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Entendamo-nos: o drama do desemprego é, em todas e quaisquer circunstâncias, um flagelo que corrói vidas, aspirações, vontades, anseios, e, acima de tudo, o bem comum. Quanto a isto não há, creio eu, a menor dúvida, a não ser, claro, para os cínicos que dedicam as suas pobres vidas à indiferença canhestra perante a sorte do outro. Dito isto, é, absolutamente, inacreditável, e friso bem a palavra inacreditável, o que se passou, hoje, no Pingo Doce da Rua 1.º de Dezembro, em Lisboa. Em primeiro lugar, é, no mínimo, ridículo organizar um protesto em frente de um estabelecimento comercial, no caso, um estabelecimento pertencente a um grande grupo económico, tendo como fito exigir um cabaz de produtos. Como era de esperar, dado que não houve da parte do Pingo Doce qualquer intenção de proceder em conformidade com as exigências dos organizadores do protesto, o pedido foi liminarmente recusado, o que, em seguida, motivou um ror de queixas, escrevinhadas no tão famigerado livro de reclamações, cujo cerne residia na recusa por banda dos responsáveis do Pingo Doce em fornecer os alimentos requeridos. Em segundo lugar, este protesto demonstra que, infelizmente, a mentalidade das gentes portuguesas, ou, de algumas dessas gentes, continua a ser, bastamente, reaccionária. Reparem que o argumentário permanece o mesmo: o senhor Soares dos Santos é rico, foge aos impostos, finge a caridade, e lucra com as compras dos clientes. O último argumento é, então, um must. Onde já se viu um empresário, ainda por cima riquíssimo e com fortuna investida na Holanda, ter lucro? Bem vêem que, se nós, portugueses, admitirmos tal coisa ficaremos, segundo a visão desta seita de retardados políticos, repletos de vigaristas sociais. Em resumo, um problema tão sério como o desemprego é, por pura politiquice, totalmente mistificado, servindo, desse modo, agendas obscurantistas, que não têm outro objectivo a não ser fazer Portugal retroceder a um PREC conjurado por alpinistas sociais oitocentistas. É pena, pois, em boa verdade, quem perde com tudo isto são, infelizmente, os desempregados, sobretudo aqueles que não têm voz e que vivem, dia-a-dia, num desespero lancinante em busca de uma migalha de pão ou de um emprego mal pago. É, de facto, lamentável.
Fixem bem esta data: 8 de Maio de 2013. Porquê? Porque, hoje, nesta santa e pluviosa quarta-feira farei algo inédito: emularei o Professor Marcelo e darei aqui, neste blogue, em directo e a cores, uma pequena aula sobre o conceito de confisco. Vá, não se assustem, prometo que serei breve e objectivo. Vejamos então o que significa o substantivo confisco. Primeiro que tudo, e sem querer ser presunçoso, terei de retroceder à etimologia do termo em questão, que, como se sabe, deriva do latim "confiscato". O que significa "confiscato"? Algo muito simples: "juntar-se ao tesouro". Ou seja, há dois mil anos atrás, numa galáxia não muito distante, os romanos já tratavam desta modalidade de usurpação do património pessoal, conhecida universalmente por "confiscato". Como sempre, os filhos de Rómulo e Remo souberam antecipar, através da conceptualização jurídica, aquilo que só mais tarde seria sancionado pela lei positiva. Deixando agora de lado a etimologia com laivos latinos do termo confisco, vamos, pois, ao osso do termo em questão. Que significa, então, confisco? O significado é muito singelo e prende-se exclusivamente com isto: a autoridade pública ou, melhor dito, o Leviatã - Hobbes até na designação dos seus rebentos holísticos era um génio - expropria, sem qualquer compensação, repito, sem qualquer compensação, a propriedade de uma determinada pessoa, singular ou colectiva. Uma espécie de sanção vindicada pelo poder público ilimitado. O tributo é, neste sentido, um instrumento primordial e privilegiado. Actua de um modo indirecto e, por vezes, anestésico, mas os seus efeitos são extremamente deletérios. Vem esta prelecção a propósito da última cartada enunciada pela Comissão Europeia. Refiro-me, em concreto, ao anúncio de que Bruxelas admite que os depósitos acima de 100 000 euros não estão a salvo de um hipotético programa de resgate. Mais: o monstro burocrático presidido pela eminência ex-maoísta admite, inclusive, que esses depósitos poderão ser reduzidos ou convertidos em acções. Não vale a pena bater no ceguinho. Tenho escrito, em