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Foram os capitães de abril que tornaram possível a revolução de 1974. O seu descontentamento em relação ao "processo colonial" terá sido uma das razões que energizou reinvindicações mais profundas, nomeadamente o fim do Antigo Regime e a transição para um regime democrático em Portugal. Em poucas palavras, certamente insuficientes, resume-se a isto. Volvidos 50 anos, escutamos rumores de que os militares iniciarão ações de protesto após as eleições de 10 de março. Existem elementos de analogia política, económica e social que possam equiparar 1974 a 2024? Sim e não. Por um lado, a deteriorização das condições de vida dos portugueses é um factor a ter em conta — o povo não se encontra bem. De que servem todas as liberdades se as garantias no acesso à habitação e a cuidados de saúde são severamente postas em causa? Por outro lado, Portugal já não é um império colonial, mas foi colonizado. Primeiro pelas políticas definidas em Bruxelas e ainda pela febre alta do turismo que aprimorou Portugal para bem receber os estrangeiros endinheirados, deixando na sarjeta os cidadãos nacionais. No meio de este turbilhão de desavenças e desalinhamentos na capacidade de definir uma estratégia de progresso para Portugal, os militares também foram deixados na beira da estrada. Existe assim um elemento simbólico poderoso que emana da intenção dos militares, o protesto, a manifestação pensada para suceder às eleições de 10 de março. A caminho das comemorações de meio século sobre o 25 de abril de 1974, a voz dos militares não pode ser ignorada. Foram os militares de 1974 que interpretaram holisticamente o fenómeno do descalabro societário. Foram os militares que corporizaram a mudança de regime político. Foram os militares que sintetizaram e expressaram o mal estar de professores, de agricultores e de todos os trabalhadores de Portugal. As revoluções não vêm contempladas em constituições ou regulamentos, mas podem eclodir quando certos limites existenciais são postos em causa. Para bem e para mal, a reflexão que se exige em relação aos últimos cinquenta anos e às escolhas deliberadas de políticos deve ser realizada sem constrangimentos ideológicos ou sentidos de revanchismo. É uma questão de sanidade política e de visão prospectiva para um país. Capitães não há muitos, mas também podem ser de março.
Os professores vêm de muito longe. A sua classe será porventura a que mais se sujeita a surrealidades políticas e logísticas. Não vale a pena mencionar o drama sustentado da colocação de professores ou a inadequação de salários. As escolas são as ETAR da matriz cultural, do nível sócio-económico do país. Tudo o que de ruim é gerado em casa sai porta fora e aterra na sala de aula. Os professores não leccionam apenas disciplinas. Apanham as maleitas todas; a falta de educação dos alunos, os vícios de comportamento enunciados em casa pelos pais e os insultos descabidos. Enfim, poderemos concordar que têm sido o saco para esmurrar, a cuspideira do barbeiro, a casa de banho pública manchada pela urina canina. Ser professor não acaba ali ao último toque. Os docentes acartam às costas papelada para rever, testes para corrigir, documentos para conferir e, acima de tudo, enormes dores de cabeça. Falam de calmantes e diazepan? Aposto que são os professores que mais consomem desses comprimidos. Assistimos hoje à continuidade, ao mesmo paradigma, e por extensão, ao mesmo grau de desagrado, de insatisfação, de ameaça à integridade física e mental dos professores. Quando António Costa diz que não tem onde ir buscar 650 milhões de euros adicionais para repor os quase dez anos de castigo da classe docente, corrobora toda uma abordagem negativa. Valida o executivo de Passos Coelho, e se quisermos, de todos eles, de António Guterres a Cavaco Silva. Não houve, desde o Portugal democrático (da educação universal) até aos dias de hoje, uma abordagem definitiva, integral e trans-ideológica. Foram sobretudo os socialistas, parentes das confederações e sindicatos, que fizeram da classe docente gato-sapato, usando o seu lastro para ir e vir nas demandas, eleger deputados e ganhar votos. Os professores por seu turno, não têm onde agarrar, e lá aparecem uns Nogueiras e pelo menos dois Carlos, para cantar da ardósia penada um conjunto de estrofes de ocasião. O metódo negocial que praticam é deveras estranho, fragmentado. Às vezes são as colocações o prato do dia, mas na época seguinte já é o dinheiro "cativado" por regimes mais austeros. Francamente não entendo esta lista de supermercado às pinguinhas. Se é para partir a loiça toda e começar de novo, então eu exigiria uma revolução total com destino final. Mas não. Os sindicalistas usam outra abordagem. Uma sequência de protestos como se o problema não fosse curricular, integral. Um apagão completo, um reset - de tudo ou nada. Greve absoluta.
