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Independentes dos pruridos anglo-saxónicos que absorvem em proveito próprio os feitos de outrem, os historiadores alemães oferecem uma visão bastante equilibrada e imparcial do período dos Descobrimentos portugueses. Nitidamente enfeitiçados pelo esmagador testemunho de documentos, presença nacional nas pedras de armas espalhadas pelo globo e ainda mais importante, pela narrativa contemporânea que em paragens distantes autenticam acontecimentos que para muitos europeus sofriam a canga da lenda que os condenava à insignificância, estes alemães produzem grandes programas televisivos.
Bem ao contrário do madrilenamente enfeudado Canal de História, o Discovery Civilization transmitiu hoje um interessante trabalho sobre Vasco da Gama, num claro confronto deste com a personalidade de Colombo, desmontando até à real dimensão, aquilo que para a Europa daquele tempo significou a viagem até às Caraíbas. Situando perfeitamente a epopeia de Gama no tempo e no contexto histórico e económico, demonstrou o que para a Europa e o mundo representou o caminho marítimo para Índia, assim como as suas directas repercussões para a primeira construção de uma economia que a partir daí, verdadeiramente se globalizou.
Tendo sido deslocado o eixo do poder económico mundial para ambas as margens do Atlântico, o progressivo subalternizar da presença portuguesa no Índico e no Pacífico Ocidental consistiu numa fatalidade que paradoxalmente alçou a uma dimensão desmedida, a viagem de Cristóvão Colombo, em nome de uma Espanha que os ingleses relegaram para a Lenda Negra. Uma pequena gesta de poucas semanas, uma ilha caribenha e a teimosia de um encontro que jamais aconteceu, serviram como palco para a construção anglo-saxónica de uma certa história que consagrava a hegemonia do hemisfério ocidental. Se o nome de Vasco da Gama ficou, os de Francisco de Almeida ou de Afonso de Albuquerque permanecem ainda vivos naquele Oriente que lhes deu a eterna fama. Hoje, homens como Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Corte-Real, os exploradores das ilhas e costas do Atlântico Norte, o Cabral e tantos, tantos outros, são amesquinhados num constante apagar da memória, surgindo apenas em obras especializadas e acessíveis ao interesse de uns poucos. Embora ainda seja facilmente identificável Fernão de Magalhães, a involuntária - mas profícua - aliança espano-anglo-americana na historiografia, castelhanizou-lhe o nome, com ele se denominando sondas espaciais ou institutos. Neste momento de acenada "inevitabilidade iberista" que liquidará - desta vez para sempre - uma memória quase milenar, surge cada vez com maior probabilidade, um súbito reacender de uma chama quase extinta. O alvorecer do poder global de duas grandes potências asiáticas - a Índia e a China -, apontam para essa nova oportunidade lusitana de afirmação e neste sentido, o espírito prático e consciencioso dos alemães, tem servido para mostrar à pouco interessada Europa, o verdadeiro peso histórico - que implica a correspondente gratidão - do talvez mais ignorado país que dela faz parte. Portugal é para os indianos, tailandeses, birmaneses, cingaleses, indonésios, malaios, chineses e japoneses, o elo essencial que hoje lhes promete a visibilidade daquela corrente contínua que neste século XXI oferece o regresso a um poder, sucesso e progresso há muito perdidos. Este movimento pendular da economia e da finança - sempre acompanhados pela inovação ousada -, torna inevitável o cada vez mais evidente papel que os portugueses tiveram na criação de nações e na adequação destas ao novo mundo chamado gâmico.
É urgente uma aturada revisão dos manuais escolares, já há tanto tempo submetidos ao crivo de um alegado politicamente correcto para uma geração que chega agora ao fim dos seus dias. A História de Portugal que em boa parte se mundializou, é fruto do interesse abnegado de um grande número de estudiosos de enorme valor científico, completamente independentes dos desígnios egoístas de uma ou duas gerações dirigentes que nela viram a ameaça a uma legitimidade política que aliás, nunca esteve em causa. O inferior complexo de culpa colectiva, prodigamente alimentado pela ignorância atrevida e acintoso preconceito, consiste num vetusto resquício supersticioso de uma época passada e derrotada pela verdade que a informação a todos hoje se disponibiliza. Oxalá as nossas autoridades sigam o bom exemplo alemão e ofereçam ao nosso corpo discente, as ferramentas essenciais á formação do tão almejado espírito cívico: a certeza daquilo que somos e o porquê do sucesso já quase intemporal de uma pequena nação do extremo ocidental da Eurásia.
Como curiosidade, o dito programa sobre Vasco da Gama, chegou ao fim com uma breve e bastante elucidativa entrevista com o actual Samorim de Calecute, ainda considerado como o reconhecido potentado daquelas paragens. O anel, o cordão e a pulseira de tornozelos que um dia o Vice-Rei ofereceu ao seu longínquo antepassado, ainda fazem parte do espólio pessoal que simboliza a verdadeira e mais forte soberania: a da memória.
* Nas duas fotos, os actuais descendentes do Vice-Rei e do Samorim: Vasco Telles da Gama e o Samorim de Calecute, Shri P. K. S. Raja
O actual Samorim, numa cerimónia em Calecute