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Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, Junho de 1871:
«Há muitos anos a política em Portugal apresenta este singular estado:
Doze ou quinze homens sempre os mesmos, alternadamente, possuem o poder, perdem o poder, reconquistam o poder, trocam o poder... O poder não sai duns certos grupos, como uma péla que quatro crianças, aos quatro cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar, numa explosão de risadas.
Quando quatro ou cinco daqueles homens estão no poder, esses homens são, segundo a opinião e os dizeres de todos os outros que lá não estão, – os corruptos, os esbanjadores da fazenda, a ruína do país, e outras injúrias pequenas, mais particularmente dirigidas aos seus carácteres e às suas famílias.
Os outros, os que não estão no poder são, segundo a sua própria opinião e os seus jornais – os verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do povo, os interesses do país e a pátria.
Mas, cousa notável!
Os cinco que estão no poder, fazem tudo o que podem – intrigam, trabalham, para continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do país, durante o maior tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se para deixar de ser – o mais depressa que puderem – os verdadeiros liberais e os interesses do país!
Até que enfim caem os cinco do poder, e os outros – os verdadeiros liberais – entram triunfantemente na designação herdada de esbanjadores da fazenda e ruína do país, e os que caíram do poder, resignam-se cheios de fel e de amargura – a vir ser os verdadeiros liberais e os interesses do país.
Ora como todos os ministros são tirados deste grupo de doze ou quinze indivíduos, não há nenhum deles que não tenha sido por seu turno esbanjador da fazenda e ruína do país...
Não há nenhum que não tenha sido demitido ou obrigado a pedir demissão pelas acusações mais graves e pelas votações mais hostis...
Não há nenhum que não tenha sido julgado incapaz de dirigir as coisas públicas, – pela imprensa, pela palavra dos oradores, pela acusação da opinião, pela afirmativa constitucional do poder moderador...
E todavia serão estes doze ou quinze indivíduos os que continuarão dirigindo o país neste caminho em que ele vai, feliz, coberto de luz, abundante, rico, forte, coroado de rosas, num choito triunfante!»
Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, As Farpas, "8 - Dezembro de 1871":
«A emigração é decerto um mal.
Porque aqueles que se oferecem mostram ser, por essa resolução, os mais enérgicos e os mais rijamente decididos; e num país de fracos e de indolentes, é um prejuízo perder as raras vontades firmes e os poucos braços viris.
Porque a emigração entre nós, não é como em toda a parte a transbordação de uma população que sobra, é a fuga de uma população que sofre;
Porque não é o espírito de indústria, de actividade, de expansão, de criação, que leva os nossos colonos, - como leva os ingleses à Austrália e à Índia - é a miséria de um país esterilizado que expulsa, sacode e que instiga a emigrar, a procurar longe o pão;
Porque a emigração, tomando o rumo dos países estranhos, contraria a necessidade de regularizar interiormente uma emigração de província a província;
Porque a emigração em Portugal não significa - ausência - significa abandono: o inglês por exemplo vai à Austrália, à América, fazer um começo de fortuna - para voltar a Inglaterra, viver, casar, acabar de enriquecer, servir o seu país, a sua comuna, trazer-lhes auxílio da vontade robustecida, da experiência adquirida, do dinheiro ganho; para Portugal ninguém volta, a não vir provido de boa fortuna, ser improdutivo, burgês retirado, inutilidade a engordar.»
Em "O Amor na Sociedade Portuguesa - Trechos de um estudo de psicologia nacional", Ramalho Ortigão descrevia assim o homem lusitano acometido da maleita do cupido:
«O impulso amoroso no coração lusitano, em vez de impelir a fantasia a voejar por instantes no país do azul, excita apenas o temperamento a marrar a fundo, espesso e resfolegante, nas trevas.
A emoção, que deveria ser acariciadora e risonha, adejante e leve como as asas duma abelha, o português converte-a numa espécie de vesânia de carácter fúnebre, parada e fixa como um espantalho, vigilante e sinistra como uma coruja, pesando esmagadoramente em chumbo irremovível sobre o destino da criatura eleita.
Onde toca o nosso amor fica uma cicatriz ou uma contusão. Desde que nos enamoramos caímos em paixão mórbida. Apodera-se de nós uma espécie de hipocondria erótica, morde-nos o sangue numa ponta esbraseada de satiríase, comprometem-se-nos as funções digestivas, engorgita-se-nos o fígado, vêm-nos olheiras, desenvolvem-se-nos gases e dói-nos a barriga.
Na evolução patológica dos sentimentos o amor é o antraz maligno da nossa raça. Uma vez apaixonado, o português é um enfermo, é quase um irresponsável. Perde a faculdade de estar alegre e de estar atento. Torna-se estúpido e sombrio. Devora-o um ciúme permanente, e para o alimentar promove ele mesmo toda a espécie de crises: mexerica, intriga, mente, calunia; e, para que verdadeiramente se convença de que exprimiu ao objecto amado o sentimento que este lhe inspirou, precisa de lhe ter batido.
