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Raymond Boudon, Os Intelectuais e o Liberalismo:
«Por outras palavras, é provável que o desenvolvimento da universidade de massas tenha contribuído para que as teorias de apreensão difícil, as ferramentas intelectuais que implicam um investimento importante em tempo de aprendizagem, tenham sido progressivamente relegadas para segundo plano no ensino e, por consequência, tenham tendido a desaparecer do saber comum, por um processo em cascata que vai do superior ao secundário. Sobretudo nas disciplinas que não estavam imunizadas pelas suas características intrínsecas.
De facto, as diversas disciplinas estão desigualmente protegidas, por força da sua própria constituição, contra os efeitos deste mecanismo. Por razões que seria inútil repisar, de tão evidentes que são, a física e a biologia estão mais protegidas do que as ciências humanas, a economia e a história estão mais protegidas do que a sociologia, por exemplo.
Este mecanismo ajuda a explicar que a hostilidade ao liberalismo seja sobretudo obra, ao que tudo indica, de intelectuais formados nas ciências humanas menos exigentes. Isto porque a tradição liberal propõe para os fenómenos sociais, políticos e económicos análises que envolvem ferramentas intelectuais, sistemas argumentativos e uma atitude mental que exigem uma aprendizagem muitas vezes encarada como ingrata.»
Leitura complementar: "Por isso pouco importa que a obesidade do Estado central prejudique toda a gente"; O relativismo cognitivo reforça a ética da convicção.
Raymond Boudon, Os Intelectuais e o Liberalismo:
«Podemos afirmar que estes diversos factores – a descida média das exigências escolares e universitárias, a implantação de uma epistemologia que desvaloriza o conceito de um saber objectivo – produziram ainda outro efeito de importância crucial: contribuíram para um alastramento do moralismo nos meios do ensino e, mais ainda, nos meios intelectuais, já que é mais fácil emitir um juízo moral sobre um determinado episódio histórico ou sobre um determinado fenómeno social do que compreendê-lo. Compreender pressupõe ao mesmo tempo informação e competência analítica. Emitir um juízo moral, pelo contrário, não pressupõe nenhuma competência especial. O reconhecimento da capacidade de compreender pressupõe uma concepção objectivista do conhecimento. O reconhecimento da capacidade de sentir, não. Acresce que, se um dado juízo moral vai ao encontro da sensibilidade de um certo público, ou cumpre os dogmas que cimentam uma determinada rede de influência, pode ser socialmente rentável.
A isto é preciso acrescentar, antecipando uma objecção possível, que o relativismo cognitivo – o relativismo em matéria de saber – não implica de maneira nenhuma o relativismo em matéria de moral. Pelo contrário, o relativismo cognitivo estimula a ética da convicção. Porque, como uma convicção não pode, à luz do relativismo cognitivo, ser objectivamente fundamentada, o facto de ser vivida como justa é facilmente encarado como único critério que permite validá-la. Este critério tende por isso a ser considerado necessário e suficiente. O episódio do Quebeque a que anteriormente me referi, em que um grupo de feministas propôs que fossem atenuadas as exigências do doutoramento a favor das mulheres, com o argumento de que o saber é sempre incerto enquanto as exigências morais são irrecusáveis, é um exemplo que atesta este efeito.
Assim se compreende que a desvalorização do saber possa ser acompanhada de uma sobrevalorização da moral ou, mais exactamente, de uma exacerbação das exigências em matéria de igualdade em detrimento de outros valores. É talvez este fenómeno que algumas expressões hoje repetidas à exaustão tentam captar: «o pensamento único», «o politicamente correcto», a political correctness.»
Leitura complementar: "Por isso pouco importa que a obesidade do Estado central prejudique toda a gente"
Raymond Boudon, Os Intelectuais e o Liberalismo:
«Numa palavra, a tendência que prevalece em amplos círculos, ainda hoje, é no sentido de interpretar o liberalismo através de uma óptica marxista e o Estado jacobino como único remédio para a «dominação de classe». Isto acontece com muitos intelectuais, mas mesmo com o político de centro-direita, que acha ser seu dever declarar que não tem nada a ver com um liberalismo que só é bom para aqueles que não se reconhecem na cultura «anglo-saxónica». Acontece o mesmo com o investigador do CNRS que reconhece que determinada empresa pública deve procurar fazer algumas economias, em vez de endividar as gerações presentes e futuras de contribuintes, mas ao mesmo tempo receia que ela saia das mãos benevolentes do Estado para cair nas da iniciativa privada, necessariamente malevolentes e em qualquer caso egoístas. Porque da influência conjugada do marxismo e do jacobinismo resulta que haja muita gente que considera axiomática a ideia de que a privatização e a regionalização geram necessariamente a desigualdade. Por isso pouco importa que a obesidade do Estado central prejudique toda a gente.»