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A república

por Nuno Castelo-Branco, em 05.10.16

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Diário de N. White Castle: 2 de Outubro de 1910, a chegada a Lisboa

Após uma breve viagem marítima sem história, cheguei esta manhã à capital portuguesa. Habituado à exiguidade territorial que os mapas mostram, jamais pensei encontrar uma cidade como Lisboa, mas sim um pequeno porto semelhante a tantos outros que já vira nas minhas meridionais deambulações em toda a bacia do Mediterrâneo. Esta cidade é diferente, beneficiando de uma entrada natural que só pode ser comparada ao Corno de Ouro da capital dos sultões. Tal como Constantinopla, Lisboa vista do mar parece incandescente, pois não podemos considerar a longa desembocadura do Tejo como um rio, dada a imensidão do potencial porto interior. A montante, deparamos com um espantoso mar interior a que deram o nome de Mar de Palha e que reflecte a luz solar com uma inaudita intensidade, surgindo a capital como uma miragem, onde a indefinição das formas lhe confere uma grandiosidade insuspeitada. Este imenso porto de refúgio, é uma das mais privilegiadas posições estratégicas do mundo, pois por esta costa passa todo o comércio que liga as metrópoles europeias ao Novo Mundo e às colónias em África e na Ásia. Conhecendo bem a nossa longa convivência com este país, compreende-se facilmente o vital interesse que representa para a Royal Navy, a manutenção desta maravilha natural em mãos amigas.
Desde a entrada daquilo a que os portugueses chamam a Barra, desfrutamos do privilégio de uma vista única da margem norte, pontilhada por casario ainda relativamente disperso e que num futuro que julgo não muito distante, acabará por unir a vila de Cascais à própria capital. Notam-se claros indícios do progresso material deste século, uma vez que tal como em qualquer uma das nossas cidades ribeirinhas, vislumbro muitas chaminés fumegantes, este mal necessário que a industrialização nos faz pagar para podermos auferir das apregoadas comodidades já indispensáveis. Infelizmente, neste caso parece não ter existido uma verdadeira preocupação em criar uma zona industrial, pois é notória a existência de fábricas espalhadas um pouco por toda a parte, mesmo aquela - que me disseram ser a do gás - construída mesmo diante de um dos principais monumentos do país, a Torre de Belém. O comandante disse-me que consta que a rainha Amélia muito tem admoestado consecutivos governos no sentido de ser desmantelada a dita fábrica, colocando-a noutro lado. Para grande irritação da soberana, a inércia e a falta de coragem para enfrentar os interesses económicos, vão mantendo a situação num impasse que visivelmente tem consequências desastrosas para a integridade desta construção com quatrocentos anos. Além disto, a rainha tem preenchido o país inteiro com exemplos da sua benemerência que vai muito além dos garden-party da alta sociedade que por regra aqui é na sua maioria ociosa. Pelo contrário, a sua obra concita algumas adesões de connoisseurs e parece imensa num país demasiadamente distraído com a baixa política. De hospitais a lactários, de sanatórios a creches e a institutos ou museus, muito Portugal lhe ficará a dever.

Após deixar a minha bagagem no Hotel Avenida, decidi apresentar-me na nossa Legação, situada na parte alta, num bairro bastante burguês denominado a Lapa. Pouco interessado nas ociosas tertúlias próprias do corpo diplomático, fui contudo praticamente coagido a voltar ao palacete nesta mesma noite. Realizar-se-á um jantar com alguns dos mais destacados homens de negócios ingleses estabelecidos em Portugal. Deixaram-me claro que o meu conhecimento da língua, será preciosa ajuda para o estabelecimento de conversas com algum interesse para a avaliação da situação política neste país. Não deixarão de estar presentes alguns portugueses, na sua maioria comerciantes, mas disseram-me que as expectativas vão todas no sentido de auscultar a opinião de alguns oficiais do exército. Vamos ver, todo este cheiro a pólvora e a conspiração começa a despertar a minha curiosidade.

A Baixa é talvez a zona mais animada, aí se situando o melhor comércio, bancos, casas de seguros e empresas de navegação. É espantosa a multidão nas ruas, pois dir-se-ia estarmos não num dia normal de trabalho, mas no reboliço próprio de festas populares. Bandos de ociosos à porta de cafés e de casas que vendem vinho e carvão, parecem discutir animadamente a razão das suas vidas, ou talvez apenas, a derradeira intriga ou boato que aqui alastra como fogo em palha seca. Já quando estivera em Goa, tivera a oportunidade de me inteirar da apetência que uma certa camada urbana tinha por historietas mirabolantes, geralmente desprovidas de qualquer veracidade, mas capazes de alimentar todo o tipo de sentimentos, desde o ódio mais feroz e irracional, até à compaixão que implica a lógica beatitude da criatura alvo da conversa. E o mais interessante, consiste no curioso facto de um beneficiado pelas palavras de louvor, ser no próprio dia e devido a um outro boato, passar a ser arrastado até às portas do inferno, onde, claro está, existem sempre uns pobres diabos capazes de unicamente se exprimir no calão mais grosseiro de que esta rica língua é capaz.

Muito a propósito, decidi entrar num café situado na Praça D. Pedro IV, local que como muitos outros possui duas denominações. Oficialmente, tem o nome do monarca luso-brasileiro, mas para o comum dos mortais, sempre foi e será o Rossio. Este café, o Gelo, é um local já meu conhecido apenas pelo nome, pois já há muito sabia que nas suas salas se tinham reunido os conspiradores republicanos que assassinaram o rei Carlos e o príncipe Luís Filipe. Discutia-se a alta voz e qualquer um podia escutar planos conspirativos, atoardas e o constante e impiedoso martelar de reputações. Dir-se-ia ser Portugal uma terra de milionários, pois os cafés encontram-se a abarrotar a qualquer hora do dia e fiquei a pensar com os meus botões, do que viverá toda esta gente que passa os seus dias diante de copos e garrafas? A cidade encontra-se razoavelmente limpa, nota-se uma certa prosperidade e os armazéns da zona do Chiado estão muito bem fornecidos de todas as novidades parisienses que parecem ser da preferência dos portugueses da capital. Tal como em Londres, Viena ou Paris, as equipagens rivalizam no luxo das carruagens abertas e as senhoras burguesas, geralmente acompanhadas por uma filha ou pela empregada, fazem a rotina diária das lojas, comprando mais um par de luvas ou um extravagante e emplumado chapéu para um hipotético grande dia de festa. Casas de chá mobiladas com esmero e nas quais podemos degustar deliciosas especialidades locais, oferecem o espectáculo da passagem de la mode parisiènne, tal como se verifica em qualquer outra cidade europeia. Lisboa possui várias estações de caminhos de ferro, de onde partem comboios para todas as regiões do país, existindo uma muito razoável cobertura da rede ferroviária que é moderna e segundo dizem, eficiente. O porto está praticamente sempre lotado de navios que dos confins do planeta, trazem das colónias os produtos destinados ao consumo interno e à exportação, adivinhando-se facilmente - se as condições políticas assim o permitirem - um futuro de progresso material que não deixará de beneficiar amplas camadas da população. O país é territorialmente pequeno, mas espantosamente, possui o terceiro maior Império colonial, exercendo a sua soberania sobre possessões banhadas por três oceanos e continentes. É certo que o facto de pertencer à sempre inconvenientemente considerada esfera de influência britânica, permite-lhe o luxo de exercer o domínio sobre territórios infinitamente mais valiosos que aqueles onde flutuam as bandeiras da Alemanha ou da Itália, por exemplo.

No café Gelo, discutiam-se animadamente as últimas novidade relativas ao mundo da política local e as responsabilidades sobre imaginárias desgraças recaíam alternada mas invariavelmente nas pessoas do rei Carlos ou Manuel, na rainha Amélia e claro está, nos padres, bem capazes, segundo esta gente, de todos os crimes que a mente mais retorcida pode imaginar. Seguros de verem em mim um estrangeiro disposto a escutá-los e que ainda por cima fala português, procuraram convencer-me acerca da justeza das suas ideias e projectos inconsistentes e recorrendo ao habitual argumento do Ultimatum, julgaram-me facilmente coagido pela timidez. Retorqui secamente que humilhação muito maior infligíramos à França em Fachoda, sem que por isso se pensasse seriamente derrubar o regime vigente naquele país. Mais acrescentei que isso provava a consistência de uma opinião pública que sabia distinguir o essencial daquilo que é perfeitamente negligenciável. Logo decorridos alguns minutos, pareceu-me que esta gente vive obcecada com sonhos de grandeza e com dogmas redentores de uma situação que afinal só se resolverá com persistência no trabalho, banco de escola, paz política e respeito pela hierarquia, coisa impossível de imaginar nestes ligeiros espíritos em teimosa efervescência. Poderia executar rapidamente um xeque-mate aos malcriados palradores, questionando-lhes acerca daquilo que consideram ser uma república, que tal como a Inglaterra, Portugal é e sempre foi. Creio que para os meus interlocutores, consiste num mero sucedâneo dos santinhos milagreiros que devotadamente adoravam na sua infância, esperando curas, alimentação farta e se possível, um bilhete premiado na lotaria. No fundo, para esta gente, a república é apenas um milagre, talvez tirado das profundezas de uma fé aparentemente renegada. Rapidamente cansado da colossal ignorância orgulhosamente assumida pelos revolucionários profissionais, decidi não perder mais tempo, pelo que polidamente me despedi, manifestando o interesse em ver o couraçado brasileiro S. Paulo que transporta o presidente Hermes da Fonseca que está de visita a este país. Maravilha técnica do engenho britânico, este navio e o seu irmão gémeo Minas Gerais, são decididamente peças essenciais na manutenção do status quo na sempre instável região do cone sul americano.

Descendo a Rua do Ouro - a oficialmente denominada Rua Áurea -, cheguei ao preciso local onde caíram varados pelas balas assassinas o rei Carlos e o seu herdeiro. As fachadas poente da magnífica Praça do Comércio - o Terreiro do Paço dos lisboetas e Black Horse Square entre os meus compatriotas -, ostentam as indeléveis marcas da chacina, pois a cantaria foi fortemente atingida durante o tiroteio daquela tarde de inverno. Fiquei a pensar se a versão que corre, a de um acto isolado de dois assassinos, pode ser sustentada. Não foram apenas eles, tenho a certeza.
Bordejada por árvores que oferecem protecção ao inclemente sol, omnipresente durante mais de metade do ano, esta praça possui uma magnífica estátua ao rei José I e evidentemente, no seu pedestal podemos olhar para o rosto severo e decidido do marquês de Pombal, o hábil ministro que conduziu os trabalhos de reconstrução da cidade destruída pelo cataclismo de 1755. O comércio que aqui se pratica é bastante diferente daquele que vimos na Baixa, pois no Terreiro encontramos vendedores ambulantes e gente que vem dos arrabaldes da cidade para vender os seus produtos hortícolas e animais de capoeira. Os preços são razoáveis para a nossa bolsa, mas continuo a interrogar-me acerca da inextricável capacidade de tantos portugueses em permanecerem vivos e de boa saúde, dada a bem visível inércia e fare niente que salta aos olhos em praticamente todas as ruas da capital.
É uma interrogação que não deixarei de colocar esta noite aos meus convivas na embaixada.