Acabo de regressar da manifestação humana, de homens e mulheres, despidos de ideologia ou partidos políticos, que aconteceu na Praça do Comércio a propósito da falência ética e técnica do presente governo. Para cima de dez mil pessoas estiveram, solenes e dignos, em pose de indignação interior. Não foi necessária uma liderança vocal do protesto, não foram necessários acessórios partidários. As pessoas, toldadas e incrédulas pelo abandono do Estado em Pedrógão, Mação ou Arganil, vieram em paz, à civil. No entanto, o movimento silencioso e sereno foi contemplado por uma provocação com provável origem no governo e as suas filiais de geringonça. Bastou uma pequena seita de provocadores, que hasteou a bandeira da culpa do PS, PSD e CDS, para que alguns arrufos e socos mal orientados decorassem o terreiro do Paço. Os media, que vivem de sangue e emoções à flor da pele, para vender publicidade e comprar tele-espectadores, aproveitaram a pequena deixa para denominar a manifestação de "violenta". A RTP, pertença do Estado e do governo, apelidou o evento de "manifestação contra os incêndios", mas está a ser cínica e a obedecer aos patrões. O protesto foi mesmo contra a inexistência do governo, do Estado. Foi a favor da maior prerrogativa que um Estado deve defender - a protecção dos seus cidadãos. Mais nada.
fotografia: John Wolf
Jerónimo de Sousa é bom homem, educado e coerente. Enquanto discute com o corretor de apostas António Costa e modera o seu discurso para consumo interno, avança em Bruxelas com o apoio à iniciativa para financiar países de saída do Euro. A ironia do destino dessa proposta é implicar a traição do Tratado da União Europeia da parte daqueles que o sustentam. Seria como pedir a Sócrates para se acusar e decidir a sentença mais pesada. A Juventude Comunista, presente em massa no protesto contra a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) de ontem em Lisboa, porventura também terá enviado um delegado de informação ideológica à sede da NATO para propor uma forma de desembarque daquela organização. Aposto que as centenas de participantes na marcha nem sequer sabem quais são os seus princípios fundadores e a sua missão principal. Contudo, há questões mais prementes. Com que estojo de facas e garfos se lida com Putin? Talvez seja boa ideia perguntar ao comité-central do Partido Comunista Português. Afinal os estalinistas têm grande experiência na arte da dizimação de povos inteiros e no envio de detractores para a Sibéria.
Os portugueses não querem necessariamente saber do destino dos gregos. Querem ver se Portugal pode beneficiar da dinâmica política que tanto admiram, mas que tão intensamente lhes falta. Sejam honestos. Os outros que façam o que somos incapazes de fazer - esse sim, deveria ser o lema. Indignados, por onde andam a esta hora?
