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Foi o Miguel Somsen que nos alertou para o cambalacho dos Correeiros. O tal restaurante que alegadamente baralha as ementas e o preço da Gamba à Guilho (de Guilhotina, não relacionar com Ajillo) apresentando bandeiradas finais na casa das centenas de euros. Mas a culpa não é apenas dolosa. O estabelecimento de restauração soube interpretar o comportamento das nossas sociedades. Observou cuidadosamente e registou o seguinte: ninguém lê. O nativo ou o turista esfomeado deixaram pura e simplesmente de ler. E o smartphone que acumula tarefas e omite a presença de espírito é uma invenção genial, é mesmo para iletrados, pelo que se pode concluir que o mentor do Made In Correeiros deve ser um homem das artes e das letras - a arte da decepção e da letra miúda da ementa. No entanto, as vítimas do engodo apenas repararam devido à escala de valores em causa. Diariamente, aqui e acolá, somos vítimas da gula desmesurada (desmesurada? que redundância!) de agentes de restauração, bares e afins. Faz parte da matriz comercial portuguesa comer o cliente à primeira. Ou seja, pouco importa que regresse de um modo fiel e continuado. Mas este jogo de oportunismo sairá caro. Quando a febre turística baixar, e o excesso de procura acalmar, far-se-á a distinção. A destrinça entre aqueles que praticam uma fé comercial digna e genuína, e aqueles que confeccionam a aparência gourmet da banana confitada pelo chef homónimo que se encontra na cozinha a inventar. No final ambos terão o que merecem. Os que aliciam e os que se deixam enganar. Quanto a mim, conheço verdadeiros templos gastronómicos em Portugal que ostentam a nobreza dos pratos e a adequação dos preços. Sei onde se encontram, mas não digo. Se não estragar-me-iam as tascas.
A austeridade já toda a gente sabe o que é (menos o governo). No dia a dia convivemos com "ela" quer queiramos ou não. Aliás, ela faz-se convidada para quase todos os eventos. Nas repartições de finanças, nas farmácias, nos autocarros, no comboio e nos restaurantes. Vem a propósito esta posta porque os vulgares "pratos do dia" correm sério perigo de vida. O aperto económico, sentido a montante e a jusante na cadeia alimentar, não poupou clientes nem restaurantes. Os primeiros deixaram de frequentar restaurantes de bairro e casas de pasto. Os segundos privados de casas cheias e confrontados com a solidão de uma mesa de casal ocupada a meio-gás, começam a "inventar" receitas de embuste a preços falsamente simpáticos. São travessas de enganos servidas a quente, como se fossem vinganças pelos almoços em falta. Os chefes que enfiam o barrete branco, tentam salvar a casa a todo o custo com fórmulas, que embora não sejam de "canal Caveira", põem em causa a saúde pública. Como cozinheiro doméstico que sou, já tenho currículo que baste para perceber os aproveitamentos de roupa velha. Nem é necessário morder o isco para perceber que "aqui há gato". Um simples nariz empinado consegue perceber que a mudança de óleo na cozinha não foi feita às 25.000 frituras como manda a lei, que a carne guisada passou dos limites da marinada, que o peixe fresco já havia sido baptizado desse modo na semana passada. O alarme que parece que estou a accionar tem razão de ser. Os cafés e restaurantes que sempre trabalharam as margens de um modo folgado, não têm pudor quando se trata da saúde alimentar dos seus clientes. Os surtos de intoxicações alimentares serão cada vez mais frequentes. No meio deste buffet de irresponsabilidade, o cidadão que vem a bem com o pouco que ainda resta na carteira, não regressará a estas selectas pousadas, se tiver a sorte de sobreviver às náuseas do repasto. Já começei a compor a minha lista negra de estabelecimentos regidos pelo "gato por lebre", e podem ter a certeza que não regressarei a tal ementa. Este tipo de comportamento desregrado não é culpa da crise. Tem a ver com falta de escrúpulos comerciais, a falta de ética - diética. O prato do dia já não nasce no dia. O prato do dia tornou-se na última ceia de confiança.