3 de Outubro de 1910

Exausto pelo longo jantar e com a mente toldada pelos vinhos e licores que acompanharam e que se seguiram ao repasto, regressei a pé ao Avenida, pois nesta cidade é ainda possível caminharmos distâncias que no mapa parecem grandes, mas que bem vistas as coisas, consistem invariavelmente nuns centos de jardas, ou no máximo, uma milha e meia. 

Tive a oportunidade de conhecer alguns dos mais influentes compatriotas estabelecidos neste país, assim como convidados portugueses que esperava muito diferentes daquela gente que conhecera há umas horas no Rossio. Triste ilusão, pois as fatiotas, gravatas e lustrosas cartolas, serviam apenas de disfarce para as mesmíssimas enraizadas certezas no nada. A vacuidade da argumentação era atroz e não consegui vislumbrar o menor indício de um projecto exequível e baseado em factos que lhe dariam viabilidade. Nada, nada, apenas grandes tiradas sobre a liberdade e a igualdade, não se esquecendo o costumeiro progresso social, sempre na boca de gente que tem assalariados a seu cargo, sem nada se preocupar com condições de trabalho ou direitos de quem lhes dá o sustento. Pelo contrário, pareceram-me estranhamente elitistas, pois tentando compreender à luz da experiência inglesa e alemã, aquilo que se passa no ainda bastante incipiente operariado português, retorquiram-me apontando a ineficiência dos socialistas que no seu douto parecer ..."andam conluiados com o rei"... sendo aqui substituídos na função de renovação da sociedade, por um partido republicano - o deles -  que pretendendo meramente alterar a face do regime, julga poder modificar como num passe de mágica, toda a situação do país. Inacreditável, mas absolutamente verdadeiro. À mesa, o mais linguarudo foi um conhecido comerciante proprietário de um grande armazém no Chiado que bramia todo o tipo de impropérios contra o regime que afinal lhe permitia manifestar-se de forma tão aberta e descuidada. Um outro conviva segredou-me que constava que a dita rubicunda criatura, estivera envolvida na conspiração regicida, pelo que tomei de imediato as minhas distâncias, sem antes deixar-lhe bem claro que em Paris seria preso por muito menos. Calou-se e desviou o olhar para o copo.  No entanto, o conviva que mais atenção me despertou, foi um oficial do exército, o coronel Cunha que por várias vezes increpou o exaltado comerciante épicier, no sentido de moderar o tom com que se referia a personalidades públicas da Corte e do Parlamento. O que não deixei de estranhar, foi a presença desta gente em ágapes da nossa Legação, sabendo-se que o Reino Unido cultiva as melhores relações com o governo português, além de os soberanos deste país se encontrarem entre os numerosos parentes da casa real britânica. Muito estranho, mesmo muito estranho. Porque será?

Questionando o dito coronel Cunha acerca da viabilidade de um golpe subversivo dos republicanos, ele olhou fixamente o seu adversário natural - o comerciante milionário - e afagou a espada, dizendo: "ainda há uns dias estive com S.M. e com o Duque de Wellington no Buçaco, na celebração do primeiro centenário da nossa vitória contra a França de Napoleão. El-Rei D. Manuel é o Chefe do Estado e por inerência, o comandante em chefe das forças armadas. Devemos-lhe a lealdade de camaradas de armas e neste caso, ainda lhe digo mais: devíamos ter tomado rapidamente uma atitude no dia do regicídio, pois o país inteiro conhece quem foram os responsáveis!" Dito isto, apontou com o queixo na direcção do estupefacto negociante que não conseguiu articular qualquer resposta. E continuando, foi dizendo ..."que se tentarem algo, desta vez vão ver como lhes dói, atiramos a matar!"

Julguei o regime perfeitamente seguro, pois este exército tem uma certa experiência de combate. Quem não se recorda das grandes vitórias obtidas ainda há pouco tempo em Angola e Moçambique? Além disso, as celebrações do Centenário das Invasões francesas, consistiram num vibrante testemunho de fidelidade dos militares à Casa de Bragança e ao regime constitucional. 

Terminado o jantar e a natural sequência de cigarros, brandy e Porto, manifestei visivelmente o meu cansaço, que plenamente se justificava pela viagem e longa caminhada que já fizera na cidade. Tive a infelicidade de ser forçado a aceitar a carruagem do comerciante que pressurosamente se ofereceu para me conduzir ao Avenida, quiçá tentando escusar-se da verborreia que abruptamente lhe interrompi. Pelo caminho voltou à carga e foi incessantemente palrando acerca das virtudes propiciadas pelo regime novo que ardentemente quer ver alvorecer em Portugal. Fala-me da liquidação da Igreja e de uma súbita modernização do tecido produtivo nacional. Segundo o seu infalível ponto de vista, a simples proclamação da república, susceptibilizará uma rápida queda dos preços, a instrução das massas e a consequente industrialização do país que passará a rivalizar com uma Bélgica ou uma Suíça. O delírio da propaganda - decerto eficaz no Gelo, mas que em mim, experiente como sou na análise da situação económica e social dos países que visito e onde tenho interesses -, produziu o efeito exactamente contrário. Este homem sonha com uma esquadra de couraçados que esmague a espanhola em poder e número. Num Portugal onde a escola é quase universalmente tomada por excentricidade de classe, julga possível alfabetizar o país inteiro em apenas alguns poucos anos e declara muito senhor de si, que os recursos do Estado - os impostos, quer dizer, o seu dinheiro - têm sido malbaratados pelo actual regime e são suficientes para servir de alavanca ao que ele designou por novo fontismo, isto é, um amplo programa de modernização das estruturas nacionais, desde o ensino aos transportes e à indústria. Conhecendo a dependência portuguesa relativamente ao exterior, interrogo-me se este homenzinho possui a mais ínfima ideia acerca dos problemas que levantou, pois sendo de difícil resolução em países mais poderosos, aqui, sem o regresso de um longuíssimo período de estabilidade, encontram-se mais longe que qualquer estrela do firmamento apenas vislumbrável por potente telescópio. 

Aliviado por me furtar ao diluviano discurso de inanidades e pétreas certezas, recolhi-me ao meu quarto, sem que antes me tivessem avisado na portaria, que  ..."qualquer coisa se está a passar". O que será agora? Mediante o pagamento de algumas moedas, fiquei ciente de que o porteiro está a par de tudo aquilo que de estranho se passa nas redondezas e desta forma, não deixará de me fornecer informações. 

 

Após o almoço, soube-se que um médico de loucos, um tal dr. Bombarda fora abatido por um dos seus doentes, mas já corria célere o boato apontando o dedo aos jesuítas que neste preciso momento, parecem ir ocupar o lugar que a sociedade durante séculos reservou aos filhos de Israel. É claro que diante do Gelo já pude verificar a concentração de todos os vadios do costume, em forte gritaria e clamando por sangrenta vingança. A certo momento, um dos mais exaltados berrou que era necessário ir à sede do partido republicano buscar armas e bombas. Não podia acreditar no que escutava. Que país é este onde se permite a transformação de uma sede partidária em arsenal de subversivos? Uma simples rusga policial teria decapitado o dito partido em apenas alguns minutos, pensei eu. Contudo, um numeroso bando lá foi em desalvorada correria em direcção ao Largo de S. Carlos, onde diante da Ópera, se situa a dita sede. Como curiosidade, devo acrescentar que concomitante a este largo, situa-se o próprio Governo Civil de Lisboa, local pejado de policias e funcionários governamentais que pelo que ouço, pretendem ignorar aquilo a que chamam de "picardias". Pretendem isso sim, acalmar os exaltados e segundo as suas preclaras cabeças decidiram, é melhor ignorar as provocações, porque ..."essas coisas morrem por si"...

No meio da grande confusão  e desta vez para minha satisfação, voltei a encontrar o comerciante que conhecera na Legação e que parecia estar plenamente ciente de tudo o que se passava. Mais, confessou-me com ar de altiva importância, que os republicanos escutavam todas as conversas telefónicas efectuadas pelo governo e pelo palácio real, pois algumas das telefonistas estavam incumbidas desse serviço de espionagem. É o deboche completo. Desta forma vim a saber  que o chefe do governo contactara telefonicamente a rainha Amélia, ausente  em Sintra, inteirando-a do que se passava na capital. O rei recebia o presidente brasileiro num banquete oficial em Belém e pensei que tudo isto não passava de mais um abortado devaneio dos amigos de alguns dos meus convivas de véspera. Esperava ver a todo o momento o exército a ocupar os pontos nevrálgicos da cidade, liquidando quaisquer intentos de desacato da ordem pública. Estranhamente, nada aconteceu. Fiquei também na posse da informação que dava como certo o refúgio dos chefes republicanos nos estabelecimentos de banhos de S. Paulo, ao Cais do Sodré. Toda esta bernarda parecia de antemão comprometida e decerto acabaria em rotundo fiasco. Num súbito impulso, lembrei-me que na véspera o coronel Cunha me oferecera o seu cartão, colocando-se à minha inteira disposição para aquilo que julgasse necessário. Dirigi-me ao local da sua residência, no Príncipe Real, onde me disseram que sua excelência estava de prevenção no quartel. Tranquilizado pelas palavras da esposa do oficial, resolvi retirar-me, convencido de que a manhã seguinte traria a esperada novidade do desvanecimento da combatividade revolucionária.

