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Não se pode celebrar um Natal descansado. Não se pode virar as costas aos políticos. Não se pode confiar. Fernando Medina já fez a encomenda - 60 mil cartolas para festejar a passagem de ano. Pelo que percebi são três lotes de cartolas. Um para cada um dos parceiros da Geringonça. Um de cor vermelha PCP, outro de cor preta BE, e outra remessa, tipo brilhante PS, para a sua gente. Não nos esqueçamos por um instante que o marketing político é uma arte subtil, dissimulada. Não é preciso ler tratados sobre religiões e símbolos políticos, mas existe muita tese sobre o tema. Aconselho Voegelin, o autor que versa sobre as implicações e as raizes do sagrado político. Mas são sobretudo regimes de massas que fazem uso de brindes e enfeites. O socialismo-nacional não foge à regra. O Padeiro Português pode fazer o que bem entender aos bolos-rei, mas o dinheiro dos contribuintes não pode servir para este banquete de gorros e barretes. Como tudo na vida pública e autárquica, seria imprescindível fazer um rastreio para apurar quem ganhou o concurso de fornecimento de boinas e de que modo foi adjudicada a empreitada. Julga o presidente-camarada de Lisboa que por ser dia de bebedeira a coisa passa sem se dar conta? Não. Isto é particularmente escandaloso. Mas há mais. Sabemos que a Lena d´Água está a passar mal e que já passou de moda, mas alguém puxou cordelinhos e cabos de amplificação para a pôr a mexer no palco das 12 passas a 31 de Dezembro. De nada servem Raríssimas, códigos de ética e tretas pseudo-moralistas. Não faz diferença alguma. As badaladas são as mesmas. São cartolas à medida de Medina.
Não deixa de ser curioso observar que, para muitos, o problema não se coloca apenas nos planos ético, legal ou político, mas sim, e sobretudo, no que diz respeito às origens sociais da fundadora e presidente da associação. Parece que o nepotismo e a corrupção, desde que praticados pelas pessoas certas, ou seja, de determinadas origens sociais e/ou familiares, são desculpáveis ou, pelo menos, a sua crítica não vem acompanhada de qualquer juízo acerca das origens sociais dos seus praticantes. Já uma "suburbana de Loures que começou a vida a vender jornais num quiosque" e que ainda teve o desplante de colocar um "e" entre os seus apelidos de forma a tornar o seu nome mais sonante (o que só mostra que percebeu bem a sociedade em que vivemos), não poderia nunca apropriar-se de fundos públicos de forma indevida sem ser, logo que descoberta, escorraçada como se tivesse peste bubónica.
Isto, aliás, constitui quase uma lei que qualquer português de origens humildes ou de classe média que ascenda socialmente deve ter em mente: os que nascem no seio de uma família sem poder político ou económico ou privilégios sociais ligados a uma determinada classe têm de ser moralmente impolutos, sob pena de caírem em desgraça se se descobrir que incorreram numa prática eticamente duvidosa e/ou ilegal.
Não quero com isto defender seja quem for, justificar seja o que for. Limito-me a observar uma característica transversal a muitos portugueses. Provavelmente, alguns, noutros tempos, fariam sempre questão de salientar que Cavaco Silva era "o filho do gasolineiro de Boliqueime." Outros, talvez ainda não se tenham refeito do choque com a desgraça em que caiu Ricardo Salgado, certamente uma vítima de circunstâncias excepcionais e nunca um ladrão sem escrúpulos que destruiu a vida a milhares de pessoas, a quem, ainda por cima, um Primeiro-Ministo sem pergaminhos de classe e que vivia e vive em Massamá ousou recusar ajuda. Não será, aliás, por acaso, que certas pessoas não só nunca se esquecem de sublinhar que Passos Coelho vive em Massamá - porque nas suas mentes parolas, quem tem um papel social de relevo e não vive na Lapa, Campo de Ourique, Estrela, Roma, Cascais ou Foz deveria ser um pária -, como criticam o ex-Primeiro-Ministro do PSD pelo caso Tecnoforma enquanto simultaneamente continuam a defender José Sócrates - embora isto também seja reflexo da clubite aguda aplicada à política.
Ainda que, parafraseando Orwell, reconheça que alguns são mais iguais que outros - e isto é assim em Portugal como em qualquer outra sociedade, por mais igualitária que seja -, nem por isso a manifestação especificamente portuguesa deste traço de neo-feudalismo deixa de me parecer particularmente lamentável.
A culpa é de Luís de Camões, de Aquilino Ribeiro, e já agora, de José Saramago. Quando o primeiro-ministro escolhe mal as palavras ou tem dificuldade em se exprimir, o ónus da asneira é da língua portuguesa. António Costa nem se pode socorrer do acordo ortográfico para emendar o sabor do soneto que enuncia. Sentimos, neste executivo, a preocupação na poupança da ponderação e o exagero no improviso da comunicação. Não sei se o primeiro-ministro prepara o que vai dizer num guardanapo ou numa tablete, mas confirmamos o desempenho amador das tiradas de comunicação. No entanto, o seu estilo particular de "dizer" já contaminou o terço socialista - Vieira da Silva esteve prestes a deixar descair a palavra gostosa - a instituição Raríssima é gostosa (?). Os outros dois da geringonça são mais cuidadosos. Jerónimo de Sousa não se engana - a cassete é sempre a mesma. E Catarina Martins usa a mesma receita de blá blá blá com alto teor de moralismo. Sublinhemos porém que o primeiro-ministro é muito mais flexível, polivalente. A expressão saborosa tanto serve a travessa de arroz de pato, como serve para retratar um ano raríssimo. Por outro lado, o homem pode ser tão sofisticado ao apelar aos "pupilos gustativos" - aqueles que o seguem e que sabem que o bom comportamento geralmente resulta em bombons, como uma nomeação para uma secretaria de Estado ou direcção de um organismo de solidariedade social. Em suma, è a base de doçaria institucional que o país se governa. A disciplina austera da Direita bolorenta cedeu lugar às liberdades e estímulos pavlovianos da Esquerda iluminada. Eu acredito que eles acreditam que a educação política dos filiados se faz por via da recompensa açucarada. Este ano saboroso tem muito que se diga. Fica entranhado nos dentes. É um chupa-chupa.
Não vale a pena entrar em pormenores sobre os contornos do desfalque da Raríssimas - se são gambas ou vestidos de noite que materializam os desvios. Esses aspectos são acessórios. O que é realmente grave diz respeito ao modo como é desferido um forte golpe na credibilidade de tantas associações que prosseguem as suas missões honestamente e em nome do bem colectivo. Este tipo de crime deve ser etiquetado de atentado grave contra a sociedade portuguesa, um acto de traição. O modo como corrói a confiança depositada em organizações com enfoque na acção social, obriga a que se auditem TODAS: fundações, associações, grémios e clubes (doa a quem doer) que, em nome da solidariedade e demais princípios e valores incontornáveis, operam no plano nacional. O facto do Ministro do Trabalho alegadamente já ter conhecimento das irregularidades das Raríssimas, coloca-o particularmente numa situação difícil. Para todos os efeitos práticos, o ministro passa a ser um associado dos delitos, independentemente da cor ideológica ou do partido de onde provém. Sejam quais forem as ramificações e os envolvidos - do governo ou não, da oposição ou não, da casa socialista, comunista ou centrista -, devem ser extraídas consequências materiais e penais. Raríssimo? Veremos. Talvez vulgaríssimo.