Somos inacessíveis à galanteria... Bem sei o que disse Montesquieu: a galanteria não é o amor, é a delicada, a leve, a perpétua mentira do amor. Mas pergunto eu - pobre de mim - o que fica do amor, além das mais profundas e das mais horríveis penas da vida, desde que dele se arranque a leve, a perpétua, a delicada flor de que fala o moralista, e que não é tanto como parece uma mentira, uma vez que é um facto psicológico, uma realidade do espírito, concebida, criada, alimentada e vivida na fantasia do homem?
Amar - como deve ser - sucessivamente e simultaneamente todas as mulheres amáveis - não com toda a alma, que não é preciso e é inconveniente, mas com esse cantinho de alma terno, bondoso e galante de que todo o homem bem conformado tem obrigação de dispor para estas coisas -, amar, rendido interinamente e in partibus pela espiritualidade de um olhar, pela frescura de um sorriso, pela flexibilidade de uma estatura, pela maneira de pôr ao peito uma rosa ou de envolver no pescoço uma renda, por qualquer enfim dessas múltiplas formas superficiais e efémeras em que se revela o mimo e o encanto periférico da mais linda metade do género humano; amar assim, unicamente por amar, unicamente para retribuir, unicamente para agradecer à mulher a contribuição que por cada um dos seus dotes de simpatia ela traz ao aumento da graça e da doçura com que à providência benéfica aprouve atenuar o áspero rigor da existência, sem lhe pedir outra qualquer coisa, além de que se deixe ser o que é, como as demais coisas belas da natureza, como as flores e como as estrelas; amar assim - digo - é negócio inteiramente incompatível com a arrevesada da constituição da nossa natureza sensitiva e cerebral.
A haste de que brota em nossa alma a frágil e delicada flor do afecto é refractária à flexibilidade: tocando-lhe o capricho duma borboleta, ou persiste insensível, inabalável e inerte, ou tem uma convulsão de terramoto. No triste destino extremo do nosso coração, destas duas coisas uma: ou insensiblidade absoluta, ou derrocada completa. Victor Hugo escreveu esta lindra frase: Fremir n'empèche pas la branche de fleurir, mas escreveu a propósito dos tremores de Terra na Andaluzia, nos tremores da sensibilidade no coração português o ramo esgalha e não torna a dar flor; desde que a paixão o sacode e o esteriliza, o mais que ele pode dar é lenha.»
A propósito da problemática afirmação de Artur Santos Silva, presidente da Comissão Oficial do Centenário, em que sentenciou a actual Justiça como …”pior que a do Estado Novo”, convém relembrar alguns singelos desabafos da autoria de Ramalho Ortigão:
Caracterizando o período do rotativismo como um período de “decomposição da sociedade”, ia dizendo também que …”nenhum dos dois partidos (o Progressista e o Regenerador) a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o copo de água aos contínuos” (in Dom Carlos, o Martirizado). Mais, Ortigão esclarecia que a sociedade ia sendo “lentamente, surdamente, progressivamente contaminada pela mansa e sinuosa corrupção política (…) a indisciplina geral, o progressivo rebaixamento de caracteres, a desqualificação do mérito, o descomedimento das ambições, o espírito de insubordinação, a decadência mental da imprensa, a pusilanimidade da opinião, o rareamento dos homens modelares, o abastardamento das letras, a anarquia da arte, o desgosto do trabalho, a irreligião, e, finalmente, a pavorosa inconsciência do povo”.
Falava assim o insigne escritor da situação criada pela partidocracia infrene, que tão bem conhecemos, precisamente no momento em que o Chefe do Estado ainda não tinha caído sob a alçada dos rotativos – hoje o PS e o PSD – em que Portugal possuía alguns argumentos para o jogo internacional, onde o Ultramar era carta decisiva ou pelo menos valiosa. Assim desabafava, numa época em que existia o Poder Legislativo; o Poder Judicial, o Poder Executivo e o Poder Moderador, hoje todos eles, meras ficções formais. Hoje estamos bem e recomendamo-nos a todos: o Ultramar foi-se e com ele, a tal garantia de que todos desdenhavam, mas sempre esperavam; não temos agricultura e muito menos ainda, indústria que se veja. A “nossa banca” não passa de espúria agência estrangeira em solo outrora nacional. Pescas? Comércio? Autonomia nas nossas trocas comerciais, hoje submetidas ao esmagador peso espanhol, de longe mais despótico, prepotente e perigoso que os 20% de comércio com a Inglaterra de há cem anos? Marinha mercante? Onde isso já lá vai… Não temos alfândegas que protejam seja o que for. A moeda é um sucedâneo do Deutsche Mark, rapidamente baptizado de Euro, com as hepáticas doze estrelas que confirmam a sujeição à plutocracia sem rosto. Estamos tutelados e até agentes financistas que foram grandes responsáveis pela crise de agiotismo que levou milhões para a miséria, vem agora rebaixar oranking de fiabilidade portuguesa. É um desastre mais gravoso que Alcácer Quibir e ao contrário de há quatro séculos, qualquer 1º de Dezembro – a extinguir como feriado, por vontade do patronato – é muito improvável Mas mantenhamo-nos tranquilos, pois o Supremo Magistrado é sempre um dos Grandes, escolhido pelo Rato, ou pela Lapa. Uma questão meramente zoológica. Resta-nos o direito à fala, por enquanto. Desde que não incomodemos em demasia. Bem vindos ao ano do Centenário da República que jamais o foi.