4 de Outubro de 1910

Durante a madrugada de hoje, não consegui adormecer devido ao tiroteio perfeitamente audível na Baixa. Subitamente, o pessoal do hotel decidiu fechar as portadas, evitando maçadas decorrentes de tiros perdidos. Sentimos o passo apressado dos militares da Guarda Municipal que ocupavam posições na Praça dos Restauradores, enquanto corriam boatos contraditórios acerca da adesão ou passividade dos regimentos aquartelados na capital. Tínhamos a perfeita consciência de que por muitas bombas artesanais que pudessem arremessar, os chamados carbonários e os "anarquistas" - eufemismo  pelos quais os republicanos se faziam tratar -, jamais poderiam conseguir qualquer resultado positivo face ás tropas de linha, bem armadas, organizadas e municiadas. O factor vital consistia na capacidade de decisão dos comandantes e pelo que ouvira da boca do coronel Cunha, a obediência à hierarquia era um facto. Desta forma, continuei seguro de uma rápida extinção do movimento subversivo que politicamente, teria de ter consequências na ordem interna. Julgava muito candidamente, ter agora o governo a oportunidade única de decretar a imediata expulsão da camarilha do directório do PRP que já há quase três décadas impedia o normal funcionamento das instituições. Muito a propósito, entabulei então conversa com um francês que há muito residia neste hotel e que para meu espanto, está plenamente convencido da inevitabilidade da derrota monárquica. Procurando  retorquir com o evidente carácter minoritário e local dos republicanos, respondeu-me exactamente aquilo que todos os estrangeiros consideravam um sinal evidente: no dia 1 de Fevereiro de 1908, sendo demitido João Franco das suas funções de presidente do Conselho de Ministros, consumara-se assim a queda do regime. Condescendera-se com os criminosos, o regicídio ficava impune, permitira-se o enxovalho público do novo rei, da sua família e da própria ordem constitucional. E voltando-se subitamente para mim declarou:

"Olhe que esta situação não é nova! Vivo neste país há quinze anos e o que tenho assistido durante todo este tempo, prova sobejamente tudo aquilo que lhe disse!" Dito isto, pediu-me para o acompanhar ao seu quarto, onde me mostrou alguns volumes com recortes de imprensa, cópias de actas de sessões parlamentares e uns quantos livrinhos  mal amanhados que me informou serem propaganda paga pelo PRP.

" - Está a ver esta colecção? Desde já lhe digo, cher ami, que é um autêntico libelo de acusação do criminoso processo de sabotagem deste Estado constitucional. Consiste num aterrador dilúvio de todo o tipo de infâmias inimagináveis além-fronteiras! Olhe e leia com atenção! O apelo ao crime  regicida "à moda sérvia" é constante. Por exemplo, aqui estão excertos de alguns discursos do António José de Almeida no Parlamento. Sabe quem é este sujeito, ainda por cima um médico? Acha isto possível em qualquer país civilizado? Em França, uns ditos destes dariam azo à imediata prisão dos atrevidos. Já viu em que termos esta gente se refere à rainha e ao resto da família? E o Costa, sabe quem é?"

Dito isto, acrescentou:  - "é uma das mais desprezíveis, cobardes e turvas criaturas que conheci em toda a minha vida. Homem capaz de todas as vilanias, de um egoísmo à prova de qualquer análise de foro psicológico. Acredite no que lhe digo. Esta gente não presta, é má, rancorosa, incompetente e tornará a vida deste país num inferno! Por exemplo, já ouviu falar deste exemplar de literatura de cordel? É o famoso " O Marquês da Bacalhoa" que arrastou até ao precipício, a reputação da rainha e da sua entourage. É difícil imaginarmos o grau de baixeza a que se recorre, tendo como objecto uma senhora que poucos meses antes da sangueira do 1º de Fevereiro e durante a sua visita a Londres, era a figura central na célebre foto de cabeças coroadas presentes no palácio de Buckingham. Rainha de um pequeno país, a sua reputação de um ideal de mulher do nosso tempo, honesta e de uma impressionante presença que apenas encontrava rival na czarina Alexandra, colocava-a sempre no centro das atenções gerais. O desvelo com que a imperatriz alemã a olhava, é revelador do respeito que a rainha Amélia merecia. O PRP tudo fez para amesquinhar a soberana e consumou o crime, fazendo publicar O Marquês da Bacalhoa. Coisa mais infame é difícil de conceber e claro está, tem a chancela do directório republicano, disso não existe hoje qualquer dúvida! Questiono-me quotidianamente acerca da atitude que as potências tomarão perante a quase certa vitória final destes bandidos e sempre lhe vou garantindo - rivalidades históricas à parte - que muito mal faz o governo de Londres em não intervir decididamente, pois o que está em causa, é também a segurança do flanco peninsular da nossa Entente Cordiale que no rei Carlos tinha um firme esteio. Imagino o desespero do rei Eduardo VII que cerceado na sua acção, pouco ou nada poderá decidir quanto aos seus familiares de Lisboa. Com este PRP no poder, não poderemos contar com um exército português sequer capaz de garantir a inviolabilidade das fronteiras das suas extensas colónias africanas. Veja bem o enorme perigo que isso representa para o Império Britânico. Terão enlouquecido em Westminster?!"

 

Questionei-o então, acerca da verdadeira situação que o país vive, pedindo para se abstrair um pouco da guerrilha da propaganda. Respondendo, foi dizendo ..."pede-me o impossível, pois aqui é impensável tomarem-se medidas sejam elas de que carácter forem. Vigora a política da terra queimada e na verdade, só a instauração de um novo modelo constitucional que exima o soberano do jogo partidário - à semelhança daquilo que acontece na Inglaterra - poderá tranquilizar os espíritos. O mais curioso é que a esmagadora maioria da população é disso mesmo que está à espera e o rei Manuel é de facto popular. No entanto, os partidos nada mudarão, pois a garantia do seu sustento são os rendosos lugares proporcionados pelo exercício do poder político. O que pensa você pretenderem os ditos republicanos que aliás têm sido muito beneficiados pelos denominados rotativos? Até hoje têm servido como uma arma de arremesso de ambos, na feroz disputa pelo governo e nada mais que isso! No plano social, Portugal, sendo um país de escassos recursos materiais, não está assim tão atrasado como parece à primeira vista.  Possui inteligências, institutos científicos e infra-estruturas bem construídas e recentes. Se você quiser, pode escolher hoje ir à Ópera, ao teatro de variedades que aqui se chama de revista ou tão só deleitar-se com uma representação clássica.  Existem boas livrarias com todas as novidades que do estrangeiro chegam. A imprensa é livre e se existe censura, esta é sempre a posteriori, quando o mal já está dito e feito. Sempre quero ver o que os ditos republicanos farão com a liberdades de imprensa de que o país ainda beneficia... tenho sérias e razoáveis dúvidas quanto a tudo isto, para nem sequer mencionar a questão eleitoral"...

 

Esmagado pelas inesperadas revelações, decidi questioná-lo acerca da possível reacção das forças armadas:

- "Olhe, essas também estão em dúvida, porque desde o assassinato do rei, a impunidade da propaganda nos quartéis, conduziu à progressiva deterioração do respeito pela hierarquia. Não tendo existido uma imediata resposta ao assassinato de D. Carlos, muitos oficiais encararam a contemporização da política pretensiosamente crismada de "acalmação", como uma rendição total. Dos militares, também nada de bom podemos esperar. Não se trata de uma questão de cobardia, mas sim de puro e simples laissez-faire, oportunismo, falta de sentido daquilo que verdadeiramente interessa e consequentemente, talvez aceitarão a nova situação sem se manifestarem... enfim, mais uma vergonhosa ignomínia! Juramentos a bandeiras, são coisas vistas com displicência. As forças armadas? Não passam de funcionários públicos muito zelosos da segurança dos seus postos."

 

Soubemos então do motim a bordo de alguns dos cruzadores da armada, pelo que considerámos tornar-se de hora a hora, mais crítica a situação das forças leais ao regime. Apanhadas entre dois fogos, a única solução seria tomar de assalto a posição dos revoltosos na Rotunda, situada no cimo da Avenida da Liberdade. Do directório do PRP nada se sabia, sendo muito provável mais uma das habituais fugas ou um seguro esconderijo enquanto espera o desenlace dos acontecimentos. A polícia poderia facilmente procurá-lo, pois Lisboa inteira conhece por boato o local onde se acoita: os Banhos de S. Paulo. A posição das unidades militares da área de Lisboa é totalmente desconhecida e suspeitámos que o silêncio indiciava a pura abstenção. Contudo, o resultado da luta ainda parecia incerto, dada a resistência oferecida pelas tropas realistas que acabaram por confinar os revoltosos à Rotunda. Já se mencionava o nome do conhecido e bravo africanista Paiva Couceiro, uma garantia de lealismo. Tudo parecia possível ou provável e claro está, a situação residia única e simplesmente na decisão dos militares em intervir, esmagando a sedição. O porteiro do hotel acabou finalmente por nos informar que um dos caudilhos republicanos, o almirante Reis, se tinha suicidado, ao que parece por julgar perdida a sua causa. 

Os períodos de intensa fuzilaria -com escassas baixas de parte a parte, há que afirmá-lo - alternavam com outros de aparente calma. Surpreendentemente, soubemos que ambos os adversários recebiam visitas de populares, como se de uma festa ou romaria se tratasse e com os apetecidos "comes e bebes" de acompanhamento. Aquele que por mero acaso vencesse, contaria com a imediata adesão das massas citadinas, sempre prontas a festejar o herói do momento, aspecto caricato que dava a esta situação, uma sonora nota de ópera bufa. 

Durante algumas horas, tentei telefonar para a nossa Legação, sem que tal fosse possível e assim, já a altas horas da noite, decidi ir uma vez mais a casa do coronel Cunha, procurando obter o máximo de informações credíveis. Tocando a sineta, mal pude acreditar quando o próprio me veio abrir a porta, apresentando-se despenteado, de barba por fazer e fardado de roupão. Da forma mais amistosa que lhe foi possível, convidou-me a entrar e pelo caminho até ao salão, foi dizendo que nada sabia do que se estava a passar.

- "E a sua unidade"?, perguntei-lhe incrédulo.

- "Lá deve estar, de portões fechados e aguardando os acontecimentos"...

- "Aguardando os acontecimentos?! Mas não era suposto V. Exa. encontrar-se neste preciso momento à frente do seu regimento, honrando o juramento que fez questão em reafirmar há apenas 48 horas?!"

Empalidecendo, o coronel Cunha balbuciou algumas palavras incompreensíveis e depois, de forma mais decidida, concluiu a nossa rápida entrevista, apontando-me o caminho da saída:

- "Sabe, o meu compromisso é para com o país e não com este ou aquele regime. Os juramentos são feitos a uma determinada situação de um momento preciso. Se amanhã tivermos de proferir um outro, paciência"...

e encolhendo os ombros, deixou cair mãos, dizendo ..."é a vida"...

