Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Luís Montenegro poderia ter-nos poupado ao penoso espectáculo desta tarde, cujo desfecho estava mais do que anunciado. Já se tinha percebido que o Primeiro-Ministro não tem respeito pela função (“circunstância”, nas palavras do próprio) que desempenha, mas foi particularmente ilustrativo do irregular funcionamento das instituições vermos o Governo a aventar uma proposta de Comissão Particular de Inquérito em que o escrutinado é que decidiria o tempo de que os escrutinadores disporiam, numa clara intromissão do executivo no poder legislativo. Ao actuarem quase exclusivamente no domínio da táctica, acabaram a violar princípios basilares da democracia liberal e do republicanismo. Verdadeiramente notável.
Entretanto, com a rejeição da moção de confiança, chega ao fim um Governo despudoradamente classista e elitista, que governou a pensar essencialmente em determinados grupos e faixas etárias e para o qual a generalidade da população entre os 36 e os 67 anos de idade serviu apenas para pagar impostos que financiaram medidas e políticas públicas socialmente injustas e fiscalmente desiguais, cujo objectivo principal foi fidelizar determinados segmentos do eleitorado que o anterior Governo do PSD e CDS tinha alienado. A tão propalada estabilidade política não passa de uma farsa com que o Governo tentou escamotear a tragédia da continuada decadência de sectores cruciais para o desenvolvimento do país e o futuro da população, como a saúde e a educação, a habitação e a justiça. Abre-se, agora, uma janela de oportunidade para que um novo Governo tente fazer mais e melhor - e, de preferência, que não tenha problemas de carácter ético e/ou legal que, pese embora aproveitem invariavelmente aos populistas desavergonhados, são sintomáticos da lamentável degradação do regime.
(também publicado no Blog da Real Associação de Lisboa)
O recente debate sobre o federalismo americano e europeu, para o qual o derradeiro contributo, pelo menos por agora, veio do José Gomes André - e em particular, a teorização de James Madison em que este ultrapassa algumas das premissas desenvolvidas por Montesquieu -, levou-me a continuar a investigar sobre esta temática e também sobre o pensamento republicano, de que Charles Louis-Secondat é um expoente notável. Claro que quando falo em república ou pensamento republicano é no sentido de res publica, à maneira de Cícero, ou seja, coisa pública, e não no sentido de forma de governo. E dentro do pensamento republicano, importa salientar a existência de duas correntes principais, representadas por Rousseau e Marx, de um lado, e Montesquieu e Madison de outro. Como não poderia deixar de ser, as diferenças entre estas, às quais, grosso modo, corresponde o que se costuma designar por liberalismo francês ou continental e liberalismo anglo-saxónico, derivam essencialmente da forma como encaram a natureza humana e o conceito de liberdade. Hayek faz notar as principais diferenças: “Enquanto para a velha tradição britânica, a liberdade do indivíduo no sentido da protecção pela lei contra toda a coerção arbitrária era o valor principal, na tradição continental era a procura pela auto-determinação de cada grupo em relação à sua forma de governo que ocupava o lugar mais elevado.”1
Absorto nas minhas leituras e investigações, acabei por deparar com um artigo na Political Theory, da autoria de Annelien de Dijn, intitulado “On Political Liberty: Montesquieu’s Missing Manuscript”. Como o próprio título indica, a autora debruça-se sobre um manuscrito perdido de Montesquieu, que ajuda a melhor compreender o célebre livro XI de Do Espírito das Leis, onde são tratados o conceito de liberdade e o regime monárquico. A leitura do artigo vale bem a pena, especialmente porque mostra um pouco do percurso intelectual de um dos grandes teóricos políticos da modernidade, versando sobre as evoluções em que este incorreu. O argumento principal é o de que os súbditos monárquicos não estão necessariamente numa posição pior que os cidadãos republicanos no que concerne à segurança das suas vidas e posses, e que, na verdade, estas podem estar mais seguras numa monarquia do que numa república. Distanciando-se da oposta corrente republicana, que ao recuperar a noção de participação política da antiguidade clássica, acabou por equacionar liberdade com autonomia ou auto-governo, Montesquieu articulou uma concepção negativa de liberdade, procurando desta forma defender a monarquia contra os sectarismos revolucionários. Ao teorizar o conceito de liberdade, Montesquieu afirmou que um homem livre é “aquele que tem boas razões para acreditar que o furor de uma pessoa ou de muitas não lhe roubará a sua vida ou a posse dos seus bens.” Estamos perante uma concepção conservadora e anti-revolucionária, que nos traz imediatamente Burke e as suas Reflexões sobre a Revolução em França à mente.