Há mais de uma década morava muito perto de uma filial do banco Cetelem ao Jardim da Estrela e, a dada altura, o sistema de alarme dessa dependência bancária começou a disparar na calada da noite. A primeira vez que sucedeu seriam umas 3 da manhã. Acordei sobressaltado julgando tratar-se de um assalto e liguei à esquadra da PSP mais próxima. Em pouco mais de 4 minutos lá chegou o carro da polícia e uns quantos agentes. Mas tinha sido em vão: tinha sido um alarme falso. O aviso sonoro ruidoso afinal ficou a dever-se a uma falha técnica. Ok, disse eu. Muito obrigado senhores agentes. Até à próxima. E não pensei mais no assunto. Foi uma situação pontual, julguei eu. Mas não. O problema agravou-se, e, noite sim noite sim, lá disparava o raio da sirene e começei a perceber que o problema era crónico - uma maleita definitiva do equipamento anti-roubo. No dia seguinte peguei no telefone e liguei directamente para essa filial do banco para expor a questão e solicitar uma solução célere e definitiva. Sim, senhor. Esteja descansado que vamos "já" tratar do assunto. Mas assim não foi e, já com a minha cabeça a bater mal com tantas noites mal dormidas após semanas e semanas de desprezo do banco, subi a parada do jogo e mudei a estratégia empregue. Passei directamente ao ataque com a ajuda de um Fax. Já não ia mais naquela conversa da treta já estamos a tratar do assunto. Eles queriam lá saber se a vizinhança dormia bem ou mal (os bancários não dormem na dependência, pois não?). Desse modo, compus um documento Word com 200 páginas, mas apenas com um fundo negro sobreposto sobre si umas 20 vezes (copy-paste do fundo negro sobre o fundo negro, vinte vezes. É assim que se faz) e enviei directamente do PC para a sucursal a longa "bandeira negra" (a altas horas da noite). Como podem imaginar a máquina dos faxes ficou toda borrada. O pobre aparelho lia vezes sem conta as linhas do fundo negro e não avançava, não saía do mesmo lugar. No dia seguinte os empregados bancários devem ter ficado um pouco baralhados assim que entraram na loja. Epá, o que se passa aqui com o Fax! Parece uma fralda borrada. Como eu sabia que eles não imaginavam o que se tinha passado, esperei pela próxima noite e um novo disparo de alarme para enviar uma nova "mensagem" de 100 páginas, mas desta vez com um texto com o tamanho da font no máximo: POR FAVOR QUEIRAM REPARAR IMEDIATAMENTE O VOSSO SISTEMA DE ALARME. E assim continuei mais umas noites com pequenas variações sobre o texto enviado, mas com um novo destinatário incluído na minha lista de protesto. Sim, senhor. Enviei a mesma mensagem interminável para o presidente do banco incluindo o meu nome e a minha morada. Por essa altura do campeonato não me importava nada que julgássem tratar-se de um louco (certamente não andariam longe da verdade!) e, para meu espanto, volvidos apenas dois dias, não é que me bate à porta um estafeta com uma entrega especial: um embrulho com o logotipo do banco Cetelem estampado na frente e no verso. Agradeci ao estafeta a gentileza da entrega, e já no interior do meu apartamento, abro o pacote para ser surpreendido com uma garrafa de champanhe, uma agenda e uma carta com um pedido de desculpa pelas noites mal passadas. Fiquei realmente contente com o resultado desta estória e pensei o seguinte - o que seria de mim sem estas maravilhas tecnológicas? Provavelmente as minhas noites nunca mais seriam as mesmas. Mas mais importante do que isso, descobri que um fax pode ser um aliado formidável, uma arma de protesto notável. Depois não digam que eu não dou boas ideias! Hum?