Quando o governo toma as decisões que toma ou pondera tomar, de um modo instintivo, ponho-me logo a pensar nas suas implicações, mas ainda antes de considerar os efeitos que se irão sentir, calço os sapatos dos ministros e das respectivas equipas técnicas, e tento reproduzir a caminhada conducente a estas brilhantes decisões. E chego à seguinte conclusão: o número está errado. A sapatilha da reflexão não serve o meu pé. O governo, ao anunciar a possibilidade de aplicar um IVA de 23% aos bares e aos sectores relacionados com a bebida, admite logo que nunca entrou numa cozinha, que nunca lavou um prato sujo na cantina. Será que estes cozinheiros administrativos não percebem os danos que vão causar. O que pensam que irá acontecer quando os clientes tentarem escapar à bebida porque houve um aumento brutal do preço final do penálti decorrente do aumento do IVA? Querem diferenciar os restaurantes dos bares, é isso? Ou seja, o cozido à portuguesa já não pode ser acompanhado nas calmas pelo tintol fresquinho porque o preço da litrada é proibitivo? Esta lei semi-seca é mesmo bruta, e vai fazer espumar pelos cantos da boca os chefes de cozinha e seus semelhantes. Por um lado, se a medida foi pensada para penalizar os alcoólicos, não me parece que vá funcionar como terapêutica adequada, e por outro lado, os "restauradores" para assegurar os níveis de consumo adequados, irão enveredar por soluções de recurso. Já estou a ver a D. Amélia, da cozinha da tasca da esquina, a salgar em demasia e de propósito a chanfana ou o rancho, só para obrigar os comilões a apagar o sabor a mar profundo com uma bebida destilada ou não, mas cara - com IVA a 23%. O governo fala em estímulo à economia, mas apenas me recordo daquele solicitador que se fez passar por juíz numa das comarcas da nação, e que bradou aos céus que os homens do lixo trabalhavam mais felizes sob o efeito etílico do sumo de uva. Será vingança do governo esta medida de sabor acrescentado? Não sei, estou excessivamente sóbrio para dar uma resposta de jeito. Pode parecer que não, mas a época das vindimas está quase aí e nada disto é inocente. Está tudo ligado, não sei é como. O governo porém, não fica por aqui. Tem uma frase fiscal de antologia a roçar a ironia, o sarcasmo - fala de um "contributo líquido negativo" e eu só penso nas pobres crianças que ainda correm o risco de ver a mama acabar - o leitinho escolar. E pergunto: é bebida, similar, ou coisa que o valha?
Alberto Gonçalves, Cinzas:
«Interditar o fumo nos restaurantes (e aparentados) significa condenar de vez um sector que, só no primeiro trimestre do ano e sem a ajuda do Governo, despediu 15 900 funcionários e registou uma queda de 30% no negócio.
Por espantoso que pareça, se ainda nos espantarmos com alguma coisa, é isto o que um obscuro secretário de Estado da Saúde, um tal Leal da Costa, anunciou todo contentinho: até 2020, será proibido fumar em todos os "espaços públicos". Razoável? Com certeza, se os protótipos de governantes não considerassem públicos os espaços privados que o Estado assalta materialmente e, pelos vistos, agora orienta espiritualmente.
De resto, a restauração é apenas um exemplo dos alvos da "lei de restrição de não fumo" (é verdade, o sr. da Costa não subiu na carreira graças ao domínio da língua). Outro exemplo são os carros particulares, perdão, os carros públicos que os cidadãos compraram com o seu dinheiro e pelos quais pagam abusivas fortunas ao fisco no momento da compra e em incontáveis momentos posteriores.
Pois bem: se os carros transportarem crianças, não haverá cigarro para ninguém. O sr. da Costa explica: "Está demonstrado que a concentração de fumo na parte de trás do veículo é muito grande, além de que os plásticos ficam embebidos por material carcinogénico que vai sendo lentamente libertado" (o homem não aprendeu português, mas é versado em análises minuciosas a habitáculos).
Por acaso, também está demonstrado que a concentração de poder nas mãos de nulidades estimula a arrogância e é prejudicial ao sossego alheio. Por mim, frequento poucos restaurantes, raramente vou a cafés, não fumo no carro e nunca, nem sob ameaça de arma, conduziria na companhia de uma criança. Mas mesmo quando a opressão não nos atinge, a opressão incomoda. Mais do que o tabaco, o qual, aliás, possui a virtude de abreviar a partilha de um mundo absurdo com incontáveis srs. da Costa. Um já sobra. Ou sobramos nós.»
Neste dia da Restauração, deixamos aqui os parabéns ao Editor69 pelos 5 anos do Blog de Leste. Autor de um dos mais irreverentes blogues da actualidade, alia o seu amor a Portugal a uma quase total ausência de “correcção política”. O seu benfiquismo, enfim... é algo épico.
Aqui fica, a jeito de dupla homenagem, um dos seus brilhantes vídeos: RESTAURAÇÃO – “Os Conjurados”