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Crítica da falta de exigência no ensino

por Samuel de Paiva Pires, em 25.06.09

 

Assisti hoje (ontem) a parte do debate quinzenal na Assembleia da República. Retive um curioso paradoxo assinalado por Francisco Louçã: há uma geração atrás eram os filhos dos ricos que frequentavam o ensino superior e não se pagavam propinas, agora que todos conseguem chegar à universidade muitos desistem porque não conseguem pagar propinas.

 

Seria necessário operacionalizar o conceito de ricos, já de si duvidoso, e desconstruir a falaciosa afirmação de que eram apenas os filhos dos tais ricos que frequentavam a universidade. Quererá isto dizer que os pais de Odete Santos, Álvaro Cunhal, Francisco Louçã e companhia seriam todos eles ricos? Não tenho conhecimento de causa quanto a estes, mas na actualidade, pelo que vejo de muitos comunistas e meninos e meninas da esquerda-caviar, de facto, por padrões "louçanianos" com certeza que são ricos. Continuamos impávidos e serenos a assistir a este pobre espectáculo das habituais incongruências próprias do pensamento incoerente e estagnado desde há dois séculos da nossa esquerda, mas também não é propriamente sobre isto que queria falar. 

 

Atente-se na segunda parte da ideia de Louçã: agora que todos conseguem chegar à universidade. Pois o problema é mesmo esse. Recupero aqui parte do que escrevi a convite do Pedro Correia para o Corta-fitas, há pouco mais de um ano:

 

Grande parte das preocupações do Presidente da República prendem-se com o desconhecimento ou ignorância em relação ao que foi o 25 de Abril e os seus intervenientes, o que é desde já explicável pela gritante degradação do sistema de ensino, desde a chamada Revolução dos Cravos. A III República, naturalmente avessa à palavra elite, tem simultaneamente apregoado uma alegada igualdade, não fugindo o sistema de ensino a esse estigma. Não só se têm nivelado por baixo as exigências a alunos e professores, como os programas e manuais escolares se têm tornado cada vez mais básicos à medida que o tempo passa, o que é rapidamente verificável passando os olhos pelos livros de História do ensino básico, onde não mais de oito ou nove páginas se dedicam ao regime de Salazar e à transição democrática, sem falar que na maior parte dos anos lectivos nem sequer chegam a ser leccionadas tais matérias. Além do mais, a provinciana síndrome de um país de "doutores e engenheiros", traduzida pela exacerbada primazia dada às ditas ciências duras, a Medicina, as Engenharias, a Economia, a Gestão e o Direito, tem retirado espaço e tempo às ciências humanas, nomeadamente às traves mestras dessas, a História e a Filosofia, o que aliado à lógica de decorar por detrimento de pensar, numa sociedade largamente massificada em todos os sentidos, resulta no estado de coisas que está à vista de todos.

 

Diz a autora de uma tese de doutoramento sobre o financiamento do ensino superior, Luísa Cerdeira, que "O facto das famílias pagarem mais que o Estado e o baixo valor do apoio social, são as duas faces desta moeda, que acaba por ter como resultado um ensino superior elitista que reproduz as desigualdade sociais, conclui a economista." Isto não é um ensino superior elitista a não ser que para a autora o conceito de elite considere apenas a riqueza monetária dos indivíduos. Sendo assim temos um ensino superior plutocrático, não elitista no sentido que a palavra elite deveria tomar, i.e., o ensino superior deveria ser elitista e aristocrático no sentido técnico, de premiar os melhores alunos. O ensino superior não deveria estar ao alcance de todos. Não, não somos todos iguais. Não, não nascemos todos iguais. Não, não temos todos as mesmas capacidades. Uns são mais inteligentes que outros. Mas em Portugal o mito jacobino da igualdade aplicado ao ensino resultou numa massificação que se materializa quotidianamente na falta de exigência. Isto vai ser prejudicial ao país a longo prazo e nem quero imaginar como serão as próximas gerações de governantes (ou por outra, até tenho uma boa ideia sobre uns quantos...é assustador).

 

Como é que é possível que se termine de vez com a tentativa de melhorar as capacidades dos portugueses ao nível da sua própria língua se hoje em dia na escola primária todas as crianças têm um Magalhães? Ainda não sabem ler ou escrever correctamente mas isso também não interessa para nada.

