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No verão de 68, este foi o graffiti incessantemente reproduzido em toda a Checoslováquia
Bismarck era um homem perfeitamente consciente dos perigos que o desequilíbrio de poderes representava para a Europa. Em conformidade, toda a sua política externa tendeu para a manutenção de um status quo, no qual uma Prússia engrandecida, o II Reich, ocupasse uma posição de tal forma determinante, que acabou por se tornar também, num poder colonial. Indo agressivamente contra a opinião de Moltke, do Estado-Maior do exército prussiano e do próprio rei Guilherme I, Bismarck não impôs a Viena uma paz draconiana. Após Koeniggraetz, abria-se a possibilidade dos exércitos prussianos avançarem pela Boémia e tomarem posse das terras alemãs do império dos Habsburgos. Isso teria significado uma guerra europeia, tal como mais tarde sucederia em 1914-18. Bismarck pressentia-o e via no Império Austro-Húngaro, aquela construção que aglomerando povos muito diferenciados, era dirigida por um governo imperial de forte influência germânica, convindo perfeitamente a Berlim.
Desapossar os Habsburgos do seu património ancestral nos Sudetas e na própria Boémia, poderia significar uma imensa vantagem para a Prússia, até porque a região consistia no principal foco industrial do império, ocupando simultâneamente, uma importantíssima posição estratégica no centro geográfico da Europa. No entanto, a manutenção de tão vastos domínios sob um controlo nominalmente neutral, tranquilizava Londres, Paris e São Petersburgo, evitando a sua inimizade declarada. O Chanceler de Ferro dizia que ..."quem tem Praga, domina toda a Europa Central". Não se trata de uma suposição, porque os acontecimentos subsequentes confirmam-na. A dissolução da Áustria-Hungria, significou a criação de um conjunto de Estados sucessores, fatalmente desatriculados de uma economia que tinha sido comum ao império, enquanto para sempre se quebraram aqueles laços de solidariedade internacional que décadas mais tarde, levaram italianos, checos, croatas, eslovenos, húngaros, polacos ou romenos, a marchar para a Grande Guerra, unidos em torno das bandeiras regimentais do exército de Francisco José. De facto, o desaparecimento do império danubiano, para sempre mudou a face da Europa, alçando a Alemanha como o grande poder económico e cultural, preponderante no grande espaço que vai do Reno às margens do Golfo da Finlândia e ao Mar Negro.
A partir de 1919, a profunda crise em que mergulharam as duas grandes potências da Europa Central e do Leste - a Alemanha e a Rússia -, fizeram pender a região para uma ténue e provisória influência francesa, mas a ascensão dos regimes autoritários europeus e o rearmamento alemão da década de trinta, reconduziram Praga à esfera de influência de Berlim. 1945 trouxe o Exército Vermelho ao centro da Europa e aí permaneceu até à derrocada da URSS no início da última década do século XX. Em conformidade, deixaram de ter razão os pactos militares e económicos celebrados a leste e uma vez mais, a Boémia aproximou-se da potência limítrofe, acabando por ingressar na Comunidade Europeia. Desta forma, o render da guarda aconteceu de forma natural e o estado de coisas provavelmente assim permanecerá durante longo tempo.
Os acontecimentos de 1968, consistiram na necessária reacção de Moscovo, a uma clara ameaça de destruição do cordão sanitário criado em benefício da vencedora URSS. Toda a brutalidade se justificava afinal, pela necessidade de manutenção da correlação de forças este-oeste, sem a qual se entrava decisivamente num período de "guerra iminente". Todos os protestos não passaram disso mesmo e o Ocidente acabou por aceitar o facto consumado, enquanto uma parte da esquerda ocidental, voltava a erguer as velhas e ineficazes palavras de ordem da "conspiração imperialista e reaccionária", o complexo do "cerco", as tentativas de "revanchismo fascista", etc. Para os marechais soviéticos, o que verdadeiramente importava, era a manutenção da perigosa cunha que a curva dos Sudetas representa, surgindo como uma ponta de lança pronta a desferir um mortal golpe em direcção ao Reno. Atingi-lo numa semana, eis, em súmula, o cerne da doutrina ofensiva do pacto de Varsóvia. Depois, logo se via o que a evolução dos acontecimentos traria.
Perder a Checoslováquia levava ao automático colapso do sistema criado pela força de ocupação dos vitoriosos de 1944-45, enquanto o habilidosamente tecido equilíbrio do terror, garantia a inactividade ocidental, da NATO, quanto a qualquer tipo de intervenção directa em nome do Pacto de Varsóvia plenamente submetido ao que se conheceu como "Doutrina Bezhnev".
