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No seio do CDS parece ter sido adaptada e adoptada aquela máxima de que uma mentira muitas vezes repetida se torna verdade. No caso, a ideia de que o CDS poderá rapidamente ultrapassar o PSD, tornar-se na principal força partidária à direita e liderar um governo já após as próximas legislativas. É uma ideia fomentada e verbalizada por Assunção Cristas e pessoas que lhe são próximas, os mesmos que falam na necessidade de o CDS se pautar pelo pragmatismo. Pensava que o pragmatismo (ou realismo), que em larga medida se inspira no conservadorismo, aconselhava contra sonhos utópicos e incentivava a ter em consideração as lições da história, a olhar para a realidade política e a actuar no quadro dos constrangimentos que esta apresenta. Mas talvez seja eu que esteja enganado. Vou reler Burke.
O que se passa em Portugal? Com esta história das eleições de Trump quase que me esquecia onde tenho assente o meu arraial. Pois. Não devo ser o único. António Costa também anda equivocado. São só boas notícias. É o tal crescimento do PIB que dá logo vontade de comemorar. É a tal intensificação das exportações. É o passeio dos alegres a Moncloa com direito a beberete com Rajoy. É o doutoramento honório casa de António Guterres nesse país de nem bons ventos nem bons casamentos. E, como cereja em cima do bolo, o beijo de aprovação do Orçamento de Estado de Juncker e companhia! Ah, como é bom fingir que está tudo bem e que os ventos de mudança dos EUA e da Europa não têm nada a ver, que não são suficientemente fortes para albalroar o casco de uma geringonça. Quem tem Centeno e Galamba não precisa de ver esses canais de televisão vendidos aos neo-liberais. Esses Bloombergs ou CNBC. Os juros dos government bonds dos EUA? Isso? Isso é lá com eles, pá. Aqui é porreiro pá. Trumponomics? Nunca ouvi falar. E nós temos a nossa escola. Temos o Constâncio. Temos o BCE, não precisamos de mais nada. E o Donald Trump até nem sabe onde fica Portugal. É na América Latina, não é?
Com uma indesejável frequência, muitos dos que pastoreiam a nossa bela nação escudam-se no realismo para tentar justificar o que muitas vezes não tem justificação, em especial em matéria de política externa. Mas como, na verdade, desconhecem o que seja o realismo em política externa, ainda não aprenderam com britânicos e norte-americanos - os que mais teorizam e praticam o realismo em política externa - que lá porque seja conveniente termos relações e negócios com países com regimes políticos pouco recomendáveis, não quer dizer que tenhamos de ser capachos destes países ou, pior ainda, dedicar-lhes encómios. Aliás, nestes casos, aquilo a que o realismo obriga é a uma certa discrição - ou, mais prosaicamente, a saber que, o mais das vezes, o melhor é mesmo ouvir, ver e calar.
No futuro próximo, seja qual for o governo que estiver em funções em Portugal, não terá a sua vida facilitada. O tema da Austeridade que condicionou o discurso e a acção políticos dos últimos quatro anos será substituído por algo ainda mais dramático. Façamos a distinção entre a manutenção de um sistema a todo o custo, e o descalabro da ordem subjacente. Quando Cavaco Silva perfila o seu sucessor como alguém com experiência em relações externas, acerta nas qualificações, mas engana-se no posto. Quando escuto as palavras convenientes de António Costa sobre o fim dos tempos difíceis em Portugal, a reposição das pensões dos reformados, o crescimento económico e o emprego, vejo uma criança. Os grandes estrategas do Partido Socialista (PS) apresentam-se com ganas de vingar Portugal, mas omitem as dinâmicas do resto do mundo. Descuram cenários extremos que estão a acontecer além de Badajoz. O crescendo que se regista na opinião pública na Alemanha sobre a saída grega do Euro deve ser integrado na racionalidade política e de um modo expressivo. A agenda para a década do PS vendida como panaceia, incorpora ou não uma Europa radicalmente transformada ou assenta em premissas falidas? Mas acho que encontrei a explicação para o desprezo no que toca a condicionantes excêntricas. Se os socialistas chegarem ao poder, e quando começarem a falhar as suas receitas, sempre poderão atribuir a culpa a factores exógeneos. Mas existe uma contradição endémica nessa hipotética abordagem. O sistema europeu não irá explodir fruto de ameaças de Tsipras e da sua falange revanchista. A ordem da Zona Euro e da própria União Europeia sofre o desgaste no âmago da sua construção. E os sonhos acordados dos socialistas também sofrerão, por analogia, das mesmas contradições endémicas. A natureza ideológica da Europa assente na ideia de Seguranças Social e subvenções sem fim, está em profunda mutação. Os socialistas do Rato ainda não entenderam isso. As instituições europeias também parecem caminhar de um modo desalinhado. O lider do Eurogrupo fala de uma solução à Chipre, enquanto na Alemanha o Grexit parece estar a ganhar cada vez mais adeptos. António Costa, que se tem esquivado às questões que dizem respeito aos homens, vai ter de tomar decisões difíceis. E isso vai baralhar ainda mais as contas. Para além da complexidade que define todo este processo político-financeiro europeu, vamos ter de incluir juízos errados de futuros governantes nacionais. Preocupa-me a falta de visão do mundo daqueles que prometem salvá-lo.