diversas circunstâncias, que esta União Europeia não presta. Mas, sendo realista, estes avisos de pouco ou nada valem, ainda para mais quando são ditos por blogueiros cuja audiência é bem limitada. A Europa resolveu, e quando digo resolveu refiro-me unicamente às suas lideranças tresloucadas, embarcar numa aventura por mares incógnitos. A democracia já pouco ou nada interessa aos mandarins eurocráticos. A liberdade vai sobrevivendo, por enquanto. Sim, por enquanto, pois, não se admirem se, a breve trecho, a liberdade der lugar ao liberticídio. A propriedade está em perfeitos escombros. Em suma, aquilo que fez, e que faz, em grande medida, a matriz identitária da Europa, encontra-se em total erosão, sem que ninguém de vulto se insurja contra este rumo suicida. Só isso explica que uma medida deste jaez passe incólume no tribunal da opinião pública. Opinião essa, que de pública tem muito pouco. Só em países com instituições muito frágeis é que soluções destas são discutidas na mais exasperante das normalidades. Lamento que assim seja. Lamento que a Europa se reduza a um bando de loucos que só pensam em poder, imagem e dinheiro. Lamento que estejamos entregues a esta gente. Lamento, lamento e lamento.
É impressão minha ou as recentes alterações anunciadas em sede de IMI desrespeitam claramente o comando constitucional vertido no art. 62º da CRP? Não há ninguém que verbere este assalto implacável à propriedade privada? Portugal nunca foi propriamente um país amigo do investimento e da propriedade, mas isto ultrapassa todos os limites. Ver supostos liberais a levarem à prática o célebre adágio proudhoniano é o fim da linha. João Duque tem razão: este Governo, na sua casmurrice interminável, é mais esquerdista que bloquistas e comunistas.
No seguimento do meu post de ontem, e das discussões geradas na caixa de comentários daquele e de um post do André Azevedo Alves em referência ao meu (que muito agradeço) n'O Insurgente, deixo à apreciação algumas passagens de Liberalism in the Classical Tradition, de Ludwig von Mises:
«There is, to be sure, a sect that believes that one could quite safely dispense with every form of compulsion and base society entirely on the voluntary observance of the moral code. The anarchists consider state, law, and government as superfluous institutions in a social order that would really serve the good of all, and not just the special interests of a privileged few. Only because the present social order is based on private ownership of the means of production is it necessary to resort to compulsion and coercion in its defense. If private property were abolished, then everyone, without exception, would spontaneously observe the rules demanded by social cooperation.
It has already been pointed out that this doctrine is mistaken in so far as it concerns the character of private ownership of the means of production. But even apart from this, it is altogether untenable. The anarchist, rightly enough, does not deny that every form of human cooperation in a society based on the division of labor demands the observance of some rules of conduct that are not always agreeable to the individual, since they impose on him a sacrifice, only temporary, it is true, but, for all that, at least for the moment, painful. But the anarchist is mistaken in assuming that everyone, without exception, will be willing to observe these rules voluntarily. There are dyspeptics who, though they know very well that indulgence in a certain food will, after a short time, cause them severe, even scarcely bearable pains, are nevertheless unable to forgo the enjoyment of the delectable dish. Now the interrelationships of life in society are not as easy to trace as the physiological effects of a food, nor do the consequences follow so quickly and, above all, so palpably for the evildoer. Can it, then, be assumed, without falling completely into absurdity, that, in spite of all this, every individual in an anarchist society will have greater foresight and will power than a gluttonous dyspeptic? In an anarchist society is the possibility entirely to be excluded that someone may negligently throw away a lighted match and start a fire or, in a fit of anger, jealousy, or revenge, inflict injury on his fellow man? Anarchism misunderstands the real nature of man. It would be practicable only in a world of angels and saints.