Esta redefinição do conceito de liberdade enquanto segurança obriga, no entanto, a colocar a pergunta sobre como garantir esta segurança. A resposta de Montesquieu é dada ao debruçar-se sobre a constituição Inglesa. Considerando-se discípulo de Locke, acaba por aprofundar a teoria da separação de poderes, fundamental para garantir a segurança e, consequentemente, a liberdade individual. Partindo da sua famosa proposição de que “todo o homem que tem poder é levado a abusar dele”2 indo até onde encontra limites, Montesquieu considerou que “Para que se não possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder trave o poder”3, o que nem sempre é conseguido por intermédio das leis “dado que estas sempre podem ser abolidas, como mostraria a experiência dos conflitos entre as leis e o poder, onde este sai sempre vitorioso”4. Socorrendo-me aqui da articulação que José Adelino Maltez faz (a partir de uma edição francesa da obra de Montesquieu), citamos o mesmo na íntegra: “Assim, visionou um sistema de pesos e contrapesos, tratando de limitar o poder no interior do próprio poder, onde, para cada faculdade de estatuir (estatuer), o direito de ordenar por si mesmo ou de corrigir aquilo que foi ordenado por outro, deveria opor-se uma faculdade de vetar ou de impedir (empêcher), o direito de tornar nula uma resolução tomada por qualquer outro. Deste modo, considerava que, para formar um governo moderado, é preciso combinar os poderes (puissances), regulá-los e temperá-los.”5
Montesquieu preocupou-se em responder à questão sobre como garantir um governo representativo que assegure a liberdade e minimize a corrupção e os monopólios advindos de privilégios inaceitáveis. A sua resposta vai no sentido de um estado constitucional, que mantenha a lei e a ordem, como forma de assegurar os direitos dos indivíduos6, recaindo a sua preferência, naturalmente, sobre o sistema da monarquia constitucional britânica. Relacionando o governo monárquico com um sistema de checks and balances, segundo David Held, Montesquieu acabou por rearticular as preocupações republicanas e liberais sobre o problema de unir os interesses privados e o bem público, arquitectando institucionalmente a forma como estes interesses se devem relacionar sem sacrificar a liberdade da comunidade7. Esta institucionalização visa, por um lado, impedir a centralização de poder, e, por outro, despersonalizar o exercício do poder político8. E esta despersonalização está também em David Hume, que ao procurar demolir a equação entre monarquia e despotismo, evidencia como as monarquias civilizadas, modernas, constituem-se como um governo de Leis, não de Homens. Também Locke teorizou no mesmo sentido. Ao contrário de Jeremy Bentham, para quem a lei constituía uma infracção contra a liberdade, para Locke, como para Hayek, conforme assinala André Azevedo Alves, “a liberdade em sociedade não é, nem pode ser, ilimitada, antes consistindo na sujeição à lei em alternativa à submissão a um poder arbitrário”9, tratando-se, em suma, da acepção lockeana de que “onde não há lei, não há liberdade.”10
O corolário disto é a concepção de Montesquieu de que a liberdade não está directamente relacionada ou dependente da forma de governo, que um povo não é livre por ter esta ou aquela forma de governo mas sim porque o governo é estabelecido pela Lei, porque obedece ao estado de direito. Isto implica a invalidação do muito utilizado argumento de que uma república garante mais liberdade que uma monarquia. Na verdade, conquanto exista uma ordem constitucional baseada na Lei, na separação de poderes e nos direitos individuais, uma monarquia pode garantir o mesmo ou um maior grau de liberdade que uma república, tal como acontece com a monarquia britânica, na qual Montesquieu se inspirou.