* história verídica
Entendamo-nos: o drama do desemprego é, em todas e quaisquer circunstâncias, um flagelo que corrói vidas, aspirações, vontades, anseios, e, acima de tudo, o bem comum. Quanto a isto não há, creio eu, a menor dúvida, a não ser, claro, para os cínicos que dedicam as suas pobres vidas à indiferença canhestra perante a sorte do outro. Dito isto, é, absolutamente, inacreditável, e friso bem a palavra inacreditável, o que se passou, hoje, no Pingo Doce da Rua 1.º de Dezembro, em Lisboa. Em primeiro lugar, é, no mínimo, ridículo organizar um protesto em frente de um estabelecimento comercial, no caso, um estabelecimento pertencente a um grande grupo económico, tendo como fito exigir um cabaz de produtos. Como era de esperar, dado que não houve da parte do Pingo Doce qualquer intenção de proceder em conformidade com as exigências dos organizadores do protesto, o pedido foi liminarmente recusado, o que, em seguida, motivou um ror de queixas, escrevinhadas no tão famigerado livro de reclamações, cujo cerne residia na recusa por banda dos responsáveis do Pingo Doce em fornecer os alimentos requeridos. Em segundo lugar, este protesto demonstra que, infelizmente, a mentalidade das gentes portuguesas, ou, de algumas dessas gentes, continua a ser, bastamente, reaccionária. Reparem que o argumentário permanece o mesmo: o senhor Soares dos Santos é rico, foge aos impostos, finge a caridade, e lucra com as compras dos clientes. O último argumento é, então, um must. Onde já se viu um empresário, ainda por cima riquíssimo e com fortuna investida na Holanda, ter lucro? Bem vêem que, se nós, portugueses, admitirmos tal coisa ficaremos, segundo a visão desta seita de retardados políticos, repletos de vigaristas sociais. Em resumo, um problema tão sério como o desemprego é, por pura politiquice, totalmente mistificado, servindo, desse modo, agendas obscurantistas, que não têm outro objectivo a não ser fazer Portugal retroceder a um PREC conjurado por alpinistas sociais oitocentistas. É pena, pois, em boa verdade, quem perde com tudo isto são, infelizmente, os desempregados, sobretudo aqueles que não têm voz e que vivem, dia-a-dia, num desespero lancinante em busca de uma migalha de pão ou de um emprego mal pago. É, de facto, lamentável.
Podemos afirmar, sem reserva de lugar, que as camionietas nasceram para a política em 1955. O Apartheid americano inspirou o movimento cívico de protesto contra a segregração racial dos negros. A passageira Rosa Parks recusou ceder o seu lugar a um branco que seguia na mesma camioneta e iniciou, desse modo, o famoso boicote das camionetas de Montgomery que durou mais de um ano e que levou ao levantamento da lei de discriminação racial no estado do Alabama. Como forma de protesto pacífico, milhões de negros americanos prescindiram do transporte das carreiras de autocarros, demonstrando também o seu peso económico nesse sector, mas foi a marcha a pé de manifestantes, de Selma a Montgomery em 1965, que conduziu à conquista do direito de voto de milhões de afro-americanos. Mais de quarenta e cinco volvidos sobre esses eventos, uma analogia invertida acontece em Portugal. Os representantes de milhares de trabalhadores maltratados e em conflito aberto com o governo de Portugal, não conseguiram a autorização para atravessar a ponte 25 de Abril a pé, como forma de protesto pelas medidas de austeridade que afectam dramaticamente as suas vidas. A alternativa para a manifestação foi organizar uma travessia motorizada, a bordo de mais de 400 camionetas - segundo as últimas estimativas. Na América da segregação dos anos 50, os utentes mandaram as camionetas dar uma volta, enquanto que em Portugal, os transportes colectivos ganham relevo especial na luta pelos direitos económicos e sociais dos portugueses. É curioso como a história dos homens se serve das mesmas ferramentas para alcançar fins políticos diversos. A camioneta passará a constar, como nunca antes, nos anais do protesto político em Portugal. A viatura comprida ganhará o estatuto de ícone de resistência. Os condutores dos autocarros serão os mestres de uma cerimónia que faz viajar as grandes consternações nacionais sobre as águas movediças do futuro económico e social do país. A passagem de uma margem para a seguinte não confere a chegada a um porto seguro. A viagem será uma parte apenas de um longo traçado de reclamações que faz parte da vida dos portugueses. A camioneta irá servir hoje, de um modo simbólico, como carro de fuga do assalto perpetrado pelos governantes à alma mater de um povo. O regresso será mais longo que a ida - o retorno à paz económica e social que os passageiros não desejam ver apenas da janela do autocarro.