 

5 de Outubro de 1910

 

Durante toda a madrugada troou o canhão e já nem sequer sabíamos se os estrondos provinham de granadas lançadas pela esquadra amotinada ou pelas peças de 75 colocadas desde a Rotunda até ao Torel, estas últimas bem perto dos Restauradores, onde ainda me encontrava.  Dada a trágica situação que passava a irmanar Lisboa com a Odessa do couraçado Potemkine, dei graças aos céus por ainda não termos vendido qualquer couraçado à marinha portuguesa. Imagino os estragos que neste momento estaria a provocar numa cidade submetida a um dilúvio de granadas de 12 polegadas! Quem estava no hotel e conhecia bem a situação, dizia que os sediciosos venceriam, dada a abstenção do grosso do exército que facilmente teria liquidado a triste aventura. Para dificultar as coisas às unidades combatentes fiéis à legalidade, começaram a escassear as munições, pois os tiros provenientes das suas linhas tornaram-se cada vez mais espaçados, até quase cessarem por completo.

 

Logo pela manhã, parece que um representante do Kaiser Guilherme em Lisboa, quis garantir a segurança dos seus concidadãos residentes na capital e cometeu a imprudência de se deslocar com uma bandeira branca à terra de ninguém que separava os dois grupos contendores. Isto foi interpretado como uma rendição das tropas fiéis, o que provocou de imediato uma enorme aglomeração de gente excitada com os acontecimentos e consequentemente, terminaram os combates. 

Decidi sair à rua para ver o que se passava e soube que tinham proclamado a república na Câmara Municipal, situada num largo adjacente à Praça do Comércio. Sabemos como psicologicamente funcionam as multidões, pois se a tropa tivesse cumprido o seu dever consagrado pelo juramento, neste preciso momento andariam pelas ruas bandos populares à caça dos traidores e decerto a sede do PRP seria já pasto das chamas. Mas como o resultado foi diferente, verifiquei de imediato aquilo que decerto será o modus vivendi futuro neste país. Dois padres que iam a passar no Rossio, estavam a ser violentamente sovados e de vestes despedaçadas, submetiam-se à vindicta de uma gentuça comandada por uns tipos de aspecto inclassificável e que de espingarda na mão, iam organizando grupos de acção punitiva.  Coisa estranha esta, uma vez que desde o fim da guerra civil há já mais de setenta anos, a Igreja passara a ser fortemente controlada pelo Estado e até bispos pertenciam a organizações maçónicas, integrando plenamente a sociedade política liberal. Em Portugal, o radicalismo anti-religioso do PRP decerto mergulhará o país no caos. Os sectores mais conservadores da Igreja estarão finalmente livres para o exercício das suas actividades, pois é isso mesmo o que significa a dita separação da Igreja e do Estado. No nosso país, a igreja anglicana encontra-se de tal forma submetida, que podemos até afirmar que exercemos uma espécie de política regalista, na qual o nosso rei assume as funções aqui reservadas ao próprio Papa! Que estúpidos, tacanhos e ignorantes são estes pretensos republicanos portugueses...

 

O resto, é o que se previa. Adesões de última hora, delírios dignos do carnaval e pasme-se, esta gente que agora comanda, vai apresentando a revolução como coisa ordeira e decente, pois à porta dos bancos colocaram rufias armados, não vão os populares lembrarem-se de roubar os bens dos donos da revolução, quase todos homens de cabedais e boas posses, latifundiários, banqueiros e agiotas. Grande revolução esta, que começa logo por ser proclamada - segundo me disseram -, por um conhecido grande proprietário rural, bon vivant ocioso e dado a coisas do frisson mondain, um tal Relvas! 

Já para o fim da tarde, conheci os nomes das novas autoridades no poder. Na Legação sabem bem quem eles são e junto a um senil com pretensões a literato que dá pelo nome de Braga, surge logo o tal facínora Costa de quem me falou Monsieur Peyrot. A estes surgem igualmente associados um entusiasta das ditaduras que se chama Basílio Teles, um trânsfuga das hostes monárquicas de nome Machado (e que segundo me disseram tem o curioso título de barão de Joane), e alguns mais, cuja insignificância não lhes dá qualquer direito a que retenha a identidade. Não me posso esquecer do tal grosseirão parlamentar, o médico dr. Almeida que todos sabem ser o coordenador da manufactura de bombas terroristas do partido que ajuda a dirigir. O director do hotel disse-me que este sujeito é aquilo a que vulgarmente se designa de demagogo, capaz de grandes tiradas oratórias junto da ralé, ao mesmo tempo que no Parlamento protagoniza episódios onde a linguagem escandalosa, a infâmia e o simples insulto, serviram sempre para agradar aos arrebanhados contingentes de populares que assistiam às sessões. Que regime sairá daqui, é coisa que até o maior idiota pode facilmente prever, porque esta gente não se encontra minimamente preparada, não tem a confiança das grandes potências, está envolvida em numerosos crimes de sangue e pior que tudo isto, durante anos lançou prodigamente ao solo, as sementes da anarquia, do ódio e da falta de respeito pelo outro e pela Lei. Prevejo um futuro infalivelmente manchado pela ruína, guerra civil e rebaixamento de Portugal no concerto das nações e desta certeza, ninguém me tira.

 

Infelizmente, fui involuntariamente obrigado a presenciar uma deplorável cena de escabrosa cobardia e oportunismo. Quando regressava ao hotel, vi passar o tal coronel Cunha já impecavelmente fardado e levado em ombros por populares, coisa que me fez de imediato recordar cenas semelhantes que presenciara há uns anos no México. O inepto oficial já não ostentava no boné, a coroa regulamentar do uniforme! Aderira de imediato à nova situação e fico a pensar naquelas palavras altivamente proferidas no jantar na nossa Legação, quando afagando o sabre de cerimónia - pois apenas para isso serve e o futuro decerto o confirmará -, dizia ..."atiraremos a matar!" Que vergonha, que miserável criatura e dizem-se eles os herdeiros daqueles que talharam pela espada e pelo sacrifício este país, levando a sua bandeira ao Brasil, Índia e Japão! Como é isto possível? São estes os homens que a Europa passou a admirar após as chamadas campanhas de pacificação em África? É a desonra, o total opróbrio e isto dias após um solene juramento! Como poderá no futuro este país confiar nos militares que há séculos guardam ciosamente a sua independência? Para a segurança da Inglaterra e a partir de hoje mesmo, julgo que o nosso Estado Maior deverá deixar de contar com estas forças armadas para o cumprimento dos compromissos inerentes à Aliança, pois provaram-no até à saciedade que não merecem a mínima confiança. O que seria o seu desempenho num campo de batalha numa futura grande guerra europeia?  Na verdade, não tendo manifestado num heróico impulso a sua indignação pelo vil assassinato do seu próprio Comandante-em-Chefe há apenas dois anos, deixaram de contar como força de confiança e respeitabilidade. São um bando de energúmenos uniformizados, apenas cientes do seu papel consumidor de recursos de um Estado que lhes dá cama, mesa e um totalmente imerecido estatuto social.

 

Foi esta a minha experiência durante os dias de uma revolução que não o é, pois não vejo qualquer viabilidade nos megalómanos projectos redentores propalados pelos seus próceres. Não terão os idolatrados couraçados, nem o tal "bacalhau a pataco". O pão não será praticamente gratuito e agora definitivamente no poder, os grandes interesses económicos farão sentir pesadamente a sua mão estranguladora dos direitos dos operários. Estou seguríssimo de uma futura e radical repressão nas ruas, de mais sangue, opressão da imprensa, fraude eleitoral, esbulhos e ataques à integridade pessoal de muitos daqueles que dentro em pouco se recordarão amargamente dos tempos em que eles próprios de tudo se serviram para espezinhar quem durante décadas lhes deu liberdade de expressão, paz social e progresso material. O tempo o dirá.

 

6 de Outubro de 1910

 

Os acontecimentos dos últimos dias, forçaram-me a tomar a drástica decisão de anular os restantes compromissos aprazados muito antes do início desta viagem. Era suposto visitar o Porto e as suas adegas, assim como Leixões e uma parte do Minho, onde tenho alguns amigos. Desisto. Tudo o que vi nestas últimas horas é demasiadamente angustiante e digo-o sem pestanejar, fez com que perdesse o respeito por este velho e fiel aliado que tantos serviços prestou à nossa pátria, sem que muitas vezes nós, ingleses, o reconhecêssemos. Agora é tarde, não ajudámos a quem muito devíamos e que neste momento de desgraça, ruma em direcção a Inglaterra, onde esperam encontrar abrigo.  Estou certo de que saberemos acolhê-los com a merecida dignidade e que por fim estejam a salvo destes energúmenos que agora em Portugal ditam a sua lei.

 

Um pouco por todo o lado surgem grupos perfeitamente identificados com o PRP e as suas ramificações carbonárias - ou será exactamente o inverso? - que procedem a depredações e violências de todo o tipo, encarniçando-se especialmente contra os edifícios religiosos e a propriedade de alguns destacados responsáveis do regime deposto. Os padres continuam a ser humilhantemente despidos das suas vestes em plena rua, são tosquiados como se fossem gado e sovados a murro, estalo ou bastonada, sob o olhar indiferente de uma Guarda Municipal ainda ontem derrotada pela própria inércia. Ardem conventos e claro está, os senhores do momento aproveitam para fazer mão baixa nos valiosos bens que encontram portas  adentro. Missais preciosos, iluminuras, incunábulos, tudo é roubado ou destruído. Após os saques, na calçada estão já em cinzas telas de mestres portugueses dos séculos XV ao XVIII e figuras religiosas de santos em talha são despedaçadas sem olhar, pelo menos, ao seu valor patrimonial. Outra nota absolutamente iníqua e revoltante, é o facto do surgimento de bandos armados que confiscam as bandeiras nacionais, ateando-lhes fogo em crepitosos autos-da-fé nos Restauradores e Rossio e tudo isto, sem que o pusilânime exército tome uma atitude. É a selvajaria mais infrene que campeia em toda a sua violência primitiva, no meio de dichotes e cantorias com as estrofes mais reles que possamos imaginar. As freiras são tratadas como se prostitutas fossem, sendo despojadas dos seus bens e postas na rua. É este o novo Portugal. Um pouco por todo o lado, meliantes armados de martelos, destroem as coroas que encimavam os escudos nacionais dos edifícios públicos e isto acontece, segundo alguns decentes transeuntes me disseram, para o costumeiro fingimento futuro de obra feita. Assim, dentro de algumas décadas, um povo estupidificado por uma pretensiosa elite de escroques, pensará que tudo aquilo que existe, tem a autoria dos santarrões adoradores da estrangeira Marianne. Simultaneamente, grupos de caceteiros invadem as residências de conhecidas figuras da sociedade lisboeta, forçando os atemorizados proprietários a fazer sumir sob panos negros, os brasões que durante séculos adornaram as fachadas. Parece aos olhos do mundo que o país morreu ou está de luto e sem disso ter a consciência, são os próprios cangalheiros que fazem a festa e se ufanam com o funeral das suas próprias vidas de homens livres. Vou partir, nada mais tenho para fazer aqui, num país que se rebaixou à condição de tugúrio mal frequentado. Até os cabecilhas do novo regime já assumiram sem pejo a sua herança de mau agouro, pois organizam-se procissões comandadas pelo directório republicano, que ao cemitério do Alto de S. João, situado nos arrabaldes da cidade, vão prestar homenagem aos regicidas de 1908. E nem é preciso procurar muito para encontrar a perfeita sintonia que impera naquelas hostes, uma vez que os retratos dos assassinos surgem nas lacrimosas pagelas profusamente distribuídas pelo partido, lado a lado dos mais conhecidos dirigentes, como o Costa, o Almeida ou o Bernardino. Estranhamente, fazem-me de imediato recordar uma certa espécie de gente que tive a ingrata oportunidade de observar na Sicília, quando da minha visita aos monumentos mais importantes da antiga Magna Graecia. O mesmo olhar turvo e reservado, o semblante raivoso e a arrogante aspereza nas atitudes, submetendo qualquer acto a senhas e contra-senhas.  São estes os grandes homens que querem governar Portugal e para confirmá-lo, já fizeram içar por todo o lado o miserável trapo do partido, pretendendo vê-lo consagrado como nova bandeira nacional. Chegarão a tanto?