A definitiva liquidação do sovietismo erguido em Estado, implicou o progressivo esmorecer dos confrontos intestinos entre leninistas de todos os matizes, mas o "espírito de Praga", descendente daqueles de 1938 e de 1968, permanece simbólico e atesta a afirmação de Bismarck: ..."quem tem Praga, domina toda a Europa Central". O colapso da Checoslováquia e a sua transformação em dois Estados claramente sob a influência de Berlim, confirma a suposição bismarquiana.
Na verdade, a única nota ainda digna de registo, consistirá nas graves clivagens que o tema ainda provoca nos sectores políticos geralmente muito conservadores e à mercê da ortodoxia doutrinária - protagonizados em Portugal pelo PC e pelo BE - que se reclamam "à esquerda da social-democracia", enquanto esta própria, envergonhada, alterna a profunda crítica dos eventos, com uma certa complacência oportunista, desejosa em agradar potenciais aliados de ocasião.
Territórios habitados desde o Drang Nach Osten por populações alemãs há mais de sete séculos, a região dos Sudetas, a Silésia, a Pomerânia e a Prússia Oriental foram esvaziadas dos seus proprietários pelos acordos celebrados entre as potências vencedoras da II Guerra Mundial.
Apesar da inicial repugnância do governo polaco no exílio (Londres), a Polónia ocupada pelo Exército Vermelho, foi obrigada a aceitar as novas fronteiras ditadas por Estaline, o que pressupunha uma deslocação em direcção ao ocidente. Impune da partilha celebrada com Hitler em 23 de Agosto de 1939, a URSS ocupou uma vasta região que desde a Finlândia ao Mar Negro, lhe ofereceu vastos territórios e populações não russas, cumprindo-se o desígnio estratégico de futuras intervenções na Europa Central e balcânica. Consequentemente, a indiferença total pelos direitos das populações e pela própria Carta do Atlântico que daria origem à ONU, encetou uma política de desapossamento de terras com a clara intenção de uma posterior colonização com elementos étnicos mais conformes com a necessária fidelidade a Moscovo. É assim que os países bálticos verão alterada a componente étnica de cada um, com o estabelecimento de grandes contingentes russos que hoje ainda são um elemento desestabilizador a favor da política do regime de Putin. Aos assumidos morticínios da população civil alemã do leste do Reich, seguiu-se a limpeza étnica que o novo governo vassalo em Varsóvia, gostosa e brutalmente seguiu contra toda a legalidade estabelecida pela própria lei internacional gizada pelos vencedores.
O caso checo não foi diferente. Violações, roubos e assassinatos indiscriminados contra os alemães da Boémia e da Morávia, fizeram desaparecer uma população que durante séculos contribuiu poderosamente para a prosperidade daquela antiga região do império austríaco.
Não foram apenas os alemães o alvo das perseguições, morticínios, violações de direitos básicos e roubo. Húngaros, italianos, romenos da Moldávia, ucranianos, polacos dos antigos territórios do leste da Polónia pré-1939 ou os finlandeses da Carélia, sofreram as consequências da Nova Ordem ditada pela União Soviética, com o beneplácito das sempre ignaras e desinteressadas administrações norte-americanas de Roosevelt e dos seu herdeiro Truman.
O chamado Tratado de Lisboa, o desesperado sofisma para garantir alguma viabilidade a um projecto que apenas poderá ser comum para uns tantos, concedeu aos checos, excepções que desmentem cabalmente o princípio igualitário da Lei, sempre tão anunciado como a essencial base de construção de uma União que se desejaria forte e onde a equidade se sobreporia sempre ao livre arbítrio da prepotência.
A cedência diante da chantagem de Praga e também de Varsóvia, somada ao deplorável exemplo exercido contra os dinamarquesas e mais recentemente sobre a Irlanda, desmente todo o desfiar do rosário de boas intenções. Pior, mina indelevelmente pela desonra, a Comissão Europeia, o Parlamento de Estrasburgo e os governos do verdadeiro directório que não soube ser firme na primordial e indiscutível questão dos Direitos Humanos.
Os portugueses foram há três décadas, os protagonistas da maior deslocação de populações europeias desde o fim da II Guerra Mundial. Em silêncio, como é timbre da nossa pacata gente, aceitámos a afronta e todos os dias ainda deparamos com os arrogantes sátrapas e carrascos que contra toda a legitimidade nos fizeram aceitar o bafo dos "novos ventos da história", sob pena do total abandono e mais que provável desaparecimento do mundo dos vivos.
Durante mais de um século e aqui mesmo ao lado, os portugueses de um determinado território viram-se despojados dos seus direitos nacionais, sendo-lhes interditado o ensino da sua língua pátria. Desenraizados e separados pelo abismo cavado pelo ocupante, os oliventinos conservaram os nomes, as velhas recordações. Cuidam dos seus antigos monumentos que ainda ostentam as pedras de armas do Estado que os fez erguer perpetuamente. Deixaram de ser uma parte dos povos de expressão portuguesa, é certo. No entanto, ao contrário de outros, permaneceram nas suas casas e terras. A tradicional brutalidade castelhana não chegou ao ponto de os fazer desaparecer fisicamente.
