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Nunca a expressão "espalhar o mal pelas aldeias" teve uma conotação tão actual. Independentemente da interpretação da Lei Fundamental levada a cabo pelos juízes do Tribunal Constitucional, no espírito dos cidadãos (mais importante que o espírito da lei) ficou um sabor amargo, uma certa indisposição. A decisão que permite aos autarcas levar a trouxa para outro destino fere os pressupostos que estiveram na génese da Democracia em Portugal - a ideia de um refrescar contínuo de agentes do interesse colectivo. O rotativismo do poder não tem nada a ver com esta dança de cadeiras municipais. O antigo regime que ficou conhecido pela longevidade de Salazar corre o risco de ser destronado pela inauguração de uma nova modalidade. O Tribunal Constitucional, se deseja efectivamente afirmar-se enquanto o quarto poder político, ao menos que o faça em condições e leve em grande consideração o ambiente psicológico da nação. O mexilhão que sofre as consequências destes devaneios já não tem modo de escapar ao feitiço dos bruxos. Pode mudar de residência, passar para o concelho vizinho, mas corre o risco de levar com a mesma encomenda. O povo está pelos cabelos com os pelourinhos inventados com tanta manha. Este lindo mecanismo apenas repete o processo de nomeações duvidosas que acontecem noutras esferas de interesses; as passagens de políticos do público para o privado e vice-versa. Agora, somos contemplados com uma nova forma de viagem política. Depois há outra questão sobre o conflito de interesses que deve ser tido em conta. Um presidente de câmara, recém-eleito noutro concelho, ao estabelecer relações de negócio com o concelho que acaba de abandonar não fará parte de ambas as partes do arranjinho? Não terá em sua posse o mapa de tesouros, minas e armadilhas? E os amigos de mandato político que permanecem nas maravilhosas empresas municipais, e que não transitaram para parte alguma, será que irão guardar a informação privilegiada que detêm e não partilhá-la com o ex-chefe quando o telefone toca? Como podem ver, o mapa das viagens municipais está traçado sobre a escarpa vergonhosa da política nacional. Veremos a pronúncia do norte a querer escapar-se para o sul e vice-versa. Queriam-nos longe da vista, pois bem, quando um desses Valentins que por aí anda, bater à porta da câmara municipal de Mértola, ou uma dessas Fátimas que por aí anda bater à porta da câmara municipal de Oeiras (eu sei, é um mau exemplo, é quase a mesma coisa que o Isaltino) logo verão como apita o comboio. O Tribunal Constitucional portou-se como um reles agulheiro. O diagrama de abertura de exploração política de Portugal foi inaugurado pelo Tribunal Constitucional. Os juízes plantaram apeadeiros para gáudio de saltimbancos. Agora sim, podemos dizer que temos uma volta a Portugal como deve ser. Não há volta a dar. Vamos ter de gramá-los até à ponta dos cabelos cinzentos.
Porque são as câmaras municipais tão apetecíveis? Porquê é que sentimos tamanha agitação em torno da autarquia? Querem uma fotografia rápida da câmara? Se existe um animal selvagem que também pode concorrer na categoria de mascote da prevaricação política em Portugal, esse bicho é o presidente de câmara e os seus associados. A explosão de alegria que se fez sentir com o desmoronamento do antigo regime e a instalação da Democracia, foi acompanhada pelo fenómeno de disseminação do poder, pelo esfregar de mãos daqueles ávidos por saquear a coisa pública para benefício próprio. As câmaras municipais obedecendo a esse princípio de dispersão de autoridade e administração, foram a fachada perfeita para colocar em campo as preferências locais. Funcionaram como uma camorra desprovida de sangue e suor, mas que são responsáveis por uma torrente de lágrimas, a lamentação daqueles que ficáram a arder. De norte a sul do país, a devassa passou de licenciamento em licenciamento, de director municipal para director municipal, de empresário amigo para familiares, de tias e enteados para afilhados do mesmo conluio de interesses. Ora era um irmão de um presidente de câmara que de repente viu o seu projecto urbanístico aprovado em sede de assembleia municipal, ora era uma adjudicação de um contrato milionário para recolha de lixo à empresa de um compincha que apoiou a campanha - os favores são para se debolber. É isto que está em causa no descalabro nacional, a institucionalização da corrupção em