Por alguma razão entranhada na psique sindicalista, a ponte 25 de Abril continua a ser o símbolo de excelência de libertação da opressão política. Arménio Carlos, ao insistir na antiga ponte Salazar como local de protesto, acaba por revelar alguns defeitos de liderança e falta de juízo e, demonstra que não tem problemas de consciência ao colocar em perigo dezenas de milhar de manifestantes, se de facto a marcha sobre a ponte acontecer. Miguel Macedo apresentou alternativas ao percurso da manifestação da CGTP, mas não sabemos quais são. Por isso vamos especular. Será que o túnel do Marão (que ainda se encontra em construção) está na lista de locais aprazíveis para a prática da arte do protesto? E que tal um dos estádios do Euro? O do Algarve, por exemplo, que está às moscas quase todos os dias do ano. Até poderiam cobrar um valor simbólico pelo ingresso - uma taxa moderadora dos ânimos exaltados. Na minha opinião, embora a ponte em questão seja uma bridge over troubled waters nacionais, existem outros locais que poderiam servir para remeter uma mensagem forte ao destinatário. Ao pretenderem caminhar sobre a estrutura metálica em regime de meia-Maradona com as mãos de Deus ao alto e a abanar, acabarão por fazer publicidade ao sistema capitalista do inimigo. A Golden Gate de Lisboa foi construída em 1966 pela gigante multinacional norte-americana - a United States Steel Corporation - essa sim um símbolo de poder económico, político e social - capaz de fazer cair governos e uniões sindicais. Ou seja, em nome dos direitos, liberdades e garantias do trabalhador nacional, vai-se à boleia na camioneta do inimigo. Embora rebuscada, esta interpretação também pode ser trazida ao lume da discussão. Preferia que uma obra nacional, um espaço público português fosse o local eleito. E o Estádio Nacional, que já esteve associado a outros discursos, não pode ser aproveitado para o efeito? E uma das muitas auto-estradas a caminho de nenhures? Talvez houvesse aqui uma oportunidade para dar sentido aos milhões de euros dos contribuintes gastos em vão. A insistência da CGTP confirma que a inter-sindical ainda não se actualizou. As pontes já não são o que foram. Arménio Carlos quer usar a mesma cassette de sempre, o mesmo encadeado melódico de mensagens que não altera as regras do jogo. O protesto sobre a ponte faz lembrar outras feijoadas - muito gás e poucos resultados práticos.
Proponho a nomeação da mascote oficial anti-troika. Não se trata de um boneco inanimado à laia do Gil. O candidato a porta-estandarte da resistência nacional está vivinho da silva e anda em digressão a dar o exemplo de liberdade. A representação simbólica ou literária, à Italo Calvino ou Hans Christian Andersen, não necessita de ser resgatada. Portugal tem o seu próprio boi que anda a monte sem que lhe consigam deitar a corda aos cornos. Portugal deve aproveitar a alegoria animal e deixar a besta continuar a sua senda que emana esperança a tantos correlegionários accorentados pelas políticas impostas pelo matadouro financeiro e político. Este é o verdadeiro símbolo de resistência nacional em forma de nacos de carne e rabos de boi. Deixem a rés brava dizer de sua justiça nos termos de uma sã vagabundagem. O minotauro deveria permanecer como um chocalho nos nossos ouvidos, desde a sua criação por Ovídio. A história mais épica se torna com a queda do seu irmão - o sacríficio do animal pelo talhante Teseu (o Espertalhão não estava predestinado a ser grande) empresta ainda mais heroísmo ao espírito combativo do Marreta. Todos aqueles deuses que reclamam o estatuto de vingadores da troika são uma pálida imagem do fulgor endiabrado do touro. O que este cornudo faz pela nação é muito mais do que a oposição conseguiu fazer levando à rua centenas de milhar de indignados. Este quadrúpede bate aos pontos todos os ideólogos de esquerda ou direita. O animal tem dois cornos perfeitos - para as extremas partidárias que não conduzem a nada, e ainda uma testa larga para marrar contra centralidades gastas. Na minha opinião, Barcelos já deu o que tinha a dar. Chegou a hora de um boi pouco manso. E não faz mal que seja de raça Galega. Portugal também nasceu a partir daqueles territórios.