1 - F. A. Hayek, New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1990, p. 120.
2 - Montesquieu, Do Espírito das Leis, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 303.
3 - Ibid., p. 303.
4 - José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996, p. 148.
5 - Ibid., p. 148.
6 - David Held, Models of Democracy,Cambridge, Polity Press, 2008, p. 65-66.
7 - Ibid., p. 67.
8 - Ibid., p. 68.
9 - André Azevedo Alves, Ordem, Liberdade e Estado: Uma Reflexão Crítica sobre a Filosofia Política em Hayek e Buchanan, Senhora da Hora, Edições Praedicare, 2006, p. 35.
10 - John Locke, Two Treatises of Government, Cambridge, Cambridge University Press, 2010, pp. 305-306.
(imagem daqui)
Quando me iniciei na actividade blogosférica, há quase 5 anos, poucos eram os blogs que lia. Entre estes figurava o Combustões, que foi o segundo blog a linkar o Estado Sentido. E o Miguel Castelo-Branco foi uma das primeiras pessoas deste meio a quem tive o atrevimento de endereçar um e-mail. O seu blog constitui leitura obrigatória e, como já por várias vezes afirmei, o Miguel é certamente uma das melhores penas da língua portuguesa, o que alia a um conhecimento profundo das matérias que trata e a uma paixão notável por aquilo que faz. Ontem o Miguel teceu um elogio à minha pessoa que ainda continua a deixar-me ruborizado e que, por tudo o que escrevi, muito me sensibilizou. Não estando habituado a lidar com elogios, creio que a melhor forma de o retribuir é através de uma réplica cuidada e fundamentada em relação ao tema em apreço, que permita contribuir para o debate sobre o federalismo americano e europeu.
O Miguel critica o meu elogio de James Madison, afirmando que não existe tal coisa como pensamento americano, que “uma colónia produz "pensamento" coincidente com a sua circunstância”, e que mesmo a obra mais importante da teoria política americana, The Federalist, é apenas um pequeno livro quando comparada com o pensamento de Hume ou outros pensadores europeus. Ora eu não estou em desacordo, nem poderia estar. Mas parece-me que a crítica à falta de originalidade é manifestamente injusta. Como o Miguel bem sabe, não existe pensamento filosófico completamente original, isto é, elaborado a partir do nada. Todo o pensamento ocorre dentro de uma tradição. Socorrendo-me de Michael Polanyi, entre tantos outros, é de notar que a razão não se opõe à tradição e que, de facto, todo o pensamento tem de ocorrer dentro de uma tradição, de um enquadramento fiduciário que não é estático mas dinâmico, visto que incorpora a possibilidade de conflito interno, a capacidade de rebeldia contra o consenso e a possibilidade de cultivar o progresso radical dentro de um contexto de continuidade. A tradição é um pré-requisito da racionalidade e da condição humana, pois como Polanyi assinala em Knowing and Being, “nenhuma mente humana pode funcionar sem aceitar a autoridade, o costume, e a tradição: tem de depender destes para o mero uso da linguagem.”