Em que Vladimir Putin escreve um interessantíssimo Op-ed no New York Times que é uma lição de realismo directamente destinada a Obama, mas que, creio, poderá tornar-se um dos textos mais estudados nos próximos anos em cursos de Relações Internacionais. Começa assim: "Recent events surrounding Syria have prompted me to speak directly to the American people and their political leaders. It is important to do so at a time of insufficient communication between our societies". E termina assim: "My working and personal relationship with President Obama is marked by growing trust. I appreciate this. I carefully studied his address to the nation on Tuesday. And I would rather disagree with a case he made on American exceptionalism, stating that the United States’ policy is “what makes America different. It’s what makes us exceptional.” It is extremely dangerous to encourage people to see themselves as exceptional, whatever the motivation. There are big countries and small countries, rich and poor, those with long democratic traditions and those still finding their way to democracy. Their policies differ, too. We are all different, but when we ask for the Lord’s blessings, we must not forget that God created us equal."
Leitura complementar: As Obama Pauses Action, Putin Takes Center Stage.
Muitas razões há para que a escola realista continue a predominar na Teoria das Relações Internacionais. Talvez por ser a mais simples e, simultaneamente, a mais elegante, logo, com maior poder explicativo. Por estes dias, em que o mundo está expectante em relação ao que se seguirá no Egipto, reler A Morte da Utopia, de John Gray, é um exercício saudável e recomendável (Lisboa, Guerra e Paz, 2008):
«Precisa-se de um novo pensamento, mas este tem de renovar uma velha tradição. A prossecução da Utopia tem de ser substituída por uma tentativa de enfrentar a realidade. Não podemos voltar aos escritos dos pensadores realistas do passado com a esperança de que estes resolvam todos os nossos dilemas. A raiz do pensamento realista é a perspectiva de Marquiavel de que os governos existem e devem atingir todas as suas metas num mundo de conflito incessante que nunca esteja longe de um estado de guerra. Apesar da distância entre a Itália da Renascença e o presente, isto continua a ser verdade; mas as implicações da perspectiva de Maquiavel mudam de acordo com as circunstâncias e, mesmo no seu tempo, as teorias realistas de gerações recentes tinham graves defeitos. Todavia, é com o realismo, mais do que com qualquer outra escola, que podemos aprender a pensar acerca dos conflitos actuais.
O realismo é o único modo de pensar sobre questões de tirania e liberdade, de guerra e paz que pode afirmar verdadeiramente não se basear na fé e, apesar da sua reputação de amoralidade, o único que é eticamente sério. Esta é, sem dúvida, a razão pela qual é visto com suspeita. O realismo exige uma disciplina de pensamento que pode ser demasiado austera para uma cultura que preza o conforto psicológico acima de tudo, e é razoável perguntar se as sociedades liberais ocidentais são capazes do esforço moral que envolve pôr de lado as esperanças de transformação do mundo. As culturas que não foram moldadas pelo cristianismo e pelos seus substitutos seculares albergaram sempre uma tradição de pensamento realista, que, provavelmente, será tão forte no futuro como foi no passado. Na China, a Arte da Guerra, de Sun Tsu, é uma bíblia de estratégia realista e as filosofias taoísta e legalista contêm fortes correntes de pensamento realista, enquanto, na Índia, os escritos de Kautilya acerca da guerra e da diplomacia ocupam um lugar semelhante. Os escritos de Maquiavel foram um escândalo porque subverteram as reivindicações da moralidade cristã. Não tiveram a mesma força explosiva em culturas não cristãs, onde o pensamento realista ocorre mais facilmente. Nas democracias liberais pós-cristãs, foram as elites políticas e intelectuais, mais do que a maioria dos eleitores, que defenderam a guerra como instrumento para melhorar o mundo; mas a opinião pública ainda acha o pensamento realista desagradável. Poderá a tarefa de prevenir males perenes satisfazer uma geração desacostumada de sonhos irrealizáveis? Talvez esta prefira o romance de uma busca sem significado a enfrentar dificuldades que poderão acabar por nunca ser vencidas. Mas nem sempre foi assim e, tão-só há um par de gerações, o pensamento realista permitiu que os governos ocidentais prevalecessem em conflitos de longe mais perigosos do que qualquer dos que já tenham tido de enfrentar no século actual.» (pp. 256-257)
(...)
«Os realistas não aceitam que as relações internacionais consistam mais em problemas solúveis do que a vida humana em geral. Há situações em que, seja o que for que se faça, a acção contém erros - por exemplo, a situação que foi criada pela intervenção norte-americana no Iraque. Certamente, pode evitar-se a multiplicação dessas situações: podemos ter de provocar mortes em massa para derrotar Hitler, mas não precisamos de persistir na democratização do mundo pelo sangue. O realismo é uma «navalha de Occam» que funciona para minimizar escolhas radicais entre males. Não nos pode permitir fugir a essas escolhas, pois são próprias dos seres humanos.» (p. 258)
(...)
«Os realistas têm como adquiridos vários factos acerca do modo como o mundo funciona. Porém, por mais conversa fiada que possa haver acerca do fim da era westfaliana, os estados soberanos continuam a ser os actores centrais nos assuntos mundiais. Instituições transnacionais como a ONU são dispositivos de moderação das rivalidades entre potências soberanas e não formas embrionárias de governação global. Neste sentido, o mundo dos estados é um reino de anarquia e assim continuará. Claro que os estados aceitam muitas restrições, incluindo as que são impostas pelos tratados internacionais, como a Convenção de Genebra, que estabelecem normas de comportamento civilizado, e, em certa medida, o comércio mutuamente benéfico e as tradições sociais podem substituir o conflito destrutivo pela concorrência e a cooperação. Mas essas convenções e práticas são frágeis e, a longo prazo, a guerra é tão vulgar como a paz.
Os realistas deviam rejeitar visões teleológicas da história. A crença de que a humanidade está a caminhar para uma situação em que já não haverá conflito sobre a natureza do governo é não só ilusória mas também perigosa. Basear políticas no pressuposto de que um processo misterioso de evolução está a levar a humanidade para uma terra prometida conduz a um estado mental que não está preparado para o conflito intratável.» (pp. 259-260)
Com o que escreve o João Távora: