que em vez de mais uma voz no coral, eu faria melhor figura num curral. Na noite de Natal, o Padre Arnaldo Taveira Araújo tornava-se mais exigente, esfusiante de alegria pela casa cheia. Após o alegadamente brigantino Adeste Fideles, a Missa do Galo culminava sempre com o exaltante Aleluia de Händel, por todos aguardado na certeza do entusiasmo dos miúdos que naquele oratório sabiam conseguir comover todos os que numa igreja da Polana a abarrotar, cumpriam os últimos rituais antes do regresso a casa para a grande refeição natalícia e abertura de prendas.
Tínhamos três árvores. A minha era verde, pequena e com ramagens de papier mâché. Datava de 1934 e fora comprada pela minha avó para o primeiro Natal do nosso pai. Ainda existe, todos os anos é enfeitada de forma a disfarçar a constante perda de papel e coloco-a ao lado de outra, maior e muito mais recente. As gambiarras de lampiões brancos com janelas translúcidas e polvilhadas de pequenas notas de cor, já foram várias vezes desmontadas e regressam sempre à operacionalidade, aproveitando-se novas fitas de luzinhas disponíveis em qualquer loja chinesa. A árvore do Miguel era alta, prateada e as suas gambiarras consistiam em pequenos cachos de uvas vermelhas e transparentes, sob as quais brilhavam as lâmpadas cujo novo comando por mim há uns anos adaptado, permite os pisca-pisca que passaram a adornar a minha árvore grande. A da Ângela, de tamanho médio, era branca e a iluminação consistia - também ainda a conservo - por grandes bolas multicolores, dentro das quais as gambiarras vão alternadamente mostrando o azul, o verde, o amarelo, o rosa e o lilás. Cada um tinha a sua árvore, mais um exotismo a juntar a uma consoada de canícula austral, onde dificilmente a tradição poderia fazer vingar bacalhoadas com todos.
Finalmente chegara a hora e aquele cartãozinho indicando Nuno e Miguel como os destinatários do presente, foi removido do canto da caixa. Numa espécie de propositada fita, mostrámos algum vagar no cuidadoso desembrulhar, embora a ânsia de dias fosse há muito evidente para os nossos pais e avós. Sabiam eles estarmos em plena representação de um ilusório comedimento, logo desfeito quando boquiabertos deparámos com um lindo castelo Made in England que em três tempos montámos. É mesmo este que as imagens mostram. Ao fim de poucos dias foi nacionalizado e na porta de armas surgiu o escudo português, ocultando algo que há muito esqueci. Foi durante alguns anos o centro das nossas brincadeiras e até há bem pouco tempo existiram cavaleiros cruzados, uma figura de Ricardo Coração de Leão, peões e cavaleiros mouros, gente de cota de malha e de armadura. Os meus sobrinhos encarregaram-se das mutilações e degolas e se sobreviveram ao vendaval de 1974 e a mais uns trinta e poucos anos de mudanças de casa e de vida, não resistiram a esta época em que os brinquedos são algo facilmente substituível.
Nesta noite de 25 de Dezembro de 2014, aqui fica o precioso castelo branco de 1969. Praticamente intacto, apenas necessita da minha paciência para em casa do João Diogo, do Nuno Miguel e da Filipa, vasculhar os caixotes onde estará esquecida a ponte que lhe dá acesso. Foram avisados, um dia destes lá irei em demanda.
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