Ora Madison é um produto da cultura britânica, e filosoficamente é um discípulo do Iluminismo Escocês. John Gray faz notar isto em Liberalism. E se diversos autores têm preferido salientar a influência do particular contexto que emergiu da Revolução Americana no pensamento de Madison, esquecendo a influência do pensamento europeu, outros, como Roy Branson, preferem destacar precisamente a influência dos iluministas escoceses no constitucionalismo americano. Foi através de John Witherspoon, presidente de Princeton quando Madison aí estudou, que este viria a incluir na sua biblioteca diversos volumes dos escoceses, trazidos por Witherspoon. E quando o Congresso Federal o encarregou de elaborar uma lista dos livros a adquirir para uso do Congresso, Madison incluiu nesta várias obras de Hume, Smith, Ferguson e Millar. Não é, contudo, despiciendo referir o particularismo do constitucionalismo americano, como Hamilton salienta no Federalist N. 1 (tradução minha): «Tem sido frequentemente observado que parece ter sido reservado às pessoas deste país, pela sua conduta e exemplo, decidir a importante questão, se as sociedades dos homens são realmente capazes ou não de constituir um bom governo a partir da reflexão e escolha, ou se estão para sempre destinadas a fazer depender as suas constituições políticas do acidente e da força.»
O Miguel prossegue criticando a defesa da propriedade privada pelo pensamento americano, culminando na recomendação de que este não é exemplo para nada. A este respeito, não poderia estar mais em desacordo. Como salienta Ralph Ketcham a partir de Aristóteles, a forma como um filósofo encara a natureza humana, quer de facto quer potencialmente, é o bastante para antecipar os seus argumentos noutras áreas. Enquanto Rousseau parte do optimismo antropológico para chegar a um esquema de perfeição, Madison radica o seu pensamento na ideia de imperfeição humana dos iluministas escoceses, procurando de forma moderada adaptar o exercício do poder às características humanas, conforme a sua célebre citação no Federalist N. 51 (tradução do José Gomes André): «Se os homens fossem anjos nenhuma espécie de governo seria necessária. Se fossem os anjos a governarem os homens, não seriam necessários controlos externos nem internos sobre o governo. Ao construir um governo em que a administração será feita por homens sobre outros homens, a maior dificuldade reside nisto: primeiro é preciso habilitar o governo a controlar os governados; e, seguidamente, obrigar o governo a controlar-se a si próprio. A dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo; mas a experiência ensinou à humanidade a necessidade de precauções auxiliares.»
Madison contraria a noção de bem comum positivado e interpretado pela elite governamental de Rousseau (que Schumpeter mostrou ser uma falácia), adoptando a perspectiva anglo-saxónica da liberdade negativa, da ausência de coerção por terceiros, e do governo limitado para desenhar uma solução governamental em que converte vícios em virtudes e procura fragmentar e difundir o poder. Conforme Hayek faz notar, a primeira e mais básica condição para a prevenção da coerção é o reconhecimento do conceito de propriedade privada. A propriedade privada é um elemento fundamental para alcançar a liberdade individual, tal como Locke já havia teorizado, e como Gray assinala em Liberalism ao considerá-la como “um veículo institucional para um processo de decisão descentralizado” em estreita ligação com a capacidade de um indivíduo dispor de si próprio, das suas capacidades e talentos. Contudo, ainda de acordo com Hayek, embora a propriedade privada seja essencial para assegurar a condição de liberdade individual, tal não significa que os indivíduos tenham de ser titulares de bens passíveis de serem apropriados de forma privada. Por outras palavras, para evitar a coerção, não é necessário que um indivíduo possua propriedade, mas sim que tenha ao seu dispor os meios materiais que lhe permitam prosseguir os seus fins privados, e que estes meios não sejam detidos exclusivamente por um único agente. Tal como o poder deve ser suficientemente fragmentado para evitar a sua perigosidade para o cidadão, também a propriedade deve ser dispersa o suficiente para que o indivíduo não esteja exclusivamente dependente de alguém ou alguma entidade em particular que possa providenciar-lhe o que necessita para alcançar os seus fins ou, por exemplo, empregá-lo.
