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Os portugueses já deveriam saber como isto funciona. Os actores apresentam um espectáculo notável e o público deixa-se ir, julgando se tratar da atracção principal da noite. No palco dois personagens desenvolvem um sketch em torno de um microfone, um enredo com picos de tensão e comédia, e enquanto a plateia assiste impávida e serena ao tira-teimas, uma outra troupe, em toda parecida à primeira, saca do guião umas linhas mais cínicas, um monólogo expectável de toda uma classe política: o regresso das subvenções vitalícias dos políticos. O esquema, usado vezes sem conta em política, geralmente funciona. Quando não há palhaços disponíveis, o futebol também serve para distrair. Ou uma outra trivialidade picante, sórdida. O vice-presidente da bancada socialista foi o encenador escolhido para dar esta pancada na moleira dos portugueses. Vieira da Silva, cujo semblante serve perfeitamente para estas encomendas, não nos faz esperar pela tomada de posse de António Costa para provar que o mundo tornará a ser como era. Nada mudou nem mudará. O Partido Socialista que se apresenta (sempre) como o bom da fita neste péssimo filme, não passa afinal de um intérprete da mesma mediocridade. Falam com saudade da revolução, mas são uns fracos, uns vendidos. A reforma de Estado nunca será avistada nos termos em que o país exige. Assim que o Largo do Rato voltar a mandar neste cangalho, iremos assistir a um processo de retorno aos dinheiros fáceis de um qualquer programa comunitário. Os portugueses têm todas as razões para estarem arruinados. Isto não se endireita com uma simples mudança de personagens.
"Partidos arriscam vir a ter de pagar o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI)." Arriscam? Porquê? Os partidos políticos não têm personalidade jurídica? Não são entidades geradoras de receitas? As sedes e filiais não servem para gerar dinâmicas de negócio? Então porque raio devem beneficiar de tratamento privilegiado? Voltamos à mesma questão de sempre - a reforma do Estado nas suas distintas variantes partidárias e contributivas. Reformar o Estado significa retirar bengalas e benesses às estruturas que acabam por corporizá-lo, porque os partidos precedem a sua própria construção. Essa é uma das análises passível de ser aceite. Eu percebo que no Paleolítico da democracia em Portugal, na aurora do existencialismo político, os partidos merecessem algumas facilidades para ganhar raízes e florescer. Mas essa época de cultivo e colheita partidária há muito que acabou. O estado de graça terminou - a vaca já foi mugida vezes sem conta. Os partidos ou têm pernas para andar ou não têm. A decisão de "impostar" os partidos não tem nada de impostor. Se os partidos pretendem ser a extensão da sociedade civil, os representantes dos cidadãos nas suas atribulações societárias, então seria expectável que se portassem como cidadãos de pleno direito. Eu percebo que a questão tenha sido engavetada vezes sem conta. Deve haver partidos com uma caderneta predial muito extensa. Deve haver grémios à Esquerda e à Direita com edifícios a torto e a direito. Se custa ao mais mortal dos cidadãos receber a notificação de pagamento do IMI, não vejo razão para poupar os senhorios partidários. Mas existe uma outra dimensão, uma outra consideração acessória, porventura paradoxal. Que eu saiba, as sedes e filiais partidárias assumem a vocação imobiliária de escritórios, então como se explica a quantidade de residentes que literalmente não arreda pé desses estabelecimentos, que vive nessas casas há mais de quarenta anos? São inquilinos políticos de longa data, mal habituados e convencidos de que devem merecer respeito e consideração. Mas deram muito pouco em troca. E não devem ser isentos. Não estão isentos de responsabilidade pelo descalabro nacional.