 

Como é que é possível que toda e qualquer pessoa não chumbe e consiga terminar o 9.º ano faltando a quase todas as aulas e ainda receba como presente exames ridiculamente fáceis? Claro, é preciso garantir que estatísticas favoráveis ao governo são apresentadas a Bruxelas e à OCDE.

 

Como é que é possível que os exames nacionais do 12.º ano se tenham tornado também eles ridiculamente fáceis? E quanto a estes, não se augura nada de bom agora que se sabe que a escolaridade obrigatória vai abranger o secundário. É como nos diz o Miguel Vaz:

 

Agora, um Ministério da Educação que trocou o Ensino pelas estatísticas anunciou como medida emblemática a extensão da escolaridade obrigatória até ao 12º ano. Os opinadores e comentadores aplaudiram. A oposição também. Mas o que representa afinal esta medida? Na prática, significa alargar até ao 12º os ridículos níveis de exigência do ensino básico. Volta-se a nivelar por baixo, em nome das estatísticas. Em breve, os jovens chegarão à universidade a saber ainda menos do que os alunos que por estes dias fazem os seus exames nacionais. Seremos um país de doutores que não sabem escrever.

 

E eis que chegamos à universidade. É indescritível. Desde pessoas que fazem uma licenciatura inteira a cabular, passando por pessoas que não sabem escrever português, outras que não conseguem interpretar, analisar e relacionar pelo menos duas ideias, pessoas que terminam uma licenciatura sem saber fazer notas de rodapé (custa muito procurar sistema de referência de Harvard ou de Oxford na net ou olhar para trabalhos bem feitos para aprender), e todos sem excepção conseguem fazer um curso superior. Seria praticamente impossível contabilizar a quantidade de pessoas que quase poderiam ser casos clínicos de estupidez que todos os dias vejo ou conheço e que frequentam o ensino superior. Tudo em nome da igualdade, porque todos têm direito a estar no ensino superior e, portanto, desce-se o nível para que todos possam fazer a licenciatura. E agora, com a Bolonhesa, mais década menos década, até as licenciaturas serão abrangidas pela escolaridade obrigatória, o que será a derradeira conquista do processo de estupidificação do povo português.

 

E o que é que os professores foram obrigados a fazer? Deixaram de poder ser elitistas no bom sentido, acabando por ser quase moralmente forçados a passar todos os alunos, mais cedo ou mais tarde. Juntando-se a isto o método da sebenta, sabendo que tudo na universidade portuguesa se faz por manuais e sebentas, os alunos acabam por ser dispensados de ler artigos académicos, livros, autores de referência, e tornam-se meras máquinas acríticas que decoram e debitam matéria nos exames. Basta ler as sebentas, manuais e apontamentos e faz-se as cadeiras sem grande dificuldade. Premeia-se o facilitismo e desconfia-se dos que realmente gostam daquilo que estudam e querem ir mais além sendo forçados a tornar-se autodidactas e fazendo aquilo que o Professor Maltez nos diz que a licenciatura nos permite: (licença para) estudar por nós próprios.

 

Mas para quê pensar por nós próprios? Não, a maior parte dos estudantes universitários já vêm mal habituados e querem ser levados ao colo, querem precisamente que os professores debitem matéria para que possam tirar apontamentos, quando se fossem autónomos teriam capacidade para estudar a matéria que vem nos livros. Se um professor tenta dar aos seus alunos algo que vai para além dessa matéria que vem nos livros ouve-se logo alguém queixar-se que o Professor não dá matéria. E o que dizer daqueles que acham sempre que sabem tudo e depois se desiludem quando têm negativas? A culpa é do professor, claro está, e sim, mesmo sabendo que alguns professores não têm critérios ou atitudes adequadas, torna-se aborrecido ouvir tanta gente dizer que sabe tanta coisa que as recorrentes más notas só podem ser culpa do professor.

 