Importa ainda notar que sendo certo que Madison estudou os clássicos para poder aplicar a filosofia à prática política, não é inteiramente verdade que não tenha sido inovador, dentro da tradição em que se encontrava, e é no que se segue que, contrariando o Miguel, Madison parece-me exemplar – assim como no seu carácter vigoroso. Socorro-me aqui da introdução de Cass R. Sunstein à edição que possuo de The Federalist. Tanto os federalistas como os anti-federalistas inspiraram-se em Montesquieu. Os segundos apontaram o problema da corrupção como sendo originado pelo espírito de facção, que temiam tomasse conta da federação. A solução dos mesmos é inspirada directamente pelo republicanismo de Montesquieu, consistindo na inculcação da virtude cívica e na defesa de repúblicas de pequena dimensão e da importância da homogeneidade. A resposta de Madison foi uma inversão da perspectiva em termos morais e antropológicos, considerando que a corrupção que cria facções é natural, e que embora seja indesejável, é um produto da liberdade e desigualdade humanas. Isto significa que as ideias de inculcação da virtude e da educação como forma de minorar este problema são desadequadas. Além disto, o problema tende a ser mais grave nas pequenas repúblicas do que nas grandes, já que nas pequenas é mais fácil que um pequeno grupo privado tome o poder político e distribua riqueza e oportunidades como bem entenda, que foi precisamente o que aconteceu nos anos imediatamente seguintes à Revolução Americana. Foi a partir da observação deste período que Madison repudiou as concepções clássicas referidas, considerando que estas não seriam defesa suficiente contra a tirania. Radicando na natureza humana o interesse próprio, resultado das diferenças de talento e propriedade, este é a causa do espírito de facção, pelo que tentar debelá-lo através da indução de preferências por via do governo comportaria um risco ainda maior de tirania, acabando por destruir a liberdade individual. A solução, original, de Madison para este problema foi a de considerar que em grandes espaços, numa grande república, o espírito de facção não é prejudicial mas sim benéfico, visto que a diversidade de interesses obstaria à tentação de oprimir minorias, de interferir nos direitos de terceiros, acabando o tamanho e a diversidade por criar um sistema de protecção contra a opressão. A isto Madison acrescentou ainda o princípio da representação, teorizado no Federalist N. 10 (tradução minha), que teria como efeito «aperfeiçoar e ampliar os pontos de vista públicos, passando-os por meio de um corpo escolhido de cidadãos, cuja sabedoria pode discernir melhor os verdadeiros interesses do seu país, e cujo patriotismo e amor à justiça são menos prováveis de ser sacrificados a considerações temporárias ou parciais.» Esta defesa da diversidade é ainda feita pelos federalistas no que concerne à diferença de opiniões – também esta vista como um vício pelos anti-federalistas –, que serve o propósito de promover a deliberação e circunspecção, sendo um check à maioria (Federalist N. 70).
Para finalizar este já longo texto, note-se que esta original concepção do republicanismo, segundo Sunstein, é provavelmente responsável pela longevidade da Constituição americana, e é esta perspectiva pluralista, defensora do individualismo e céptica em relação à natureza humana e ao exercício do poder que me parece poder servir de inspiração para algo que possa vir a ser um verdadeiro federalismo europeu. Conforme o José Gomes André salientou há uns meses, “Digo "verdadeiro" para o separar dos habituais adjectivos pejorativos que lhe atribuem, sem perceberem que federalismo não corresponde a um "centralismo unitário e jacobino", nem à destruição dos Estados-membros, mas sim à instituição de vários eixos de poder complementares - convivendo sob uma mesma entidade política autoridades distintas, democraticamente legitimadas.”
Como muito bem questiona o João Vacas acerca da eventual saída federal, “esta respeitaria o princípio da igualdade entre os Estados federados? Em termos práticos, estes teriam o mesmo peso numa das futuras câmaras parlamentares? Sem isto, não se trataria de uma verdadeira federação mas de centralização disfarçada. Com a subsidiariedade como flor de lapela. Mais do mesmo, portanto.”