As revoluções são excelentes a desmontar o passado, mas enfrentam quase sempre grandes dificuldades na construção do futuro. A esta curta distância histórica, pergunto onde estão os movimentos de rua que tão intensamente se fizeram ouvir? Os indignados de 15 de Março, o outro de Novembro e ainda uma série dispersa de protestos e marchas. Lamento que dessa fornada de gente não tenha nascido uma nova força política, um veículo de soluções provindas da sociedade civil. Há por aí uns movimentos independentes, mas não chega para alterar as regras do jogo. As centenas de milhar de pessoas que marcharam nas ruas de Portugal como nunca antes se viu, não foram capazes de concretizar as suas propostas. Foram boas a reinvindicar, gritáram e esperneáram, mas não sabem aparecer nos outdoors dos cartazes de campanha autárquica. Não querem ou não sabem como se organizar. E esta constatação tem sérias implicações. Significa que, quer o desejem ou não, serão as mesmas plataformas partidárias a disputar o poder nas eleições que se avizinham. Pelo que ouvi falar, as diversas frentes de protesto que ocupáram as ruas e as primeiras páginas dos jornais, não conseguem chegar a acordo, e, por essa via, somos levados a concluir que sofrem dos mesmos males daqueles que de um modo parlamentar disputam o poder. Não se entendem. Todo aquele fumo acabou por não dar em nada. Não se conhece um lider. Não se conhece um novo pensador político que sintetize as aspirações alternativas. As eleições que se seguem teriam sido uma boa ocasião para a sociedade civil se levantar e se apresentar como proposta de futuro. Lamento que assim seja, uma vez que esse estado de calma revela a inacção da sociedade civil, encarneirada pela letargia de um sol de pouca dura. Enfim, os movimentos de indignados fazem-me lembrar os festivais de Verão. Estiveram em palco, foram fixes, mas daqui a uns meses já ninguém se lembra. A pedrada era grande. A pedrada no charco maior ainda.
Sobre a pintura do mural numa escola do Porto e a detenção dos artistas há muitas questões que devem ser inscritas na parede. Em primeiro lugar, a arte produzida era assim tão má? O muro em questão é propriedade pública ou pertence a uma galeria de arte? Os pintores foram contratados, trabalhavam a recibos verdes ou realizavam um biscate? Os contornos ideológicos têm importância, mas não necessariamente por opôr a juventude comunista ao governo. Os murais produzidos pelo partido comunista português ao longo das últimas décadas, foram quase sempre dos mais criativos (ok, repetiam muitas vezes imagens do foice e do martelo), mas não é isso que está em causa. Se de facto o referido muro pertence a todos os portugueses, e se aceitarmos a violação desse espaço em nome da liberdade de expressão, então teríamos de aceitar graffiti em todos os domínios públicos. Mas há zonas cinzentas que não podem ser ignoradas. Uma mensagem de protesto inscrita na areia da praia com um pauzinho de um gelado Supermaxi constitui transgressão do domínio público?Uma avioneta que rasga os céus atrelando uma mensagem de propaganda não estará a fazer uso do espaço aéreo para fins específicos que não interessam ao menino Jesus? Ou seja, em princípio, a expressão geográfica do país é passível de ser entendida como uma gigante ardósia para mandar recados. Se o tal muro pertence à escola então deve obedecer ao princípio consagrado na constituição, à separação da escola da política, do dogma ou da religião. Se a escola autorizou a inscrição de arte comunista, deveria atribuir a outras minorias uma parte desse direito, um talhão dessa parede. Aos ciganos, aos deficientes, aos muçulmanos, aos hindus, aos lojistas chineses e aos clubes de futebol. É esse o princípio que está em causa e nunca o facto de ser uma mensagem de contestação política que por acaso opõe os comunistas ao governo. O espaço público, embora geneticamente seja uma amálgama de posições politicamente contrastantes, na minha opinião, não pode ser apropriado por uma qualquer hierarquia. Se a escola autorizou o uso do muro para fins ideológicos ou políticos, serão os membros do conselho directivo que devem ser interrogados pelas autoridades. Se alguém trespassasse a sua propriedade privada e escrevesse insultos no muro que divide o seu quintal do jardim do vizinho, aposto que ficaria chateado e que chamaria a polícia? E se apanhasse em flagrante os autores ainda mais contente ficava. Embora não tenha escutado o Mário Nogueira a esse propósito ou outro dirigente sindical, cuja matéria-prima com que lidam são escolas, parece que houve conluio da parte do estabelecimento de ensino. A escola alegadamente terá autorizado a primeira demão. Ou será que foi um trabalho nocturno, feito às escuras? O facto de terem sido muralistas da juventude comunista a serem apanhados é uma questão secundária. Sem dúvida que o filme é perfeito para fazer má figura do governo. Mas sejamos sinceros, o governo já estalou o verniz há muito tempo. Não precisava de algemar estes alunos de belas artes para estragar ainda mais a sua maquilhagem.