Liberalism is not anarchism, nor has it anything whatsoever to do with anarchism. The liberal understands quite clearly that without resort to compulsion, the existence of society would be endangered and that behind the rules of conduct whose observance is necessary to assure peaceful human cooperation must stand the threat of force if the whole edifice of society is not to be continually at the mercy of any one of its members. One must be in a position to compel the person who will not respect the lives, health, personal freedom, or private property of others to acquiesce in the rules of life in society. This is the function that the liberal doctrine assigns to the state: the protection of property, liberty, and peace.
(…)
It is incorrect to represent the attitude of liberalism toward the state by saying that it wishes to restrict the latter's sphere of possible activity or that it abhors, in principle, all activity on the part of the state in relation to economic life. Such an interpretation is altogether out of the question. The stand that liberalism takes in regard to the problem of the function of the state is the necessary consequence of its advocacy of private ownership of the means of production. If one is in favor of the latter, one cannot, of course, also be in favor of communal ownership of the means of production, i.e., of placing them at the disposition of the government rather than of individual owners. Thus, the advocacy of private ownership of the means of production already implies a very severe circumscription of the functions assigned to the state.
The socialists are sometimes wont to reproach liberalism with a lack of consistency, It is, they maintain, illogical to restrict the activity of the state in the economic sphere exclusively to the protection of property. It is difficult to see why, if the state is not to remain completely neutral, its intervention has to be limited to protecting the rights of property owners. This reproach would be justified only if the opposition of liberalism to all governmental activity in the economic sphere going beyond the protection of property stemmed from an aversion in principle against any activity on the part of the state. But that is by no means the case. The reason why liberalism opposes a further extension of the sphere of governmental activity is precisely that this would, in effect, abolish private ownership of the means of production. And in private property the liberal sees the principle most suitable for the organization of man's life in society.
Liberalism is therefore far from disputing the necessity of a machinery of state, a system of law, and a government. It is a grave misunderstanding to associate it in any way with the idea of anarchism. For the liberal, the state is an absolute necessity, since the most important tasks are incumbent upon it: the protection not only of private property, but also of peace, for in the absence of the latter the full benefits of private property cannot be reaped.»
O meu post anterior, desta série, provocou uma interessante resposta do Pedro. De salientar, ainda, a recomendação do Manuel sobre este post onde Rui Botelho Rodrigues considera Friedman como um autor que os liberais deveriam esquecer. Deste último, destaco a afirmação de que é aliás possível reconhecer o seu papel como «porta de entrada» para a ideologia liberal. Mas, uma vez passada a porta, Friedman deve ser esquecido e renegado, porque no fundamental foi um obstáculo à, senão um inimigo da, liberdade, tanto nas suas acções como nas suas palavras.
Na verdade, para o ensaio que elaborei, considerei apenas o capítulo de abertura de Capitalism and Freedom, intitulado "The relation between economic freedom and political freedom". E este é, na minha opinião, um texto que deveria ser lido por todos os liberais, precisamente como porta de entrada para o liberalismo.
Procurarei, de forma breve, aprofundar a análise respondendo aos pontos levantados pelo Pedro, recorrendo às interpretações e conclusões a que cheguei no já referido ensaio.
Em primeiro lugar, quanto à distinção entre a liberdade económica ou individual, a conclusão a que cheguei, partindo dos ensinamentos de Friedman, Hayek e John Gray, é que a liberdade individual assenta em dois tipos de liberdade: a económica e a política, sendo a segunda um resultado da primeira. Hayek assinala-o ao afirmar que “the subsequent elaboration of a consistent argument in favor of economic freedom was the outcome of a free growth of economic activity which had been undesigned and unforeseen by-product of political freedom”1. Milton Friedman sintetiza a mesma ideia, dizendo-nos que “the kind of organization that provides economic freedom directly, namely, competitive capitalism, also promotes political freedom because it separates economic power from political power an in this way enables one to offset the other”2.