Ao contrário da Cristina, eu não vislumbro vantagens no "voto em branco" se este for aplicado a eleições presidenciais. Na minha opinião, em qualquer tipo de eleições, o acto em si enquanto voto de protesto é um mito, porque daqui nunca nascerão consequências sérias para quem detém o poder.
No caso concreto das próximas presidenciais, o voto em branco não transmite protesto nenhum que se enquadre nas pretensões de quem não aceita a forma de governo republicana. A primeira mensagem que pode ser lida do voto em branco é: eu alinho com o sistema, porque voto, mas não dou o voto a nenhum dos candidatos, porque não prestam ou porque não concordo com as ideias deles. Em eleições presidenciais o monárquico, à partida, recusa o voto aos candidatos não necessariamente por discordar deles, mas sim porque rejeita a forma de governo.
No entanto, nada impede que o monárquico vote nas presidenciais se vir motivos sérios para isso. Se por exemplo estiver em causa a soberania ou a mudança de regime - neste último caso pode ver num candidato um agente da mudança ou, pelo contrário, alguém contra quem quer votar por representar perigo de mudança para pior. Quando não estão em causa estes factores, como creio ser o caso destas próximas presidenciais, o monárquico deve abster-se. Pois a abstenção não transmite necessariamente uma mensagem de insatisfação para com os candidatos. A abstenção significa simplesmente a não participação no sistema. A abstenção não envia nenhuma mensagem em especial. De modo genérico transmite alheamento, é certo. Mas, quem não concorda com o sistema deve ser alheio às suas práticas e, em alternativa, procurar levar a cabo outras iniciativas de combate. Ou não - pode escolher simplesmente alhear-se e viver num mundo aparte. Com o advento da democracia, entre muitas lérias que nos impingiram, essa do dever cívico do voto é uma delas. Assim como a ilusão de o voto ser sinónimo de liberdade de escolha e nele poder estar o início de alguma mudança ou solução.
Votar nestas presidenciais, seja de que forma for, em branco ou ir lá fazer desenhos ou escrever palavrões, significa alinhar com a República. Responde ao apelo do dever cívico que alimenta um sistema que não é o nosso. O monárquico tem consciência que os candidatos não são entusiasmantes, pois sabe que eles provêm de uma forma de governo errada por natureza.
Onde a liberdade existe ninguém é obrigado a viver consoante padrões impostos. Ninguém deve ser coagido a escolhas nem compromissos quando não pretende participar neles, ou quando esses compromissos são por si só matéria de discordância. É um acto de objecção de consciência tão legítimo como qualquer outro.
Efemérides do ano da Revolução: raparigas para todo o serviço e elixires para todo o serviço - com menção honrosa para as diarreias pútridas.
Elixir para a paz no mundo: o homem passar a deixar de impor sua superioridade à mulher - e, realmente, não é que desde aí deixou de haver guerras, hem!
Elixir para o indivíduo se emancipar da autoridade da Igreja: aplicar uma dose de socos.
E Viva a República!
Existe uma minoria ruidosa na minha terra - o Porto - que faz gáudio da Revolução de 1820 e, em especial, do 31 de Janeiro. Como é uma minoria de intenções mais ou menos bem definidas, querem falar em nome dos outros cidadãos e em nome da cidade dizendo que por esse motivo ela ama a liberdade. Neste último ponto estão correctos, penso eu. O que posso acrescentar é que, devido a essa fama, tenha sido a Invicta um joguete de interesses que lhe foram e são alheios e prejudiciais.
Se não vejamos: após 1820, Mousinho da Silveira lançou mão a uma chuva de decretos administrativos mais centralistas, macrocéfalos e burocratas do que a França de Luís XIV – mas desta vez sem ênfase no monarca mas sim num corpo estatal controlador e formatado em Lisboa – tirando toda a autonomia municipalista que até aí o Porto e outros burgos gozavam. Vá lá que a decretite aguda foi atenuada em 1823 e foi-lhe posto cobro na Vilafrancada passados poucos anos.