Ainda na terça-feira vinha uma colega minha a queixar-se no Diário Económico sobre o facto da qualidade de ensino não corresponder ao valor que pagamos de propinas. Sim custa a todos pagar propinas tão elevadas. E porque é que as universidades tiveram necessidade de as impor? Porque foram descapitalizadas e ainda ninguém teve coragem de enfrentar a questão da insustentabilidade de manter tantas universidades públicas e um sem número de cursos iguais com milhares de pessoas que não têm inteligência nem capacidades para frequentar uma universidade a sério, realmente elitista, exigente e competitiva. Não é possível às universidades públicas manter tantos alunos sem aumentar as propinas quando o orçamento de estado tem vindo a reduzir a dotação financeira para o ensino superior público. Se tivéssemos um ensino superior exigente e que premiasse os melhores, porventura nem seria necessário haver lugar ao pagamento de propinas. Como há que garantir a igualdade e se nivela todos por baixo, os bons alunos são obrigados a ter que ver o nível de exigência inadequado às suas capacidades. Como é que as universidade poderiam não aumentar as propinas se somos obrigados a ter nas universidades estudantes que acham que a II Guerra Mundial foi no século XVIII, que no sistema de castas indiano os párias são as pessoas que tratam das vacas,  outros que dizem a plenos pulmões nas aulas baboseiras como "a religião deveria vir no Bilhete de Identidade", e tantas outras pérolas de que agora não me recordo. Ou ainda uma que o Nuno Castelo-Branco me contava aqui há tempos, numa turma de 12.º ano a que deu aulas de História, quando falava da Restauração e os alunos muito abismados não sabiam do que se tratava, acabando um por responder que não percebia do que o professor estava a falar porque a restauração é um sector da indústria hoteleira. E o que é que acontecerá no longo prazo? O que Paulo Soares Pinho escreveu ontem no Diário Económico:

 

O carácter excessivamente elementar de um exame tem uma importante consequência: não permite evidenciar os bons alunos, os únicos que conseguem lidar com as questões mais complexas. Consequentemente, nivela todos os estudantes por baixo. Para os maus alunos passa um sinal de que a vida se desfará em facilíssimos e que não é preciso trabalhar arduamente para obter resultados e é a prova de que nada tem de ser levado a sério, o que terá consequências na forma como encararão a sua futura vida profissional.

O facilíssimo desmotiva os bons alunos, os quais se queixam de o ministério andar a brincar com o trabalho deles e o dos professores, retirando-lhes, ainda, o incentivo a trabalhar, a empenhar-se em aprender e a levar a sério a sua actividade. Numa fase da vida importante para a definição da sua personalidade, passa-lhes a mensagem de que não existe diferença entre o muito bom e o suficiente e de que o trabalho extra não tem recompensa.

Estes bons alunos são os potenciais futuros cientistas, investigadores, tecnólogos, gestores, médicos, etc. São a futura elite do país. É deles que se espera, através das suas capacidades científica, inovadora, empreendedora e profissional, a criação de crescimento económico capaz de propulsionar o país e pagar as facturas do TGV, das SCUT e demais galopante dívida pública gerada no momento actual. É deles, da sua capacidade criadora, que a minha geração vai depender para ter algo que se pareça com uma pensão. Ao avaliá-los através de provas que os desincentivam a trabalhar, a tomar riscos, a compreender os benefícios de se aperfeiçoar e ser melhor, não estimulamos a fundo a as suas capacidades. Por isso, a actual política facilitista, com objectivos puramente propagandísticos, não se limita a acentuar a continuada destruição do papel do ensino secundário. Contribui para agravar, ainda mais, o futuro do país.

 

Infelizmente, ao contrário do que Sir Karl Popper defendia, que o objectivo da democracia é o de elevar a qualidade do ensino, neste nosso Portugal a democracia fez precisamente o contrário.

 

Resta-me terminar da mesma forma com que concluí um post sobre a Bolonhesa aqui há uns meses:

 

Se já antes era o que era em que qualquer pessoa conseguia fazer um curso superior (doidos, bêbados, com Q.I.s que devem ser negativos, que não conseguem juntar duas palavras correctamente etc) então agora ainda é mais fácil, em nome de um qualquer paradigma da igualdade. Ainda hoje em conversa com uma amiga veio-me à ideia que deveria existir uma forma de diferenciação meritocrática, algo como por exemplo um sistema que no fim do 1.º ano (*) colocasse os melhores alunos  numa espécie de turma à parte e que elevasse o nível de conhecimentos leccionados e de exigência em relação ao normal, com um foco mais acentuado na vertente de investigação.
 
Mas isso é elitismo e é politicamente incorrecto. Enfim, viva a igualdade e a massificação que isto da meritocracia e diferenciação é bom mas é para os outros que não percebem nada destas coisas mas que são os países mais desenvolvidos do mundo. Até porque se muitas autoridades cá do burgo propagandeiam discursivamente a meritocracia, neste nosso Portugal como em tantas outras coisas, na prática a teoria é outra.

 

(*) 1.º ano da universidade, obviamente, não do ensino primário. Aquando do outro post algumas pessoas julgaram que eu estava a falar da primária.

publicado às 01:53






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