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Os Estados Unidos perderam a Guerra do Vietname. O Presidente John Fitzgerald Kennedy foi assassinado. O muro de Berlim caiu. O que têm em comum estes três eventos? O desfecho de cada um foi determinado pela vontade humana. De nada valeram constituições, escaladas militares ou a construção de vedações. O mesmo sucede na Catalunha. Olhemos com rigor para o que sucede, e para além dos tratados redigidos em Madrid. Esqueçamos Bruxelas e a União Europeia. O povo, mesmo que desunido, é quem mais ordena. Assistimos chocados, do conforto da nossa poltrona de superioridade intelectual e civilizacional, à História. Ao desenrolar de eventos que polvilham o cenário dinâmico da história política da Europa, mas também do resto do mundo. Sempre assim foi, e decerto que assim continuará a ser. No seio da Europa da União, da paz imaginada por Schuman e outros estadistas no rescaldo da segunda Grande Guerra, registamos agora algo inédito com consequências potencialmente surpreendentes, violentas. Madrid, se quiser fazer valer os factores de coesão da união espanhola, terá de implementar medidas de coacção que em muito transcendem a estrutura administrativa e política forjada em documentos validados por assinaturas. Não creio, dado o extremar de posições, e a efectiva Declaração de Independência da Catalunha, que exista uma mecânica possível de reversibilidade, de regresso ao status quo anterior. Prevejo o uso de força de Madrid, numa primeira fase moderada e, numa segunda fase, na sequência da contra-resposta dos independentistas de facto, um agudizar dos métodos repressivos e uma escalada da resposta da Catalunha. Não esqueçamos que Espanha detém um legado que facilita a disposição das peças no tabuleiro. O regime de Franco aperfeiçoou os métodos, que com a revolução foram metidos na gaveta, mas que não foram inteiramente esquecidos. A Europa pode muito bem ganhar mais uma república, mesmo que a UE não venha a somar ou a subtrair um membro - o artigo 155 não parece valer grande coisa.
O descalabro espanhol prossegue indemne a qualquer lógica ou assomo de racionalidade. Rajoy, à semelhança do seu antecessor, não passa de um arlequim sem o menor talento e engenho para o exercício de um cargo cujo grau de exigência é altíssimo - longe vão os tempos de políticos da craveira de Suarez, Fraga e Mellado. É de bradar aos céus a incompetência larvar que tem vindo a propagar-se no seio do executivo espanhol. A inépcia com que foi gerido o pedido de resgate à banca espanhola, o esforço inútil dispendido na apresentação de medidas económicas mal direccionadas, ou a desorientação patenteada na gestão de uma austeridade que, por razões óbvias, exige algum talante e "savoir faire", são exemplos bem evidentes da inabilidade com que Rajoy tem lidado com a crise. Os últimos desenvolvimentos, designadamente a ameaça independentista catalã, são mais uma achega na descredibilização de um Estado que, com o aprofundamento da crise económica, vai atingindo o seu estertor político. O modelo político e social saído da Transição e dos Pactos da Moncloa vê-se perante uma encruzilhada cuja resolução afigura-se sumamente difícil. A controvérsia política actualmente em curso não se limita apenas ao desajustamento do "bienestarismo" face às novas realidades económicas e sociais resultantes da globalização, mas abrange concomitantemente outras dimensões igualmente importantes, com particular destaque para o modelo de Estado. No fundo, a crise espanhola, usando uma expressão cara a Paulo Rangel, irá desembocar inelutavelmente numa "convulsão constitucional". Resta saber, contudo, como irão reagir os sectores espanholistas às atoardas soberanistas provenientes da Catalunha. Uma coisa é certa, a crise irá certamente perturbar o presente xadrez político espanhol.