Quanto ao 31 de Janeiro, a jactância republicana esquece-se que a intentona, envolvendo alguns intelectuais, muitos deles nem do Porto eram, e alguns militares mal preparados e mal remunerados teve como causa não a inspiração da Comuna de Paris, não o anarco-sindicalismo proudhoniano nem o primeiros ventos marxistas, mas sim um facto tão singelo e inevitável mas também tão triste como o Ultimato inglês que deitava por terra pretensões portuguesas de mapas cor de rosa no Ultramar e abalou o orgulho nacional.
Por outro lado, como já tive oportunidade de aqui referir, a Monarquia, que é dizer o País, estava em fase de letargia decadente, dado o caciquismo e o rotativismo partidário que denegria a imagem da classe política e subsequentemente da Coroa. A República, essa desconhecida, da qual os ecos revolucionários, ruidosos e pouco definidos, diziam maravilhas, apresentava-se como a revolução regeneradora para alguma juventude civil e militar mais instintiva e temperamental do que culta e reflexiva.
Claro que o Regime em vigor aproveita esta página para criar mais alguns mártires e tentar construir uma cronologia que tenha eventos e intentonas significativos antes do momento decisivo.
Mais significativo talvez seja o facto de um dos principais ideólogos da revolta, João Pinheiro Chagas – membro destacado do Partido Republicano ao qual aderiu desde os tempos do Ultimato, e desde aí um dos mais importantes ideólogos do conceito de "República Liberal" –, após a Implantação da República, ainda em 1910, se ter demitido da sua representação diplomática por acentuadas discordâncias com o governo de então e em 1911 o governo por si chefiado não ter durado mais de dois meses...
O Manuel, no Café Odisseia:
Na América a Religião é um sinónimo de Liberdade. Foi a grande liberdade de culto que alimentou inicialmente o espírito e ideais republicanos daquela terra, foi a religião que permitiu aos intelectuais daquele tempo perceber as sábias palavras dos iluministas que preconizavam uma igualdade inspirada, entre várias coisas, no Cristianismo.
O que mantém esta simbologia cristã nas cerimónias públicas dos americanos é a Tradição, mas não somente pelos seus valores de imitação e continuidade (já aqui falei no que acontece às Tradições caducas). Todos esses valores inspirados pelo "God Bless America" ou "One Nation Under God" têm um significado intrinseco que os americanos usam para glorificar os que já passaram, muitas vezes morrendo por esses valores, e inspirar toda uma nova geração a abraçá-los e adoptá-los. Não se trata de um esforço para criar um comportamento-modelo por parte do Estado, mas sim da Tradição de um povo, com todo o seus significado para manter a sua dignidade e especificidade histórica. A Tradição, quando encontra nos seus símbolos os nobres valores que sempre representou, deixa de ser uma arma política e passa a ser um sinal de individualização dos povos, e os Americanos sabem-se únicos, e sabem que é isso que os torna a nação mais poderosa e provavelmente mais livre à face do planeta, capaz de se curar das mazelas governamentais de um mau executivo para ressurgir como terra prometida, sem usar de revoluções fracturantes, ao contrário do que é costume na Europa. É esta harmonia Povo-Estado-Indivíduo-Verdadeira Tradição que reforça a América.
Em Portugal não faz sentido usar este tipo de vocabulário nas cerimónias de investidura, por uma simples razão. O republicanismo português não tem qualquer simbolismo que o ligue ao povo português e à sua cultura, seja religiosa ou pagã (que a há). As cerimónias presidenciais, desde os tempos da Iº República, sempre foram realizadas em privado, na presença dos partidos ou entre os membros dos Conselhos, nunca foram motivo de júbilo para a sociedade. Assim, se o Presidencialismo Americano tem a força simbólica de uma coroação, o presidencialismo português é uma transição cuja espectativa se desmorona no momento da investidura.