doses maciças, sem vergonha ou pudor. As sentenças transitadas em julgado que serviram para condenar autarcas foram também parar à câmara - à câmara frigorífica-, onde as consequências efectivas pela prática de ilícitos foram congeladas numa espécie de morgue da irresponsabilidade. De um modo geral, salvo raras e deficientes excepções (não se esqueçam de Santana Lopes que saltou da Figueira para fazer figura de banana enquanto primeiro-ministro de Portugal), a câmara municipal é um destino final, a última morada de pseudo-políticos ao serviço de uma falsa nação que faz fronteira com o concelho seguinte que professa a mesma religião de engano e desvio. No patamar político da câmara municipal foi sendo possível passar despercebido, e, quando as falcatruas foram destapadas, houve quem já desse uns passos de samba lá para os lados do Rio de Janeiro. Porque é que mais de setecentos marmanjos colados em outdoors de cores duvidosas querem estender-se ao comprido na câmara? A resposta é simples; é uma profissão muito bem remunerada. As prestações extraordinárias, fora de portas e horas, são pagas a peso de ouro, com créditos para esquecimento futuro. De uma assentada é possível envolver a aranha e a teia de interesses e esperar pelo silêncio dos outros nas horas difíceis. Estão todos enleados, com a corda pelo pescoço, mas não parece. Por esta e outras razões, Portugal está a passar as passinhas do Algarve há muitos anos e não apenas em Agosto. As câmaras são ardentes. E estamos de luto enquanto não chegam os senhores que se seguem.
RIP James Gandolfini. Partiu o conhecido actor e levou consigo Tony Soprano. Será sempre esse personagem que fará parte da memória colectiva. E há razões para isso. São os mesmos argumentos que sustentam a simpatia que nutrimos por várias gerações de mafiosos. Poderia recuar na história cinematográfica e evocar os "Corleones" de "O Padrinho", os "Goodfellas" (não gosto do título em Português) ou "Era uma vez na América". Todos esses Capones, galos de aviários do crime, exalam uma aura de bon-vivant, de quem sabe apreciar as coisas boas na vida. Os detalhes de luxo que exigem dinheiro, muita massa. Roupa e perfumes caros, restaurantes de cinco estrelas, residências faustosas, carros de luxo e uma arraia de seguidores que seguem em tournée para onde quer que eles se desloquem. A cultura de suavização do malfeitor, com terapeutas à mistura e actos de constrição religiosa, contribuíram para suavizar os contornos criminosos da sua actividade. Viramos a cara e não vemos o sangue. Damos a outra face. Os americanos terão sido os inventores dessa fórmula de aceitação social, estilizando a graça dos gatunos, hiperbolizando o seu lado alegadamente suave, atenuando as facadas e as chantagens à queima roupa. É pena que a vida não imite a ficção e que tenha servido para tentar ladrões de bairro que aspiram a voos mais altos. De Hollywood a Wall Street, de Bollywood a Felgueiras, a verdade é que uma geração inteira de Valentins e Fátimas quis experimentar essa vida glamour, de poder, de ostentação, de prestígio, mas felizmente para nós que os corruptos locais não passaram das marcas - violentas. Deixaram-se ficar pela prática insidiosa, mal feita ainda por cima. Mas, ironicamente, foram apanhados e não foram agarrados. Continuam por aí nas suas vidinhas de marisqueira e charuto. Pode parecer que não há relação de parentesco entre Sicília e Portimão, mas depende dos meios empregues. Nalguns casos recorreram ao calibre 38 e noutros ao carimbo para aprovar o licenciamento da obra, e a coisa ficou por aí. E é esse o perigo da cultura contemporânea. A estilização do crime. A transformação do ilícito em algo estético, quase próximo da alegada instalação artística de uma Joana Vasconcelos. A bala tornada bela. Estão a ver o fumo dessa miragem? Quando a mestria reside na alteração dos factos duros e na alteração das percepções, corremos o risco de miopia atroz, de não ver nada. São estes os tempos televisivos que também vivemos. De uma assentada transformamos em benfeitores prevaricadores. Subscrevemos na íntegra a relativização dos aspectos negativos das questões por forma a sermos condescendentes com as nossas próprias distorções. E na hora da morte e reposição na grelha televisiva, lá nos dobraremos em vénias. Na vida teremos de proceder de modo diverso. Esquecer por um instante o perdão, que não pode ser concedido e que nunca poderá ser merecido.