Se há coisa que abunda em Portugal, são as sedes locais dos partidos políticos. Edifícios com arquitectura de traça antiga, em ruína ou não, ou escritórios que ocupam um piso de um prédio recente onde abunda alumínio acastanhado. Não sei qual o volume do património predial dos partidos, mas não deve ser coisa pequena. Nem vou mencionar as sedes temporárias de candidaturas ao poder, às eleições, sejam autárquicas ou de outra natureza. Não vou por esse caminho de saber se a cedência de espaços foi feita por amor à camisola pelo patrão imobiliário da terra ou se o mês do inquilino irá ser pago de outra maneira, com calma quando chegares ao posto. Não vale a pena esgravatar nessa agência que decerto haverá belas histórias para contar sobre aluguéis pagos em género ou espécie, no dia em que os compadres chegam ao poder. Quanto ao IMI, é mais que acertado que os partidos políticos paguem esse imposto. Não vejo razão para que as residências ideológicas sejam dispensadas desse ónus. Não sei nem me interessa que nos Ratos, nos Caetanos, nos Caldas ou nas Liberdades os ocupantes não se sirvam dos espaços para fins residenciais (embora muitas vezes utilizem a sede para dormir politicamente). A inclinação política ou a paixão ideológica não pode servir de pretexto para eximir algumas personalidades jurídicas das suas responsabilidades contributivas. Dirão alguns que o facilitismo tributário é para estimular o gosto pela causa pública, pela discussão cívica em prol da sociedade, para garantir a participação política. Causa pública uma ova - vejam-se os resultados das últimas três décadas de invocação do superior interesse e do bem colectivo. Qualquer terriola de Portugal tem sempre uma Rua 25 de Abril, e, ao virar da esquina, ou na própria rua revolucionária, lá estão as cores e o emblema do partido tatuados na fachada de cal branca. A haver uma bandeira, geralmente essa já perdeu a cor original e às vezes vê-se que foi traçada pelo bicho do vento que não perdoa, que não aprecia a basófia gratuíta que sai das janelas do grémio ideológico, das bocas desses lideres. Qualquer dia, já que existe essa lacuna na lei, o T3 de uma família desempregada se transforma em secção partidária para chupar essa vantagem do tutano fiscal - para aproveitar o perdão do IMI, com cozinha e casa de banho, para os militantes em regime de estadia de longa duração. Não sabe o governo onde ir buscar o graveto que a Troika exige? Façam-se à estrada com uma roulotte das finanças, montem o acampamento e efectuem o levantamento das sedes e secções dos partidos que se encontram em cascos de rolha e além-mar. E façam as contas, mas façam as contas como deve ser. Apliquem a coima retroactivamente (com juros acrescidos, naturalmente) e ponham os partidos a pagar a conta também.
Portugal dispõe de um regime de protecção social altamente regressivo, segundo palavras do insuspeito FMI. Ao longo das últimas décadas, os sucessivos governos desenharam um sistema que beneficia, sobretudo, os instalados em torno da manjedoura estatocrática. Até aqui não há nenhuma surpresa, pois, qualquer analista minimamente atento sabe, ou pelo menos tem a obrigação de saber, que o Estado em Portugal tornou-se um centro de apoio aos mobilizadores do dinheiro concentrado. O que não se sabia, ou não era do domínio público, eram os números envolvidos nesta trapaça politicamente organizada. Sabe-se agora que 40% dos gastos com pensões vão para os 10% mais ricos. Um número brilhante e redondo que não oferece a menor dúvida. Enquanto mais de um milhão de pensionistas desespera por pensões de reforma absolutamente miseráveis, uns poucos, os sibilinos "happy few", arrebanham o grosso dos dinheiros públicos dedicados a esta nobre tarefa ideada nos idos do século XIX por Bismarck. Perante isto, há que recolocar a célebre questão leninista: o que fazer? A resposta não é simples, nada é singelo neste mundo de contabilistas despolitizados, o que é certo é que qualquer reforma, que será inevitável caso se protele a necessária mudança, terá forçosamente de tocar nestes agregados. Por outras palavras, há gente que terá de encarar de vez a inelutabilidade da redução dos enormes privilégios que possui à conta dos contribuintes esmagados. A reforma da segurança social, a aproximação dos regimes público e privado, o fim das pensões milionários pagas pelo erário público, em suma, a moralização do Estado, que é sustentado por nós, produtores claudicantes, é uma exigência a que urge dar cobro. O relatório do FMI, que enferma de alguns vícios de elaboração noutras áreas da governação, foi particularmente bem escrito neste quesito. Mais: acertou na mouche, colocando a nu coisas que muitos teimam em negar, ciosos, talvez, das prebendas que teimam em não deixar. O socialismo dos "amanhãs que cantam e trazem sempre dinheiro para tudo e para todos" terminaram. Para bem de todos nós.