Já não se aguenta o estado de sítio a que este sítio chegou. Todas as medidas apresentadas em formato de austeridade de excel são contraproducentes para revitalizar a economia, muito menos o bem-estar social. A resposta não é trabalhar mais, pagar mais impostos, mais taxas, mais contribuições. A solução devia ser exactamente a contrária, dando liberdade para ser a economia a restabelecer-se, por si. Os últimos governos não souberam governar. Desde contractos criminosos que sustentam o aparelho partidário até favores na nomeação para cargos públicos. Vivemos num país onde os crimes são feitos de dia e à frente de todos. Vivemos num país onde os erros não têm consequências para quem os pratica. Vivemos num país dominado pela incapacidade - e estou a ser simpático - e onde quem tem valor é apagado. E mesmo com isto tudo, não há protesto livre.
Nos dias que correm todo o protesto na rua é legítimo. Antes ainda se pedia uma justificação académica e racional. Isso era antes. Hoje basta dizer que não se aguenta o estado das coisas. O grande problema aqui é a falta de iniciativa de sectores independentes. Volto a escrever que os movimentos ditos de cidadãos não são livres. As bases do movimento ''Que se lixe a troika'' está infestado por quadros de partidos políticos, e até o assessor do PS Luís Bernardo, um dos seres mais execráveis que tive o desprazer de conhecer, tem o dedo metido lá no meio.
Como é que se pode dar valor a este movimento com o Luís Bernardo no meio?
ADENDA: Existe o Luís Bernardo, subscritor do movimento que se lixe a troika. Não confundir com o Luís Bernardo, assessor do PS.
Com ou sem estribilhos estafados, o que se passou na última semana foi a enésima confirmação de que as esquerdas lusas são um caso clinicamente perdido.
Um passeio no parque. Onde estão as soluções? Onde está um programa alternativo ao governo e à oposição? É só bater? Não chega. O país precisa de muito mais. Foram tantas as oportunidades e não se vislumbra uma alternativa de construção que possa disputar as próximas eleições. E sabem porquê? Porque os próprios manifestantes não se entendem quanto a uma visão concertada. No meio destas marchas, assistimos às celebridades desta e daquela facção, na linha da frente para os seus 15 minutos de fama. O povo, muito antes de poder ordenar, tem de se organizar, num processo de depuração de baixo para cima, apresentando-se como nova força política. Se permanece no campo da reacção, será sempre um mero súbdito queixoso. Querem algo melhor? Então começem a organizar-se em torno desse ideal. Já chega de vozes roucas. Chegou o momento para demonstrar que há quem seja mais competente do que o governo e a lastimável oposição. Onde estão os representantes naturais, nascidos deste processo? Quem são? Quando darão um verdadeiro passo em frente?