 

A caminho do cais, continuam as mesmas cenas acima descritas e pasme-se, uma reedição tardia do Carnaval, mas desta vez, em Outubro. Surgem por todo o lado crianças com aspecto de macaquinhas de feira vestidas de ... república! Incrível mas absolutamente verdadeiro, mais parecendo viciosos duendes mascarados de carrascos de boné vermelho, tal o grotesco das figuras. Tudo isto é bastante ordinário e descoroçoante e passa-se já em pleno século XX! Atrasados, atrasados, o rei Carlos tinha razão quando afirmava que há males que de longe vêm. 

 

Agora, uma das primeiras atitudes das autoridades é rastejar perante o país que odiaram durante décadas. Suprema hipocrisia, protestam a sua fidelidade aos ingleses, fazem por esquecer quarenta anos de agravos e de suicida loucura que nos obrigou a um indesejável Ultimatum.  Suspeito que cairão em todo o tipo de torpezas para conseguirem o reconhecimento internacional que ninguém no seu perfeito juízo parece, por agora, disposto a conceder-lhes, tal a má reputação desta cambada.

 

Tendo finalmente embarcado para Portsmouth, fico a pensar como será este país dentro, digamos, de  cem anos? Terá conseguido esquecer toda esta violência, desperdício de energia e falta de respeito por si próprio e por uma história sem igual? Terá concedido de forma pacífica e ordeira a independência ao seu imenso império colonial que logicamente um dia se emancipará tal como a monarquia o soube fazer relativamente ao Brasil? Terá finalmente atingido o nível de desenvolvimento dos seus parceiros europeus de quem lenta mas inexoravelmente se ia aproximando? Consolidará uma democracia, ou passará por uma ininterrupta e mortífera série de revoluções, golpes de Estado, assassinatos de homens públicos, ruína financeira, corrupção e generalizada miséria?

 

Não acabará tudo isto pela instauração de uma ditadura que se eternizará no tempo e nos espíritos? 

 

Já a caminho da barra, olhei em direcção à popa e pela última vez vi Lisboa. Pareceu-me estranha. Já não era a mesma cidade refulgente de luz branca que tinha encontrado há apenas alguns dias. O sol poente tingia-a de uma luz avermelhada, como se um imenso incêndio a abrasasse. 

 

 

publicado às 10:30

108 Anos

por João Almeida Amaral, em 01.02.16

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Faz hoje 108 anos que através de um duplo homicídio as forças republicanas impuseram o seu caminho a todo um povo. 

Celebra-se a implantação da República com um feriado Nacional, mas esse golpe de Estado, tem por base um Regicídio. Provavelmente à luz dos republicanos seria legítimo matar o Presidente da República, hoje, para reimplantar a Monarquia. 

Entendo que este tema, não fosse discutido durante o Estado Novo, entendo também que para os revolucionários de esquerda, este tema não fosse discutível, mas chegou a altura, da sociedade civil ,discutir com honestidade ,este golpe de Estado nunca referendado.  

 

 

publicado às 13:26

A República está caduca

por João Almeida Amaral, em 20.01.16

 

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A 4 dias das eleições presidenciais, estou perante um dilema que me deixa preocupado. Sou adepto de um sistema de Monarquia Constitucional , porque julgo ,mais moderno, mais justo e economicamente mais sustentável que a velha República, no entanto, nunca deixei de exercer o meu dever cívico, de exprimir a minha opinião nas urnas.

Desta vez , mais do que nunca, as eleições para a Presidência da República ,apresentam um rol de candidatos paupérrimos. Não sei os nomes de todos, mas os que são mais mediatizados, são por si, assustadores para mim.  

Começo pelo homem do óculos , não sei o nome , parece Groucho Marx, diz umas coisas vagas . Que me perdoe mas é uma perca de tempo . O Morais, tem um mérito é o Sr. Corrupção , não há dúvida que se faz ouvir mas sempre no mesmo tema, uma obsessão talvez. O "Tino" traz-me o Douro à memória , simpático, um homem do campo Duriense, mas que só por esse facto não não preenche os requisitos para ser Presidente da República. Estava a esquecer-me da Marisa e do Padre que já o não é , mas esses nem comento. 

O Nóvoa é um sectário , não se assume como esquerdista e para cumulo há duvidas sobre a sua formação académica, não tem ideias e julga que é candidato a 1º ministro. Maria de Belém , não será má pessoa , mas sofre do problema típico do partido onde milita, divisionista. Para fim de campanha o tema das subvenções mancha-lhe o caminho.

Marcelo, bom o Marcelo eu nunca escondi, que não gosto do estilo, mas parece-me apesar de tudo, que é o homem mais preparado, para a função . O candidato mais credível para mim é Neto mas a idade é um problema.

Em consciência dia 24 estou perante um dilema.

A República está caduca.

Nenhum destes candidatos tem perfil para a função.

PS.

A morte de Almeida Santos confirma o estado da República,as elites ,aperaltaram-se para ir a Basílica da Estrela.

Não entendo,  se o defunto era ateu e não queria cerimónia religiosa, porque havia  o corpo de ir para uma Igreja.

Vícios de uma República caduca .

 

publicado às 11:40

Das presidenciais

por Samuel de Paiva Pires, em 07.04.15

Se há coisa que o tacticismo e a qualidade dos até agora alegados candidatos a Belém, à esquerda e à direita, podem fazer, é permitir a muita gente compreender a superioridade da monarquia na selecção do Chefe de Estado. É que, atendendo aos tempos que vivemos, na verdade, Cavaco Silva até tem razão quando afirma que o próximo Presidente da República deve ter experiência em política externa, e entre Henrique Neto e Sampaio da Nóvoa, ou Santana Lopes e Marcelo Rebelo de Sousa, aquela não abunda - bem pelo contrário. Na impossibilidade de termos um rei, sempre ficávamos melhor servidos com Paulo Portas, Durão Barroso, António Guterres ou António Vitorino.

publicado às 11:06

Presidentes "de todos os portugueses"

por Nuno Castelo-Branco, em 22.08.14

Quando há pouco mais de um século a Monarquia foi violentamente derrubada, um dos argumentos mais pesados repetia à exaustão o escândalo da despesa que a manutenção da instituição representava. O rei, a rainha e restantes membros da Casa Real eram publicamente humilhados, sendo acusados de roubo e de condenarem centenas de milhar de portugueses à fome, à sobrevivência em alfurjas imundas e na melhor das hipóteses, à fuga para o Brasil. Sabemos o que depois sucedeu. Contas feitas, levantamento da questão dos Adiantamentos e os republicanos espantados por aquilo que encontraram. Afinal, a Coroa portuguesa era aquela cuja dotação era a mais reduzida de toda a Europa, ficando mesmo atrás das suas homólogas da Sérvia, Bulgária, Grécia e dos países nórdicos. Pior ainda, dos bens privados do monarca - o património da Casa de Bragança, cujo furto seria republicanamente legalizado por Salazar - saía uma boa parte do dinheiro que pagava as despesas de representação do Estado. Nunca nenhum dos bonzos republicanos por uma vez que fosse se atreveu a mostrar a este crédulo povo, o engano deliberado do comboio da propaganda que chegaria à estação final do assassínio em praça pública.

 

Num daqueles episódios que a tornaram estimada pelos portugueses, um dia a rainha Maria Pia impacientou-se com o dilúvio de críticas a respeito de gastos em aparatos. Naquele momento, o móbil era o grande retrato pintado por C. Duran, uma magnífica obra que se encontra na Ajuda. Diziam os críticos beneditinos que Sua Majestade apresentava-se despojada de qualquer jóia da Coroa, sendo isso um desleixado desrespeito para com a dignidade da instituição que também representava. Como era seu hábito, D. Maria Pia teve afiada réplica, dizendo-lhes  que ..."eu não preciso de usar jóias, eu sou a rainha". Por aquilo que o retrato ainda nos mostra, as cores nacionais bastavam-lhe para o efeito pretendido.

 

Ontem noticiou-se a contribuição da banca para as campanhas presidenciais, como se tal coisa fosse uma novidade. 

 

Todos sabíamos que os presidentes da república, sejam eles Mários, Jorges ou Aníbais, desde sempre contaram com o desinteressado financiamento de entidades que para todos os efeitos mandam em Portugal, os tais homens que são "donos disto tudo". Nada mais nada menos, senão maningues saguates para moleques de serviço. Pior ainda, a par de Robertos do teatro da finança, os presidentes são produtos que como Emídio Rangel gostosamente se gabava, eram susceptíveis de venda ao eleitorado ou de forma mais crua, sabão macaco impingido  como sucedâneo de banhos de leite de burra. Após o pecúlio vertido nos cofres dos candidatos e sendo um deles infalivelmente eleito, logo surgem compensações sob as capciosas fórmulas de embaixadas banqueiras capazes de dissolverem maiorias políticas, obrigarem os governos - com a assinatura ou silêncio presidencial - à extorsão de PPP e a uma miríade de contratos ruinosos, a clara imposição de uma política externa desastrosa e todo o tipo de encartes de camaradas em lugares estratégicos do poder.