A partir deste "caso checo", deixemo-nos de ilusões. A Europa mais não é senão um enunciado de boas intenções e prometidos negócios que conduzirão ao previsível fracasso final. Trata-se de uma mera questão plutocrática.
Como última nota, saliente-se a presteza com que o Estado português colaborou nesta decisão. Compreende-se.
O referendo irlandês parece ter aberto a questão da viabilidade da ratificação do Tratado de Lisboa. Se o argumento de Kaczinsky se torna numa mera desculpa circunstancial e de nítido aproveitamento da inesperada oportunidade, as notícias que chegam de Praga colocam o problema noutro patamar.
O eurocéptico Vaclav Klaus declara não se identificar com esta União gizada "à francesa" e na aparência, as suas palavras limitam-se ao reconhecimento do fracassado exercício de unânime aceitação do plano estabelecido pelos chamados Grandes (Alemanha, França, Itãlia, Espanha e o reticente R.U.).
Tal como disséramos no anterior post referente à Polónia, os checos situam-se numa área geográfica onde o equilíbrio do poder se desintegrou após a dissolução da URSS e do Pacto de Varsóvia. A própria partilha da antiga criação versalhesa - a Checoslováquia - em duas identidades estatais independentes, consistiu na consagração do reconhecimento do fim da carta europeia estabelecida pelos vencedores de 1918. De facto, do cordão sanitário imposto pela França à rival Alemanha - Polónia, Checoslováquia, Jugoslávia e grande Roménia -, pouco ou nada resta. Estado com um peso demográfico e económico de algum relevo, a Checoslováquia foi a principal beneficiária do desmembramento do império austro-húngaro, concentrando no seu território, a parte vital da indústria imperial e uma situação estratégica de absoluta e excepcional importância para os franceses. Os Acordos de Munique (1938) indiciaram claramente a fragilidade da realidade multi-étnica, pois a poderosa minoria alemã - habitante do vasto arco dos Sudetas - jamais fora consultada quanto ao seu destino, forçada a permanecer ligada ao corpo estranho de um Estado no qual não se reconheceu. Um caso paralelo ocorreu na zona oriental, pois a Eslováquia abrigava uma importante minoria húngara e o distrito polaco de Teschen, compondo-se finalmente o mosaico, com a inclusão de uma parte de maioria ucraniana, a Ruténia Subcarpática. Munique colocou a Boémia-Morávia nas mãos do Reich e de imediato, a Eslováquia torna-se num Estado independente, cedendo à Hungria os distritos reivindicados por Budapeste. Num breve hiato de alguns meses, a França via esfumar-se o seu mais importante e poderoso aliado na Europa Central, enquanto a Alemanha adquiria recursos materiais e uma posição de grande conforto estratégico-militar que lhe permitiu a satelitização da Roménia e da Bulgária.
O resultado da II Guerra Mundial restaurou uma Checoslováquia amputada da Ruténia - cedida à URSS - e procedeu-se à coerciva expulsão dos três milhões de alemães, tal como ocorrera nas províncias orientais prussianas, que reverteram para a administração polaca.
A Checoslováquia consistiu num importante posto avançado do Exército Vermelho e a revolta e consequente repressão em 1968, demonstraram a firmeza soviética em conservar a ameaça sobre o dispositivo central da NATO na Alemanha Federal, sendo o exército checo dotado de substanciais meios e atribuições num hipotético cenário de conflito.
A liquidação do Pacto de Varsóvia e o desmoronamento do império vermelho, ditou o recrudescer das ambições do separatismo eslovaco, que conseguiria reeditar em fronteiras sensivelmente idênticas, a república eslovaca de monsenhor Tiso, aliada de Berlim em 1939-44.
A verdadeira questão que hoje se coloca aos checos, consiste nas hipóteses que terá a sobrevivência de uma política independente e consentânea com o seu estatuto de Estado recente e de reduzida dimensão. Quando Bismarck declarava Praga como a chave do controle de toda a Europa central e oriental, formulava este princípio, baseado na existência da grande massa territorial - e aliada - do império austríaco, um contraponto à Rússia e ao próprio II Reich. A situação é hoje muito diferente e os checos só podem esperar compreensão para os seus desígnios mais básicos de existência, olhando para lá do cabo da Roca e do espaço atlântico, onde os EUA não deixarão decerto, escapar a oportunidade de colocar vitais peças no complexo xadrês que disputa o controle da passagem e acesso às matérias primas que a Ásia Central prodigaliza. Desta forma, a até hoje platónica União Europeia encontrou no seu próprio seio, os previsíveis focos de resistência à instauração da política de conhecido teor e ambição continental que ditou a eclosão de numerosos conflitos pela hegemonia.
Nada de novo, na frente oriental.