Penso sinceramente que uma grande oportunidade está a ser esbanjada. Mas antes de ir direito ao assunto, deixem-me afirmar o seguinte em relação aos princípios que determinam a minha postura política. Em primeiro lugar, a liberdade de expressão é um dos bastiões da Democracia que não pode ser posta em causa, e cantar ao vivo, com ou sem banda de suporte, tem de ser considerada uma forma de comunicação inalienável. Não há nada de errado na canção de intervenção Grândola Vila Morena da autoria de Zeca Afonso. A melodia e as palavras que se inscrevem na pauta, têm uma residência importante na história política e social de Portugal. Contudo, lamento que no momento actual, e no contexto específico que vivemos, nenhuma canção original tenha brotado de uma fornada de valentes músicos movida por causas maiores. E isso confirma alguns pressupostos endémicos. A incapacidade de Portugal para se reinventar e estabelecer um código de ruptura. Ao riscarem vezes sem conta o disco de Grândola, este perde a sua força anímica. Passa a ser um dois em um. Um head and shoulders do protesto, algo emprestado, à falta de melhor termo, de um vizinho simpático. Preferia que houvesse um concurso de televisão para eleger a melhor canção de intervenção. Eu sei que é uma contradição. Não existe tal coisa - a melhor canção de intervenção. Mas também não gosto da expressão, quem não tem cão caça com gato. A grande maioria daqueles que entoam a Vila Morena, e de quem se espera a verdadeira mudança, nem sequer viveram sob a alçada da restrição dos direitos e garantias. Não carregarem a intensa simbologia dessa luta. Vivem outra forma de castração, e a repressão que hoje sentimos deveria evocar um outro arranjo musical, uma outra lírica contestatária. Esta consanguinidade de recursos acaba por demonstrar que Portugal procura soluções diversas fazendo uso das mesmas ferramentas. Onde está a Mariza? Onde estão os Xutos e Pontapés? Onde estão eles? Sera que estão tão bem instalados que nem sequer lhes passa pela cabeça uma composição de resistência? Há ainda uma outra dimensão que se relaciona com esta canção. Ela circunscreve-se à cultura local. A luta e a contestação que une os irmãos Europeus, deveria dar azo a uma canção mais universal. Uma app para andróides e humanóides onde quer que estejam a agonizar.
Ora bem. Deixem-me lá preparar a conta, a factura se quiserem. Então, digam lá o que foi? - perguntou o fiscal enquanto procurava no bolso o recibo verde, para tomar nota das ocorrências. Vamos lá, que não tenho o dia todo; meia duzia de protestos de rua, vinte e seis greves, duas Grândola Vila Morena. Mais? É tudo? Vejam lá se querem mais qualquer coisinha. Consultem a ementa. Há muita coisa que ainda não provaram e daqui a pouco fechamos. Por exemplo, aqui nos pratos do dia; ir à bruxa e pedir um mau-olhado para este ou aquele ministro; pedir ao Prof. Karamba uma solução invulgar; comprar um boneco com ar de governante e aplicar magia Vudu...estejam lá à vontade, que eu vou ali e já venho.
Sobre Relvas pouco mais há a dizer. Aliás, é sintomático que eu, pouco dado a insistências pueris, ainda perca tempo a comentar as desventuras políticas de um truão que, em condições normais, já deveria ter sido escorraçado do poder. Não pensem, também, que me revejo nos jovens que hoje se manifestaram contra o ilustre desvergonhado. O estilo, a vozearia e a ignorância vertidas pela juventude protestária são, em larga medida, um decalque perfeito do imobilismo das esquerdas pátrias. Contudo, não posso deixar de manifestar um certo regozijo com o vexame a que foi sujeito o ministro pouco ministrante, Miguel Relvas. Quando o decoro não abunda nas hostes governativas, é bom de ver que ainda há gente, ignorante ou não, que sabe dizer não a estes despautérios. Portanto, meus caros, um longo e bravo hossana aos jovens profissionais do apupo.
Na equação que serve de base à tirania fiscal do Governo há claramente uma lacuna: a presunção, pavorosa e irreflectida, de que a impaciência dos portugueses jamais virá à tona. Posso estar enganado, mas não creio que o letargo da cidadania vá durar ad aeternum. Quem viaja pelo país, quem vê e observa a resignação serena dos portugueses, sabe que, no meio da tranquilidade aparente, há um desespero lancinante pronto a explodir. Uma raiva surda perigosíssima que, se não for atalhada a tempo, pode pôr em causa os fundamentos do regime. Cuidado. O espectro do caos anda por aí.