 

É esta a verdadeira raiz da carcomida árvore da república. Como em relação a si próprio dizia o general Francisco Franco (y Bahamonde), eles têm isto "atado e bem atado".

 

* O sr. Guterres vai ficar sem emprego na ONU, mas já se coloca na fila para uma desinteresseira colaboração na solubilidade dos nossos males. 

 

 

publicado às 09:28

Grotesco institucional

por Nuno Castelo-Branco, em 15.05.14

A visita presidencial a Pequim, foi inevitavelmente salpicada por ditos picarescos com concubinas pelo meio e uns tantos achados espirituosos por quem devia ter tento na língua. A China não é propriamente um daqueles episódios estatais surgidos nas últimas décadas. Acendamos um pauzinho de incenso, implorando para que por lá não se preocupem em traduzir  as pilhérias presidenciais.

 

A reportagem que a RTP transmitiu há poucos minutos, informou-nos de algo até agora completamente desconhecido, roçando o insólito: a Cidade Proibida é "o maior complexo presidencial do mundo!" Acreditei piamente ter sido mais uma daquelas patacoadas a que os pivots televiseiros nos habituaram, mas afinal a coisa veio na esteira de uma certeza veiculada por douta voz, nada mais nada menos do que a do Sr. Cavaco Silva. Erguendo as sobrancelhas e em tom peremptório, declarou isso mesmo: "a Cidade Proibida é o maior complexo presidencial do mundo!"

Depois das ordinarices, prepotências, regabofe orçamental, usos e abusos de Soares. Após a clara inépcia, patética choraminguice, dissolventes escarros na legalidade constitucional e fuga às obrigações de um qualquer Sampaio, agora temos isto, esta glabra calamidade ambulante, ainda por cima agravada pela sempre presente cônjuge. Evitem falar, caramba.

Não sei do que as forças armadas estão à espera para nos devolverem a legalidade institcional que a Portugal foi escabrosamente roubada em 1910. Basta!

publicado às 13:32

A Itália do não-compromisso histórico

por João Pinto Bastos, em 17.02.14

Dizia um conhecido colunista italiano que a Itália é pior do que o Terceiro Mundo. A avaliação é, em si, de uma clareza à prova de bala. A verdade é que desde a unificação política, lograda no século XIX, a Itália foi amiúde incapaz de organizar um modelo de Estado que suprisse, com suficiência, os problemas políticos de uma comunidade, por norma, frágil e quebradiça. Um tormento que, volvidos tantos anos, continua a dar sinais de não esmorecer. A semana que passou foi, a esse título, um boníssimo exemplo da sobredita maleita. Para não variar, os italianos ficaram, pela enésima vez, sem Governo. A coisa explica-se em pouquíssimas palavras: o Governo em exercício de funções não comprazia os egos ambiciosos dos seus chefes de fila. Cumprindo a vetusta tradição de uma República já velha, a partidocracia empurrou para fora de campo um primeiro-ministro que, inábil e pouco talentoso, só teve tempo para afirmar que se "alguém quer o meu lugar, que o diga". A frase resume o teatro de marionetas vigente em terras mazzinianas. Sai Letta, acoimado de incapaz pelos seus correligionários, e entra Renzi, que só vê poder, imagem e dinheiro à frente da sua jovial carantonha. A lógica é simples e paradigmática: ou o Governo serve os interesses da partidocracia, distribuindo as costumeiras prebendas aos comensais de sempre, ou, então, a porta será, novamente, a serventia da casa. Entretanto, no meio deste festival de egos ensoberbecidos, a economia italiana, presa de múltiplas insuficiências, não ata nem desata. E é aqui, neste quesito em particular, que a situação tenderá a complicar-se. É que o euro, não obstante a hegemonia tangencial exercida pelos teutónicos, é um assunto ainda por deslindar. Tanto é que a recente euforia em torno de uma suposta recuperação da economia europeia - que tem, de facto, alguma verdade - pode cair facilmente por terra com a emergência, em qualquer lado, de um "cisne negro" que tombe de vez a frágil arquitectura da moeda única. Uma confusão pespegada, portanto. No fundo, o que a questão italiana tem revelado à saciedade é que o país dos De Gasperi e dos Berlinguer retrocedeu a um estado de infância ininteligente, no qual não há realidade alguma que sobrepuje os calculismos de ocasião. Pensar que há algumas décadas atrás a Itália possuía um Partido Comunista que era, contra todos os prognósticos, capaz de dialogar e pactuar com a direita democrata-cristã, e que, hoje, volvidos alguns anos, o centro-esquerda e o centro-direita vivem em arrufos constantes, faz-nos pensar até que ponto a política italiana se tornou numa imensa ironia. Uma ironia em que o maior perdedor é, como não poderia deixar de ser, o cidadão comum.

publicado às 17:49

D. Duarte de Bragança em Macau

por FR, em 23.10.13

Aqui fica uma excelente entrevista conduzida pelo jornalista da TDM Marco Carvalho durante a visita de D. Duarte de Bragança a Macau, onde se falou, entre outros assuntos, da crise económica e política que se vive em Portugal, da possibilidade de transição para um regime monárquico, da democracia, das relações entre Portugal e Macau/China, de Timor, da descolonização Portuguesa, e do caso da bandeira monárquica hasteada no consulado de Macau em 2010.

 

 

É a evidência da validade cada vez mais actual do ideal monárquico, mas também a prova de que um jornalismo inteligente, isento e descomprometido ainda é possível.

publicado às 15:07

A anarquia é apenas "uma grande confusão"

por Samuel de Paiva Pires, em 25.07.13

 

G. K. Chesterton, Disparates do Mundo:

 

«Só há dois tipos de estruturas sociais possíveis: os governos pessoais e os governos impessoais. Se os meus amigos anarquistas se recusam a aceitar regras, terão de aceitar quem os reja. A preferência pelo governo de base pessoal, com o correspondente tacto e flexibilidade, chama-se monarquismo; a preferência pelo governo impessoal, com os seus dogmas e as suas definições, chama-se republicanismo. Recusar reis e credos em geral chama-se parvoíce; pelo menos eu não conheço outra palavra mais filosófica para designar tal posição. A pessoa pode deixar-se conduzir pela esperteza e a presença de espírito de um governante, ou pela igualdade e a justiça comprovada de uma lei; mas tem de ser conduzida por um ou por outra, porque a alternativa não é uma nação, mas uma grande confusão.»

publicado às 12:48

Sintomas da débâcle (2)

por João Pinto Bastos, em 12.06.13

1) A trajectória de subida das obrigações do Tesouro português voltou à carga. A responsabilidade deve ser repartida, mas há nestes dados periclitantes um sinal claro, por parte dos investidores internacionais, de que o clima de bonança propagado pela bazooka do BCE está a terminar. Os desentendimentos no seio da troika, a relutância alemã em aprofundar a união bancária, e a derrapagem económica dos países de "programa" ajudarão, também, à consecução definitiva do desastre anunciado.

 

2) Dilma e Passos reafirmam o aborto acordográfico para 2015. E a sociedade civil portuguesa? Ficará impávida e serena a assistir à destruição da língua a golpes decretistas de gente que não sabe ler nem escrever? Sim, o problema é mesmo esse. Este aborto político só avança porque 1) somos governados por pechisbeques iletrados, 2) a cidadania (?) é um amontoado de indivíduos anestesiados pelo próximo episódio do Big Brother Vip. Como é bom de ver a problemática da língua é um assunto alienígena para esta gente. É penoso observar o soçobrar lento e inexorável do país.

 

3) O 10 de Junho, na sua imensa profusão de inanidades, é o retrato fiel do ocaso desta III República. Uma data que, no fundo, concita o que de pior há no palavrório regimental. Muita empáfia e pouca lisura. Longe vão os tempos em que uma data deste calibre recebia discursos de um Jorge de Sena. Outros tempos, de facto. É, pois, difícil augurar o que quer que seja de um país governado por gente deste jaez. Nunca como hoje foi tão verdadeira a asserção de Rodrigo da Fonseca de que viver entre brutos é muito triste. Portugal é assim. 

publicado às 00:37

Portugal de Quatro

por FR, em 01.06.13

O Digníssimo, Excelso e Venerával Presidente da República Portuguesa, Dr. Aníbal Cavaco Silva, diz que “a entrada da Turquia na União Europeia - que, como é sabido, Portugal sempre defendeu - enriquecerá a Europa com a sabedoria milenar de um povo com uma longa História”

 

Desconheço esse Portugal em nome do qual Vossa Excelência fala, Senhor Presidente. O Portugal real é representado pelo Senhor Dom Duarte, Rei de Portugal, coroa da sabedoria milenar de um povo com uma longa História.

 

O Digníssimo, Excelso e Venerával Presidente da República Portuguesa, Dr. Aníbal Cavaco Silva, voltou a elogiar o papel que a Turquia tem desempenhado em favor da estabilidade, segurança e paz, bem com o seu contributo para a resolução de "questões tão complexas e tão dramáticas, como a que se vive actualmente na Síria".

 

Desconheço esses conceitos de estabilidade, segurança e paz dos quais Vossa Excelência fala, senhor Presidente. Desconfio também, Senhor Presidente, que Vossa Excelência desconheça a situação que se vive actualmente na Síria. Sobressai sobremaneira a sua manifesta ignorância, particularmente quando comparada com a dignidade da posição do Senhor Dom Duarte, Rei de Portugal, que foi a única figura pública de relevo neste país que teve a inteligência e a coragem de impôr a razão à barbárie e mover esforços no sentido de promover a verdadeira estabilidade, segurança e paz na Síria.

 

Atrevo-me por vezes a imaginar quão diferente seria a nossa política externa se sob o comando de um Chefe de Estado digno da memória desta nação.

 

O Digníssimo, Excelso e Venerával Presidente da República Portuguesa, Dr. Aníbal Cavaco Silva, convidou os empresários e os investidores turcos a olharem para Portugal como um estado-membro da União Europeia que lhes pode oferecer um ambiente favorável aos seus negócios e excelentes oportunidades de investimento e cuja proximidade linguística e cultural com países como o Brasil, Angola e Moçambique constitui, além disso, um activo particularmente importante em matéria de cooperação triangular.

 

Conheço bem demais esse Portugal estado-membro. Um verme institucional de olhar mendigo e mão estendida. Ora que seja então a porta de entrada na União Europeia para os Turcos, já que somos o tapete estendido que é espezinhado por toda a sorte de bandidos e rufias; já que somos tubo de ensaio para as mais aberrantes experiências da engenharia social. Sejamos, sim, porta de entrada na União Europeia para os Turcos. Toda a honra e toda a glória!