A propriedade privada é, assim, um elemento fundamental para alcançar a liberdade individual, tal como Locke já havia teorizado, e como Gray assinala ao considerá-la como “an institutional vehicle for decentralized decision-making”3 em estreita ligação com a capacidade de um indivíduo dispor de si próprio, das suas capacidades e talentos. Isto só acontece, em termos económicos, num sistema de mercado, em que a coordenação sobre as actividades económicas não é coerciva, e, em termos políticos, num sistema liberal, em que o Governo seja limitado, assegure o rule of law, e respeite as liberdades individuais.
É por isso que, não pode existir uma autoridade centralizada. Friedman, Hayek, Popper, Berlin e tantos outros, tiveram como experiências formativas das suas vidas (na expressão de George Soros), os totalitarismos nazi e/ou comunista. Neste tipo de sistemas sociais, o Estado engloba todas as áreas da vivência individual, sendo o principal agente/jogador no sistema económico, que lhe está completamente subjugado. Julgo ser este tipo de entidade que se considerada uma autoridade centralizada, que pelas suas características se impõe e coarcta a liberdade dos indivíduos. O Pedro considera que não pode haver liberdade sem autoridade. Eu, porém, prefiro pensar que não pode haver liberdade sem responsabilidade. Além do mais, o entendimento do Pedro assemelha-se ao de Rousseau, que n'O Contrato Social diz explicitamente que o Estado é uma entidade abstracta e colectiva que tem como instrumento o Governo, i.e., “um corpo intermédio estabelecido entre os sujeitos e o soberano por mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política”4 que resulta de um acto do povo enquanto soberano5.
Naturalmente, para que se assegure a liberdade individual, é imperativo que a coerção seja minimizada, pelo que “o Estado só deve utilizar a força quando tal seja necessário para evitar que os indivíduos se coajam uns aos outros”6. Assim, não deve caber ao Governo a manutenção da liberdade, como defendia Rousseau, até porque tal acepção é uma contradição. O Governo constitui-se precisamente para constranger a liberdade de que os indivíduos gozam no estado de natureza mas, contudo, para assegurar que mantêm direitos e liberdades inalienáveis e se respeitam uns aos outros.
Esta interpretação está também presente no clássico ensaio de Isaiah Berlin, Two Concepts of Liberty, onde discorre sobre as concepções de liberdade negativa e liberdade positiva. Entende-se que existem duas esferas distintas, uma pública e outra privada, entre as quais deve ser demarcada uma fronteira, permanecendo inviolável uma certa área mínima de liberdade individual que nos permita prosseguir e conceber diversos fins como nos aprouver. No entanto, ao demarcarmos essa fronteira, estamos na realidade a constranger a liberdade, a sacrificar uma porção desta para preservar o resto, já que “we cannot remain absolutely free, and must give up some of our liberty to preserve the rest”7 – o que Rousseau se recusa a fazer e o levará à escravizante abstracção do bem comum e da vontade geral.
Robert Nozick, na mesma linha de Hayek, defendeu que o único modo legítimo de organização dos recursos materiais e humanos é o que resulta das actividades dos indivíduos em trocas competitivas uns com os outros. Em decorrência desta legitimidade, as únicas instituições políticas justificáveis são as que actuam com o objectivo de assegurar um enquadramento ou ambiente de liberdade, ou seja, as que contribuem para a manutenção da autonomia e dos direitos dos indivíduos8.
No seguimento, não creio que Friedman entre em contradição, como refere o Pedro. Parece-me é que, no fundo, é necessária uma clarificação discursiva do entendimento desse e da minha parte - no que, humildemente, posso interpretar do seu pensamento. Nenhum liberal prescinde do governo ou defende a extinção deste. Partindo do pensamento de Locke e de Montesquieu, autores fundacionais do liberalismo, há uma convergência por parte dos liberais quanto ao cepticismo em relação ao exercício do poder, apesar de encararem o governo como um mal necessário, pelo que se preocupam essencialmente em arquitectar checks and balances que actuem como forma de difusão do poder, salvaguardando a liberdade individual da coerção por parte de terceiros, em especial do próprio Estado.
Não se prescinde do governo. Prescinde-se, isso sim, da sua intervenção na economia. É fundamental o seu papel regulador, precisamente para assegurar o tal enquadramento ou ambiente de liberdade, já que é ao Governo que compete determinar as regras do jogo. Claro que, como refere o Pedro, as regras podem mudar. E aqui, só me posso socorrer da teoria do conhecimento de Karl Popper e também do princípio da ignorância constitutiva do ser humano, de Hayek . Sendo o nosso conhecimento inerentemente imperfeito e assentando num método dedutivo em que conjecturas e refutações servem para falsificar teorias, num diálogo que só é possível numa sociedade aberta, então é apenas legítimo que as regras mudem. Se o Estado desempenhar correctamente o papel de regulador e não de interventor na economia, prevenindo e corrigindo os desvios à liberdade como os monopólios e oligopólios, o mercado naturalmente será verdadeiramente livre.
Caso contrário, se o Estado tiver um papel determinante na organização dos recursos económicos, há um poder coercivo pendente a todo o momento sobre todos os actores - e tal situação não compreende um mercado livre. Saliento ainda que, concordando com o Pedro, a coerção não é um exclusivo do Governo. Aliás, os próprios indíviduos se coagem. É por isso mesmo que o Governo tem como uma das suas principais atribuições assegurar que os indivíduos não interferem nas esferas de liberdade uns dos outros, sendo este, de facto, um dos principais fundamentos na sua origem (pelo menos para o liberalismo de matriz anglo-saxónica).
Por último, pego no início do post do Pedro, quando refere que o Estado deve ser uma autoridade a ter em conta pelo mercado, no seu aspecto jurídico e constitucional. Estes, por sua vez, devem exercer a sua autoridade tendo como fim a defesa da soberania e dos princípios da moral cristã-católica e não quimeras igualitárias nem papel redistributivo da riqueza.
Peço desde já desculpa ao Pedro, pelo atrevimento, mas espero que me permitas a inversão do argumento. Se o Estado tem como fim a defesa da soberania e dos princípios da moral cristã-católica, presidindo estas ao seu edifício jurídico e constitucional, e se o mercado deve ter em conta a autoridade do Estado, significa, portanto, que o mercado deve ter um determinado quadro moral e fins fixados de acordo com este.
E se assim é, estou em total desacordo. Em primeiro lugar porque deve caber aos indivíduos a fixação dos fins que bem entendam que devem prosseguir, e não ao Estado. Se for o Estado a fixar os fins, esse é apenas um dos muitos caminhos para a servidão. Em segundo lugar porque da liberdade individual faz parte a liberdade de escolher os quadros éticos que se deseja prosseguir, bem como religiosos. Em terceiro lugar, porque não se devem estender concepções éticas ou morais ao mercado. Por ser amoral, e não imoral, é que o mercado é tão eficiente a criar riqueza, como assinala George Soros, numa das suas cinco palestras na Central European University, intitulada "Capitalismo vs. Sociedade aberta" (disponível em livro, editado pela Almedina, e também online).
Nos mercados em concreto, os actores são considerados individualmente, tendo cada qual o seu quadro ético e os seus fins. Numa realidade económica globalizada em que os mercados e os sistemas económicos e financeiros estão extremamente interligados, integrados, entrelaçados, tornando-se uma realidade demasiado complexa para qualquer ser humano conseguir compreender na sua totalidade, há, certamente, valores e quadros morais diversificados que servem de referência aos indivíduos. Contudo, não são estes valores, que decorrem precisamente da esfera da ética, e portanto, da esfera política e/ou religiosa, que estão em questão num mercado - a concepção de interesse nacional, utilizada para justificar a utilização da golden share pelo governo socialista é um exemplo paradigmático do quão desastrosa pode ser a intervenção estatal no mercado assente em determinadas concepções valorativas; ainda para mais, neste caso, tratando-se de uma conceptualização confrangedora, já que, como aqui salientei, não havendo Conceito Estratégico Nacional, o interesse nacional se torna uma abstracção de carácter demasiado volátil, convidando a utilizações e manipulações indevidas, que desvirtuam o próprio conceito.
Como Soros aponta, "os mercados são apropriados apenas para as escolhas individuais, e não para as decisões sociais. Permitem que os participantes individuais se dediquem à livre troca, mas não foram concebidos para o exercício de escolhas sociais, como o estabelecimento de regras que devem reger a sociedade ou governar o mecanismo do mercado. Isto pertence à esfera da política". E o inverso é também verdade, ou seja, alargar a concepção do mercado livre à política é um erro, pois ao tornar a política amoral, descaracteriza-a e coloca-a em causa, até porque não há qualquer possibilidade de neutralidade ética nesta esfera. Por isso, o mesmo autor aponta que "Estender a ideia de um mercado livre, que se governa e corrige a si próprio à esfera política é profundamente ilusório, pois retira as considerações éticas da política, sem as quais não pode funcionar correctamente"9.
Notas
1 - Cfr. F. A. Hayek, The Road to Serfdom: text and documents – The Definitive Edition, Bruce Caldwell (ed.), Chicago, The University of Chicago Press, 2007, p. 69.
2 - Cfr. Milton Friedman, Capitalism and Freedom, Chicago, The University of Chicago Press, 2002, p. 9.
3 - Cfr. John Gray, Liberalism, 2.ª Edição, Minneapolis, The University of Minnesota Press, 1995, p 62.
4 - Cfr. Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2003, p. 62.
5 - Cfr Idem, ibidem, p. 100.
6 - Cfr. Manuel Fontaine Campos, “ Friedrich A. Hayek: Liberdade e Ordem Espontânea”, in João Carlos Espada e João Cardoso Rosas, Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução, Lisboa, Bertrand, 2004, p. 37.
7 - Cfr. Isaiah Berlin, “Two concepts of Liberty” in Isaiah Berlin, Four Essays on Liberty, Oxford, Oxford University Press, 1969. Disponível online em http://www.nyu.edu/projects/nissenbaum/papers/twoconcepts.pdf. Consultado em 01/07/10. P. 5.
8 - Cfr. David Held, Models of Democracy, Cambridge, Polity Press, 2008, p. 202.
9 - Cfr. George Soros, As Palestras de George Soros na Central European University, Coimbra, Almedina, 2010, p. 92.
Aqui ficam uns breves trechos de um um ensaio que recentemente elaborei, que me parecem bem apropriados quando se equaciona a inusitada intromissão estatal de ontem:
A grande vantagem é que o mercado concretiza a liberdade económica de forma impessoal e sem a necessidade de uma autoridade centralizada, dando aos indivíduos a possibilidade de escolherem os seus fins e não os obrigando a prosseguir os que um determinado grupo considere que eles querem ou devem querer[1].
(...)
Importa, no entanto, ressalvar que o mercado não elimina o Governo, até porque, como consideram os liberais, este é um instrumento necessário para determinar e garantir as “regras do jogo”. Assentando a liberdade política na liberdade económica, a preservação da primeira requer, porém, a eliminação de elevadas concentrações de poder e a distribuição do poder que não puder ser eliminado – trata-se da clássica separação de poderes e dos checks and balances. Ao retirar ao Governo a organização da actividade económica, o mercado elimina outra fonte de coerção, permitindo que o sistema económico seja um contrapeso ao poder político e não um reforço deste.
[1] Cfr. Milton Friedman, Capitalism and Freedom, Chicago, The University of Chicago Press, 2002, p. 15.
Enfim, lá vamos percorrendo o Caminho para a Servidão. O socialismo é uma coisa tão bonita. No fundo, já Rui Albuquerque resumiu bem a questão: Depois do episódio da golden share da PT, será que alguém duvida ainda que vivemos num regime de mercado puro e duro, e que a culpa do estado a que chegámos é do impiedoso neo-liberalismo em que temos vivido nas últimas décadas?
Though individually the Romans were exceedingly economical and careful in the management of their private property, the state as such was extravagant and careless with the state revenue. It was found impossible to protect the public property from being plundered by private individuals, and the feeling of powerlessness resulted in reckless indifference. It was felt that revenues which could not be preserved intact and devoted to the common good were of no value to the state and might as well be abandoned.
Wilhem Ihne, História de Roma
Explica uma data de coisas, não explica? Deve ser uma cena latina...