 

E sejamos ainda a ponte para o Brasil, Angola e Moçambique. É que depois daquela brilhante decisão de tribalizar a nossa língua, até já falamos praticamente o mesmo dialecto!

 

Desde que, de forma vergonhosa, abandonámos as nossas províncias ultramarinas, que lhes temos as costas viradas. Mas agora, propõe o Digníssimo senhor Presidente, devemos oferecer aos ilustres empresários turcos o serviço de mordomia que lhes abre respeitosamente as portas de Angola. Bestial, senhor Presidente!

publicado às 16:57

Um discurso malfadado

por João Pinto Bastos, em 25.04.13

Não percam demasiado tempo a zurzir em Cavaco. É inútil. Se há algo que o discurso do preclaro presidente ensina, concordando ou discordando do seu conteúdo (eu tendo a concordar com alguns aspectos), é que a civilidade política só emerge numa monarquia constitucional. Cavaco pouco ou nada interessa. Não ata nem desata. O fulcro da questão prende-se com a necessidade inadiável de assegurar um cimento aglutinador, que proteja a comunidade política dos inumeráveis achaques dos seus membros mais agitados. That's the question.

publicado às 17:05

"Navio ao fundo"

por Samuel de Paiva Pires, em 10.03.13

Alberto Gonçalves, Navio ao fundo:

 

«Não haja dúvidas. Sempre que um governante comete uma alusão à gesta dos descobrimentos, à epopeia marítima, às gentes que deram novos mundos ao mundo e aos sonhadores que viram para além do Bojador, é certo que o sujeito ficou sem argumentos ou nunca os teve logo de início. O recurso ao patriotismo, para cúmulo se "fundamentado" em proezas remotas, é um sinal manifesto de abdicação. Invocar Vasco da Gama para compensar as massas do saque fiscal é tão pertinente quanto isentar os gregos da loucura despesista mediante referências a Aristóteles. Trata-se de um logro e, pior, de um aviso: quando o habitualmente circunspecto dr. Gaspar adopta a veneração das glórias do passado é lícito recear que até ele percebeu a miséria do presente e desistiu de remendar o futuro.»


As histórias do Dr. Soares:


«Não sou monárquico, mas dado o gabarito dos nossos republicanos praticamente não sobra alternativa. (...)


Agora a sério, é rara a semana em que o dr. Soares não se esforce por provar que a sabedoria da idade é uma força de expressão e, com frequência, uma completa patranha. Nesta e noutras questões, a pergunta que se impõe é: o dr. Soares pretende enganar quem? E a resposta é: descontados três ou quatro fervorosos da Carbonária, provavelmente apenas a si próprio. Por mim, gosto que a imprensa corra a ouvi-lo a pretexto de diversos assuntos, e só lamento que não o faça a pretexto de todos.»

publicado às 13:04

Acusada!

por Nuno Castelo-Branco, em 01.02.13

 

A república é acusada de assassínio do Chefe do Estado, de terrorismo bombista, de total desrespeito e subversão da ordem constitucional. É acusada da clamorosa derrota militar na I Guerra Mundial. É acusada da fuga de centenas de milhar de portugueses temerosos da violência, prepotência e inépcia da gente do regime do Costa. É acusada do ataque ao corpo eleitoral nacional, é acusada de coacção física e moral sobre a população, é acusada de falsificação de eleições, da repressão dos sindicatos, da imprensa e da Igreja. É acusada da ruína económica e financeira. É acusada da mais longa ditadura da nossa história, da polícia política, da censura. É acusada da vergonhosa, criminosa e pretensa descolonização, é acusada de causadora do genocídio de populações em África e em Timor. É acusada do abandono de milhares de soldados portugueses em três dos antigos territorios ultramarinos, é acusada das ruinosas cedências feitas para o seu apressado ingresso político na CEE. É acusada do desbaratar dos recursos da economia portuguesa. É acusada de ceder perante a organização de uma infrene cleptocracia institucional que esbulha o país em proveito de uma ínfima minoria de sátrapas. É acusada de fazer desaparecer o que nos resta da independência nacional conseguida através dos sacrifícios de mais de trinta gerações. 

 

Este regime não é legítimo

publicado às 23:00

Os "consensos, concessões e diálogos" da barriga-Sampaio

por Nuno Castelo-Branco, em 19.01.13

Uma das mais conhecidas gargantas fundas do esquema vigente, vai doseando as suas salvíficas aparições de modo a não ser confundido com o seu palrador antecessor em Belém. Julga que desta forma se torna mais credível e por incrível que nos possa parecer, moderadamente audível.

 

Diz ele que andamos a perder os hábitos de "construir e alimentar  a coesão nacional  e intergeracional que tem estado na base do modelo social". Que grande modelo este, gizado no ocaso da 2ª república e que o trambolho em que vegetamos se limitou a ampliar e confiscar como coisa sua, ainda mais estatal e empenhadamente à cata da bolsa alheia. Bem matutado, este desabafo ex-presidencial vai precisamente contra o princípio que o homem um dia sonhou representar no repimpanço dos cadeirões de Belém: o da continuidade, ou por outras palavras, aquilo que os curraleiros subversivamente derrubaram em 1910. Quando agora tudo parece perdido, Sampaio lembra-se das "gerações vindouras", precisamente aquelas em quem a sua geração nem por um segundo pensou antes de optar por um edifício do poder que apenas à gente nascida nos anos 30 e 40 beneficiaria. 

 

Sampaio entrou calado e saiu mudo de todos os episódios dos tempos de Guterres - um desastroso contraponto ao cavaquismo, tão ou ainda mais desastroso como este havia sido durante uma década -, franziu o sobrolho a Barroso e parlapatonou em amuos e institucionais fitas de terceira categoria. Sampaio achincalhou Santana até mais não poder e culminou a sua catastrófica passagem pela "veneranda" magistratura, assinando de cruz todas as megalómanas aleivosias governamentais do seu camarada José de Paris. 

 

Tudo o que dali se escuta não passa de ruído proveniente de um sistema digestivo ao contrário. Imaginem a cena. 

 

publicado às 15:20

Aritméticas falhas (2)

por João Pinto Bastos, em 15.01.13

A descida dos juros tem, em simultâneo, um ponto que deve ser analisado com algum cuidado: nada indica que daqui a uns meses a tendência de descida não seja revertida. Mais: o regresso aos mercados poderá ser marcado pela subida do custo a que se financia a República. Coisas comezinhas para os Lellos, já se sabe, mas que devidamente sopesadas importam e muito aos indígenas. Ademais, e como eu gosto sempre de ler quem sabe, o Jorge Costa refere, no Facebook, um estudo do Banco de Portugal que indica que "a partir do final de 2013,o regresso gradual a financiamento de mercado por parte do Estado português, deverá implicar uma subida no custo de financiamento em 2014". Em resumo, a demagogia dos juros baixotes é uma valente treta impingida aos autóctones pouco estudiosos. Se quisermos, e eu não quero nem desejo tal coisa, manter o "modus vivendi" que mantivémos até aqui teremos forçosamente de contrair mais dívida, com juros mais elevados, até que, num belíssimo dia, a realidade bata estrondosamente nas nossas caras assombradas. 

publicado às 14:19

Annus horribilis

por Nuno Castelo-Branco, em 27.12.12

Há precisamente vinte anos, a Rainha Isabel II anunciava ao mundo o seu pesar por aquilo que considerava ter sido um annus horribilis. Há apenas uns meses, dissipadas as sombras que momentaneamente minaram a imagem da Monarquia, ei-la novamente no balcão de Buckingham, com milhões aguardando o momento para saudar a passagem dos sessenta anos do seu reinado.

 

Em 2012, João Carlos I teve a sua versão do annus horribilis. Uma patética caçada fora de qualquer cogitação, um infantil affaire com uma vadia sem um mínimo de presença ou dignidade - até nisso o Rei é um típico majo espanhol - a não ser pelas piores razões possíveis e imaginárias, acompanhadas pelos dislates de um indigno genro que está à mercê da justiça - na Monarquia espanhola foram lestos quanto a este assunto, evitando-se a republicanamente normal praxis portuguesa -, lançaram umas tantas nódoas sobre um reinado impecável. João Carlos I pode ser considerado como um dos grandes da História de Espanha, um país que tendo apenas metade da já muito longeva existência do Estado português, soube permanecer fiel ao seu legado de séculos. Sem desatar a rir a bandeiras despregadas, alguém se atreverá a comparar João Carlos I com Soares, Sampaio ou Cavaco Silva?

 

A verdade é que João Carlos cometeu grandes erros privados, quando institucionalmente apenas lhe podem ser apontadas públicas virtudes. Teve o seu annus horribilis? Teve. Mereceu-o? Certamente.

 

Como ultrapassá-lo? Simplesmente praticando aquilo que há trinta anos afirmou ao príncipe Filipe: "a Coroa ganha-se todos os dias!" Dentro de um ou dois anos saberemos a resposta.

 

Pois cremos que é precisamente o que fará. Se para o Rei de Espanha foi o ano de 2012 terrível, dez milhões de portugueses poderão lamentar-se da mesma coisa, alargando a contagem temporal a um século. Factos são factos.

publicado às 17:38

O fetiche da eliminação dos feriados

por Samuel de Paiva Pires, em 14.12.12

Aqui fica o meu artigo de hoje para o Diário Digital, publicado também no blog da Real Associação de Lisboa.

 

 

(1 de Dezembro de 2012, fotografia cordialmente cedida pela Real Associação de Lisboa)

 

No meio da catástrofe que se abateu sobre Portugal e os portugueses, uma tendência fetichista com a eliminação dos feriados emerge entre os que nos vão sujeitando a uma penosa navegação à vista. Ilustrativa quanto baste da perigosidade do Leviatã e dos que o manobram praticando o velhinho princípio cesarista de divide et impera, esta tendência torna-se ainda mais preocupante quando colocada em perspectiva nos contextos da intervenção internacional a que o consulado socrático infelizmente nos trouxe e da crise da União Europeia que muitos parecem querer ultrapassar com uma fuga para a frente em direcção a um federalismo muito pouco federalista e democrático, o que me traz à memória uma célebre gaffe de João Pinto, antigo jogador do Futebol Clube do Porto: “Estávamos à beira do abismo e fizemos o que tínhamos a fazer: demos o passo em frente.”

 

Não constando do memorando de entendimento com a troika ou do programa do actual governo quaisquer referências à redução do número de feriados, não deixa de ser intrigante assistir a esta tendência apresentada como forma de penitência, visando a redenção perante os parceiros internacionais e ajudando a reforçar ideias perigosas como a de que em Portugal trabalha-se poucas horas, quando na verdade trabalhamos mais horas que a média europeia, ou a de que a culpa da crise que vivemos é da nossa total responsabilidade, quando se é certo que os governantes erraram em muita coisa nas últimas décadas, também não deixa de ser porque o sistema financeiro europeu e as políticas da União Europeia contribuíram em larga medida para os desvarios que nos trouxeram ao estado a que chegámos.

 

Primeiro foram os quatro feriados que o governo achou por bem negociar em sede de concertação social, como se esta tivesse qualquer mandato para tal – o que é revelador não só da falta de conexão entre as confederações que ali têm assento e a nação, mas também dos tiques autoritários que perpassam este governo. Há dias, foi notícia a intenção do governo de tornar o 25 de Abril um feriado de celebração opcional nas embaixadas, missões bilaterais e serviços consulares portugueses. Sendo o feriado fundacional do regime, não deixa de ser estranho que a sua celebração deixe de ser obrigatória nas representações externas do estado português, o que em conjunto com a eliminação do feriado do 1.º de Dezembro só vem agravar ainda mais a preocupante propensão para não nos darmos ao respeito na arena internacional.

 

Mas mais grave que isto é este fetiche parecer-me estar enquadrado no processo de apagamento da identidade portuguesa em curso, sobre o qual escrevi no início deste ano. Como se não bastasse o absurdo Acordo Ortográfico que vai desfigurando a língua portuguesa, o governo ainda se considera no direito de dispor a seu bel-prazer de celebrações de mitos que dão corpo à nossa identidade nacional, à nossa pátria, não hesitando inclusive em enveredar pelo já referido dividir para reinar, no qual caíram monárquicos e republicanos a respeito do 1.º de Dezembro e 5 de Outubro. Este processo não é fruto do mero acaso. Trata-se de um ataque despudorado ao Estado-nação, que visa abrir brechas para permitir, em primeiro lugar, o enfraquecimento e manipulação da identidade nacional, e em segundo, o reforço da lealdade e identificação com a União Europeia, o que poderá vir a reflectir-se na tentativa de implantação de uma suposta identidade supranacional que muito facilitaria o trabalho aos eurocratas que, não satisfeitos com a fragmentação a que a maioria das nações e sociedades europeias foram e estão a ser sujeitas, parecem apostados em dar o passo em frente em direcção ao abismo. Não estou com isto a dizer que a União Europeia não deve avançar no sentido de uma federação. Mas conhecendo-se o historial do método comunitário, apenas suspeito fortemente que o processo que levará a uma federação europeia aprofundará o défice democrático e terá muito pouco respeito pelas identidades nacionais.

 

Desenganem-se os que julgam, como salienta Pierre Manent, que uma nação “é um traje ligeiro que se possa pôr e tirar à vontade, ficando-se na mesma.” Escreve o autor francês que “Ela é esse todo no qual todos os elementos da nossa vida se reúnem e ganham sentido.” Como assinala Roger Scruton, é a cultura que nos une e a pátria é o lugar onde regressamos, nem que seja apenas em pensamento, no fim das nossas deambulações. Por mim, continuo a subscrever Pessoa quando afirma que “O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado” e apenas acrescento que a pátria está acima do estado, não podendo ser aprisionada por este nem por nenhum de nós e sendo, na realidade, o mito que fundamenta o burkeano contrato entre os mortos, os vivos e os ainda por nascer. Porque recordando ainda Miguel Torga, a pátria é “o espaço telúrico e moral, cultural e afectivo, onde cada natural se cumpre humana e civicamente. Só nele a sua respiração é plena, o seu instinto sossega, a sua inteligência fulgura, o seu passado tem sentido e o seu presente tem futuro.”

 

Que actualmente sejamos liderados por um governo que tem revelado esforços muito tímidos quanto a fazer aquilo para que foi eleito e que ambos os partidos da coligação prometeram em campanha eleitoral – reformar o estado –, preferindo a velha e estafada receita do aumento de impostos, parece-me ser uma vicissitude de um regime democrático, que não deixa de reforçar o descrédito dos agentes políticos e, consequentemente, do regime. Mas que numa das mais graves horas que enfrentamos colectivamente, ainda sejamos sujeitos a uma ofensiva anti-patriótica, é somente trágico.

publicado às 18:49

Da República que temos...

por Pedro Quartin Graça, em 13.10.12

José Aníbal Marinho Gomes responde publicamente, através do blog ESTADO SENTIDO, ao artigo "Viva a República", de Rui Pereira, ex-ministro da Administração Interna e actual professor universitário, publicado no Correio da Manhã.


"Já não tenho paciência para comentar afirmações de republicanos primários! Conheço muitos republicanos convictos e respeito o seu republicanismo. Aliás como monárquico sou um defensor acérrimo da República “respública” e nunca ouvi da parte destes meus conhecidos qualquer argumento simplista na defesa do ideal republicano.
Este mação de m….. nem merecia resposta. Mas para professor de direito, embora não passando de mais um professor, para não dizer professorzeco, são lamentáveis as descargas que jorram da sua boca, relativamente a este tema.
A certa altura refere que “A ideia simples de que o Chefe do Estado deve ser eleito pelos cidadãos – de preferência através de sufrágio directo – é de uma grande actualidade e articula-se harmoniosamente com o princípio democrático.” Estaria de acordo se não fosse a Inglaterra a mais velha democracia do mundo, diga-se democracia a sério, e não detecto que neste país a chefia de estado não esteja articulada com o princípio democrático, à semelhança do que acontece na Noruega, Dinamarca, Suécia (país onde num dos últimos aniversário do monarca o primeiro ministro confessava que o Rei era o melhor defensor da república), democracias muito mais avançadas do que a que existe no nosso país.
Continua a sua argumentação: “Por simpático que seja algum monarca ou candidato a monarca, nenhum argumento racional justifica a distinção entre cidadãos em função da sua ascendência. Só o mérito pessoal, reconhecido em eleições, deve ditar quem nos chefia.”
Estou de acordo com o que escreve, efectivamente ninguém deve ser distinguido em função da sua ascendência, diga-se ascendência maçónica, político-partidária, económica, etc., infelizmente Dr. Rui Pereira não é isso que se verifica, pois se atendêssemos ao mérito pessoal muitos políticos nunca deveriam ter sido eleitos, assim como V.ª Ex.ª nunca deveria ter sido ministro, antes pelo contrário deveria dedicar-se mais a estudar as muitas e necessárias correcções ao código penal do qual foi um dos mentores, que entre outras coisas permite os corruptos fugirem das acusações de que são alvo, e coloca os criminosos à solta. Já agora só o mérito pessoal reconhecido em eleições é que vale? É que a ser assim estamos conversados…
A diferença Dr. Rui Pereira, é que para Presidente da República pode ser eleito qualquer ignorante desde que preencha os requisitos estatuídos na Constituição. Que uma vez eleito vai favorecer todos aqueles (diga-se partidos políticos, grupos económicos) que contribuíram para a sua eleição. Enquanto um Rei, precisamente por não ser eleito, não está sujeito aos caprichos de quem contribui para a sua eleição. Pela sua preparação desde muito novo para desempenhar o cargo de Chefe de Estado, não privilegia determinados grupos em detrimento de outros, é isento e é o fiel depositário das liberdades de garantias do Povo, uma vez que põe os interesses do bem comum acima de todos os outros, inclusive pessoais. 
Apesar de todos os recados que o actual PR manifesta publicamente contra algumas medidas do actual Governo, será que quando chegar a altura, isto é quando o governo deixar de ter legitimidade popular (que não se mede só por eleições) terá a coragem de demitir um governo da sua cor política? Que contribuiu para a sua eleição? Aqui é que reside a diferença entre as duas chefias de Estado.
Aliás, quando o Dr. Jorge Sampaio dissolveu o Parlamento e convocou eleições antecipadas, não o fez numa altura em que um partido da sua área estava no governo. Antes pelo contrário, isto para além de ter esperado a altura ideal (logo não inocente para o fazer). Deixou que o seu partido tivesse escolhido um novo líder. 
Um Rei reina, não governa! Quem governa são os representantes do Povo escolhidos através de eleições democráticas. Aliás não vislumbro uma monarquia sem ser democrática.
Mas o Dr. Rui Pereira continua o seu discurso propagandístico: “Não raramente, os monárquicos alegam que a República é ilegítima por duas razões aparentadas: não foi sufragada pelo Povo e não pode ser abolida democraticamente, dado que se inclui nos limites da revisão constitucional. Nenhum dos argumentos procede. Em primeiro lugar, os constituintes que optaram pela República, em 1976, foram eleitos pelo Povo. Em segundo lugar, uma maioria de dois terços dos deputados possibilitaria a escolha da monarquia através de uma dupla revisão – alterando primeiro os limites e, na revisão seguinte, a forma de governo.”
Caro Dr. Rui Pereira para um Mestre em direito, republicano, defensor da democracia directa, etc, etc., o que não colhe são os seus argumentos.
Em primeiro lugar, para além de ser um facto que a republica nunca foi sufragada, o legislador constituinte quis concretamente blindar o regime republicano ao estatuir o limite material de revisão que impede assim o Povo de democrática e directamente exercer o seu direito de se exprimir sobre qual o regime que pretende. Além disso Dr. Rui Pereira, os constituintes de 1976 não optaram pela república, pois ela já existia de 1910. Ou será que V.ª Ex.ª não considera o regime de Salazar uma república? Para mim não tenho qualquer espécie de dúvida, o regime anterior monarquia é que não foi. Então existiram ou não eleições para eleger Carmona e Américo Tomás como Presidentes da República? Sim, quer goste ou não esta foi a 2.ª república e agora estamos na 3.ª que está de pernas para o ar! 
Talvez devido à sua filiação numa organização secreta (embora à luz da nossa constituição sejam proibidas associações secretas), se reveja V.ª Ex.ª nos ideais carbonários da 1.ª república, considerando apenas esta e a actual como repúblicas….
Quanto ao referido duplo processo de revisão que refere a doutrina não é unânime sobre o assunto, por exemplo para a escola de Coimbra (donde são originários os “pais” da Constituição de 1976) não há a figura da dupla revisão, uma vez que os limites materiais não são passíveis de revisão constitucional. 
Depois Dr. Rui Pereira, eu como monárquico não quero uma restauração da Monarquia feita no Parlamento, mas sim após uma consulta popular através de um referendo.
A terminar um pequeno reparo, a Monarquia não é uma forma de governo mas sim de regime!"


José Aníbal Marinho Gomes

publicado às 11:03

Um serviço da 2ª República que "nunca existiu"

por Nuno Castelo-Branco, em 09.10.12

publicado às 19:49






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